29.6.03

A floresta da linguagem


Um terror me sacode; estou perdido na terrível floresta da linguagem. Ignorando a estrada sintática vou tropeçando em anglicismos, latinismos, barbarismos e idiotismos de linguagem, quando ouço o silvar de vocábulos paragógicos. Caio no areal dos solecismos e sou mordido por vários anacolutos. A custo, afastando duas redundâncias e esmagando um horrendo pleonasmo, escorregando em sinistras hipérboles, agarro-me a um verbo auxiliar e a um complemento não-essencial. Porém hibridismos me barram o caminho. Ensurdecido por rotacismos e lambdacismos, arranhado por orações anfibológicas, recuo para não cair no terrível cipoal da regência, de onde raros escapam com vida. Galhos de corruptelas me cortam o rosto enquanto sufoco com o cheiro de defectivos. Ponho o pé num nome próprio, mas logo seis substantivos deverbais saltam sobre mim. Não tendo fuga, me protejo com uma próclise, evitando duas espantosas mesóclises, e aproveito um advérbio de negação para atrair três pronomes relativos colocados em posições ameaçadoras. Felizmente surge a clareira de um parágrafo. Avanço, abrindo parêntesis, onde enfio arcaísmos, anacronismos, expressões chulas e ambivalentes. Uma silepse espera-me mais à frente. Desvio-me com uma vírgula, engano uma prosopopéia, sou envolvido por diversos parequemas, a que logo se juntam odiosas ressonâncias verbais. Descanso sobre reticências, quando ouço o tantã de interjeições pejorativas emitidas por sujeitos ocultos por elipse. Apócopes! Escapo pela picada do eufemismo e paro para respirar no fim de um período simples. Avanço pela pedreira dos metaplasmos, luto com apofonias, salto o pantanal dos cacófatos, esbarro em cacografias, empurro cacologias, me arrasto pela cacoépia. Morto de exaustão, cercado por centenas de substantivos promíscuos, já desespero, quando percebo que cheguei a um lugar-comum.


-- Millôr Fernandes, em "A Bíblia do Caos".

26.6.03

Dicionário do Diabo



B


Baco -- conveniente divindade inventada pelos povos da Antiguidade como uma desculpa para se embebedar

Banho -- espécie de ritual místico que substituiu o culto religioso e cuja eficácia espiritual ainda não foi comprovada

Banqueiro -- indivíduo que nos empresta o guarda-chuva quando faz sol e o tira quando começa a chover

Barato -- o que se pode vender mais caro

Barômetro -- engenhoso instrumento que indica o tempo que está fazendo

Bastante -- tudo que pode haver no mundo quando se quer

Batalha -- método de desamarrar com os dentes um nó político que não pode ser desfeito com a língua

Batismo -- rito sagrado de tamanha eficácia que todo aquele que se encontra no paraíso e não foi batizado vai se sentir eternamente infeliz por isso

Bebê -- criatura de idade e sexo indefinidos, notável pela violência de sentimentos contraditórios que desperta nos outros, quando ele próprio é desprovido de sentimentos ou emoções

Belladonna -- em italiano, uma linda mulher; em inglês, um veneno mortal. Exemplo admirável da identidade essencial entre as duas línguas

Benfeitor -- aquele que compra ingratidão em grandes quantidades sem que isso afete o preço, que continua acessível a todos

Bigamia -- erro de discernimento para o qual a sabedoria do futuro vai criar uma punição: a trigamia

Boa Aparência -- a mesma cor de pele do seu patrão

Boato -- a arma preferida dos destruidores da reputação alheia

Bobagem -- as críticas lançadas a este excelente dicionário

Bruto -- ver Marido

Burocrata -- indivíduo capaz de achar mil problemas para uma solução

Busto -- estátua de um homem sem mãos, ou parte da mulher onde estão as mãos do homem


-- Ambrose Bierce, 1911. Trad. MP. Aguarde letra "C".


25.6.03

As coisas que não têm hoje e ant'ontem amanhã: é sempre.
Ai, arre, mas; que esta minha boca não tem ordem nenhuma.
Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte e reverte.
As pessoas e as coisas não são de verdade. A vida disfarça.


-- Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: Veredas".

