21.5.03

Leonardo Mota


O cantador pernambucano Aragão foi ter comigo, certa vez, quando no "Hotel de France", em Fortaleza, eu jantava em companhia do jornalista Manuel Monteiro. Aragão vestia um terno de roupa nova, quer dizer, havia "quebrado a tigela". Convidei-o a tomar parte na refeição e, com surpresa minha, ele prontamente aquiesceu:
-- Eu quero. Agora, matuto em frente de gente não come. O dicomê fica na mesa e ele se acanha... Matuto só tem de gente o rasto. Matuto é o bicho mais parecido com gente que Deus deixou no mundo...
Quando o criado lhe apresentou o cardápio, ele protestou:
-- Pra quê diabo é esse papelão? Quero lá sabê de iscuiê versidade de comida! Traga o que tivé! Traga a janta que eu como... Eu não sou biqueiro não. Só não me traga comida com gordura de porco, carne de capado, nem carne de criação, que é carregada. O resto...
E, chamando o criado, advertiu:
-- Sim, não vá trazê coisinha por coisinha não! Eu quero é tudo engalobado. Eu gosto é do taipeiro...
Manuel Monteiro indagou:
-- A que é que faz mal carne de criação?
-- A que é? Só pode ser ao corpo...
Enquanto aguardava o jantar, Aragão nos confessou:
-- Eu só não gosto de comedoria de hotel porque isso é uma especulação: é umas foinha lá no fundo do prato. Vou nisso não! Serei lagarta?
Perguntei-lhe se aceitava um aperitivo e expliquei: uma bebida que lhe despertasse a vontade de comer.
-- Quero não, doutô. Eu vou vê se largo o esprito. Tá me ofendendo. Eu, onte, fui a uma festa no Maranguape e me dero lá uma tal de cachaça inocente chamada "Sapupara", boa chega parecia Zinebra. O certo é que eu hoje amanheci ruim da barriga e só boto pra água que passarim não bebe... O povo lá até gostou desta "obra" que eu fiz: "Quem bebe da Sapupara/ E usa cigarro amarelo/ Parece que quando arrota/ Arrota conhaque Martelo."
Veio o jantar. Aragão devorou-o às pressas, com a colher. Depois limpou a boca na toalha da mesa, palitou os dentes e enfiou o palito entre os cabelos. O criado interpelou-o:
-- O senhor quer sobremesa?
-- Home, ocê quererá me matá! Vá dá no boi! Eu já tou cheio... Mas me traga sempre um docezinho!
-- De que qualidade?
-- Traga qualqué um! Eu, toda vida, vi dizê que não hai cabra bom nem doce ruim...


-- Em "Cantadores, Poesia e Linguagem do Sertão Cearense".