18.6.03

Nem Belo Horizonte, colcha de retalhos iguais,
cidade européia de ruas retas, árvores certas,
casas simétricas,
crepúsculos bonitos, sempre bonitos;
Nem Juiz de Fora. Ruído. Rumor.
Apitos. Klaxons.
Cidade inglesa de céu enfumaçado, cheio de chaminés negras;
Nem Ouro Preto, cidade morta,
Bruges sem Rodenbach,
onde estudantes passadistas continuam a tradição das coisas
que já esquecemos;
Nem Sabará, cidade relíquia,
onde não se pode tocar, para não desmanchar
o passado arrumadinho;
Nem Estrela do Sul, a sonhar com tesouros,
tesouros nos cascalhos extintos de seu rio barrento;
Nem Uberaba, nem, nem, cidades arrivistas de gente
que não pretende ficar;
Não! Cataguazes... Há coisa mais bela e serena
oculta nos teus flancos.
Nas tuas ruas brinca a inconsciência das cidades
que nunca foram, que não cuidam de ser.
Não sabes, não sei, ninguém compreenderá jamais
o que desejas, o que serás.
Não és do passado, não és do futuro;
não tens idade...
Só sei que és
a mais mineira cidade de Minas Gerais...
Nem geometria, nem estilo europeu,
nem invasão americana de bangalôs derniecri.
Tuas casas são largas casas mineiras
feitas na previsão de muitos hóspedes.
Não há em ti o terror das cidades plantadas na mata virgem.
Nem o ramerrão dos bondes atrasados,
cheios de gente apressada.
Nem os dísticos de aqui esteve aqui aconteceu.
Nem o tintim áspero dos padeiros.
Nem a buzina incômoda dos tintureiros.
Teus leiteiros ainda levam o leite em burricos.
Os padeiros deixam o pão à janela (cidade mineira).
Teu amanhecer é suave.
Que alegria de só ter gente conhecida faz
teu habitante voltar-se para cumprimentar todos que passam.
Delícia de não encontrar estrangeiros de olhar agudo
esperto mau, a suspeitar riquezas nas terras.
Alegria dos fordes brincando (são dois) na praça.
(Depois vão dormir juntinhos numa só garagem.)
Jacaré!
João Arara!
João Gostoso!
teus tipos populares.
A criançada atira-lhes pedras e eles se voltam imprecando.
Rondas alegres de meninas nas ruas, às tardes,
sem perigo de veículos,
papagaios que se embaraçam nos fios de luz,
balões que sobem,
foguetes obrigatórios nas festas
de chegada do chefe político.
Jardins onde meninas ariscas passeiam meia hora só antes do cinema.
Ar morno e sensual de voluptuosidade gostosa que vibra
nas tuas tardes chuvosas, quando as goteiras
pingam nos passantes
e batem isócronas nos passeios furados.
Há em ti a delícia da vida que passa porque vale a pena passar,
que passa sem dar por isso,
sem supor que se vai transformando.
Em ti se dorme tranquilo sem guardas-noturnos.
Mas com o cricri dos grilos,
o ranram dos sapos,
o sono é tranquilo como o de uma criança de colo.
Vale a pena viver em ti.
Nem inquietude,
nem peso inútil de recordações
Mas a confiança que nasce das coisas que não mudam bruscas,
nem ficam eternas.


-- Ascânio Lopes, "Cataguazes", poema de 1928 dedicado a Carlos Drummond de Andrade.

17.6.03

Complexo de épico


Todo compositor brasileiro é um complexado.
Por que então esta mania danada,
esta preocupação
de falar tão sério,
de parecer tão sério,
de sorrir tão sério,
de chorar tão sério,
de brincar tão sério,
de amar tão sério?
Ah, meu Deus do céu,
vá ser sério assim no inferno!


-- Tomzé

15.6.03

Vicente Gunz chama-me para ver a lavadeira Ana Blúmia às margens do Arrudas. Ana Blúmia canta e lava, lava e canta, acocorada nas margens da água espessa. Lava suas rendinhas, seus bordadinhos, suas fronhas de riso e lágrimas. As águas descem. Pelas águas descem restos de extratos bancários, restos de suflês, projetéis, canos de espingardas, pneus, uma gravata de deputado, um par de sapatos de um magnata, manchados de sangue. Ana Blúmia canta e lava, lava e canta. E os bem-te-vis também cantam nos telhados de Belo Horizonte.
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Vicente Gunz é quem diz nesta manhã de garoa: "Pobres filhos pobres da poesia do Leminski".
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Leio na edição de hoje do SENTINELA DORMINDO que o poeta Joaquim Vírgula faz, desde a semana passada, um protesto na Rua Leopoldina. Segundo o jornal, Joaquim Vírgula empurra, rua acima, um pacote com duzentos quilos de poemas. Assim que chega aos altos do Santo Antônio, o poeta solta o pacote morro abaixo e recomeça a subida, interminavelmente, desde a esquina de Benvinda de Carvalho. “Sou o Sísifo dos tempos modernos”, diz ele. “Tudo o que escrevo, há mais de vinte anos, permanece inédito. Enquanto não for publicado, estarei aqui, rua acima e rua abaixo, em protesto pelo modo com que tratam os poetas”. Na segunda-feira, de acordo com a reportagem, o pacote quase atropelou uma madame que voltava da feira com uma sacola de alfaces.


-- A Volta de Kafka em Belo Horizonte


Vá atrás do seu sonho. E quando voltar me traga uma cerveja.


-- Tomás Creus

Almoço de domingo


Quando começamos a dirigir um carro
temos lá uma certa sensação bem besta de poder
sim, poder ir a qualquer lugar entre o Chuí e o Oiapoque
qualquer lugar entre a Puc e o Carrefour
ou até não ir a lugar algum e lutar contra o freio de mão
numa verdadeira cruzada para amar a namorada
sem requintes mas bem contente
pois foi num destes domingos de almoço de família
ou então num destes almoços de família de domingo
que prontifiquei-me a buscar o almoço
um frango prensado no Don Nicolla
e realmente o busquei com travessas de inox
e um duralex pro espaghetti
quando estou retornando e paro no sinal, olho pro lado
uma casa de um muro alto coberto por trepadeiras e calçada de basalto
pega fogo e um homem grita desesperado,
eu penso é um assalto, e eu VEJO, não, é um incêndio
e eu ali com o frango prensado me olhando, meu pára-brisa enfumaçado,
e eu vejo a família, o almoço esperando
e a vizinhança com mangueiras e baldes ao moço ajudando,
que até sorri agora, a agonia foi-se embora
finalmente engato a primeira, o fogo apaga, o almoço chega,
a família come, e a tristeza acaba, não é fantástico ?!

-- Frank Jorge




14.6.03

Ó meus amantes,
Almas simplórias,
Mas que sensualidade.
Vinde me consolar das desventuras
Distraí-me dessas literaturas;
Tu, suburbano, vamos tocar uma em gíria,
E vós, do campo, contai-me em dialeto
Casos sacanas e casos singelos,
Travemos nos bosques cerrados
A grande guerra
Dos beijos vários.
Vós, espertos, caprichemos na língua,
Merda pros casos tristes,
Dos tolos e babacas.
(Babacas, isto é, imbecis,
Outras babacas são de praxe
Até para nós, os difíceis,
Os especiais, os escravos da boa Igreja
Cujo papa seria Platão
E Sócrates, protonotário,
Uma mulher de vez em quando é de bom-tom;
Uma concessãozinha não mata ninguém.
E é preciso dar a cada um sua quota:
Mulheres também têm direito a nossa glória.
Um afaguinho
De vez em quando
E voltemos ao que interessa.)
Ó meus meninos amados, vingai-me
Com vossas carícias severas
E vossos cus e picas, regalos divinos,

De todas essas carnes ocas
Que a retórica brinda aos cérebros merdosos
Desses pobres coitados que não compreendem.
Trepemos, chega de metáforas,
Brinquemos com nossos colhões,
Passemos uma água nas glandes
E depois porra, merda, nádegas e coxas!


-- Paul Verlaine, em Hommes, 1891.

10.6.03

Natureza morta


Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados.
Como os meus dedos, na mesma frase.
As letras que eu poderia escrever
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!

Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
Os ventres estourando
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!

Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Si eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém...
Nem a presença dos corvos.


-- Pagu, 1948.



9.6.03

Pedro Nava


A cozinha mineira, pouco abundante nos pratos de sal, que ficam nas variações em torno do porco, do toucinho, da couve, do feijão, do fubá e da farinha -- é de uma riqueza extraordinária em matéria de sobrepastos. Hoje tudo mudou e minguou. Mas lembro-me bem da mesa de minha avó materna, em Juiz de Fora, onde a Inhá Luísa, da cabeceira, podia olhar a ponta dos meninos e das compoteiras, de que havia, ao jantar, umas quatro ou cinco repletas de doce. Menos, era penúria. E que doces... Os de coco e todas as variedades, como a cocada preta e a cocada branca, a cocada ralada ou em fita, a açucarada no tacho, a seca ao sol. Baba-de-moça, quindim, pudim de coco. Compota de goiaba branca ou vermelha, como orelhas em calda. De pêssego maduro ou verde cujo caroço era como um espadarte no céu-da-boca. De abacaxi, cor de ouro; de figo, cor de musgo; de banana, cor de granada; de laranja, de cidra, de jaca, de ameixa, de marmelo, de manga, de cajá-mirim, jenipapo, turanja. De carambola, derramando estrelas nos pratos. De mamão maduro, de mamão verde -- cortado em tiras ou passado na raspa. Tudo isto podia apresentar-se cristalizado -- seco por fora, macio por dentro e tendo um núcleo de açúcar quase líquido. Mais. Abóbora, batata roxa, batata doce em pasta vidrada ou pasta seca. Calda grossa de jamelão, amora, framboesa, araçá, abricó, pequiá, jaboticaba. Canjica de milho-verde tremendo como seio de moça e geléia de mocotó rebolando como bunda de negra. Mocotó batido, em espuma que se solidifica -- para comer frio. Pamonha na palha -- para comer quente, queimando os dedos. Melado. Tudo isto variando de casa para casa, segundo os segredos de suas donas e as invenções de suas negras -- se desdobrando em outros pratos, se multiplicando em novos. Dos aristocráticos, com receitas pedindo logo de saída trinta e seis gemas, aos populares, como o cuscuz (só fubá, só açúcar, só vapor d'água e tempo certo) e como a "plasta" de São João del Rei (só fubá, só rapadura, só amendoim e ponto exato) -- que tem esse nome pelo seu aspecto de bosta de boi, do emplastro que forma no tabuleiro quando cai da colher de pau. E a abóbora da noite de São João? Era aberta por cima, esvaziada dos fiapos e caroços, cheia de rapadura partida, novamente tampada, embrulhada em folhas de bananeira e enterrada a dois palmos de fundo, debaixo das grandes fogueiras. Aí ficava duas, três horas e quando saía dessa moqueada, tinha cheiro de cana queimada e gosto ainda mais profundo que o das castanhas. Comia-se no fim das festas de junho bebendo crambambali e cantando até cair ao pé das brasas que morriam. O crambambali é bebida sagrada -- um quentão legitimamente centro de Minas. A receita? Uma travessa cheia de pinga, rodelas de limão, lascas de canela e rapadura. Toca-se fogo na cachaça e deixa-se esquentar bastante. Apagar, coar e servir em canequinhas de gomo de bambu.


-- Em "Baú de Ossos".

6.6.03

Jack London


Apenas já na universidade foi que consegui uma pista para o significado dos meus sonhos e para a causa deles. Até então, não faziam sentido e nem tinham uma causa aparente. Mas na universidade estudei evolução e psicologia, e aprendi sobre diversos estados mentais e experiências estranhas. Por exemplo, sobre o sonho da queda no espaço -- a experiência de sonho mais comum e que praticamente todos já experimentaram.
Meu professor me disse que isso era uma memória racial. Ela remontava à época dos nossos antigos ancestrais que viviam em árvores. Como eles viviam em árvores, a probabilidade de queda era uma ameaça constante. Muitos perdiam a vida assim, todos experimentavam quedas terríveis, de que se salvavam agarrando-se nos galhos durante a queda.
Agora, uma queda terrível assim causava um choque. Tal choque produzia mudanças moleculares nas células cerebrais. Estas mudanças moleculares eram transmitidas às células cerebrais dos descendentes, tornando-se, em resumo, memórias raciais. Assim, quando você ou eu, dormindo ou no início do sono, caímos através do espaço e acordamos pouco antes do choque, estamos apenas evocando o que acontecia com os nossos ancestrais das árvores, e que ficou gravado na hereditariedade da raça através de mudanças cerebrais.
Não há nada de estranho nisso, assim como não há nada de estranho num instinto. Um instinto é apenas um hábito que ficou gravado no processo da nossa hereditariedade, somente isso. Deve-se observar, de passagem, que, nesse sonho de queda tão familiar a você, a mim e a todos nós, nunca chegamos ao chão. Chegar ao chão significaria a destruição. Aqueles dos nossos ancestrais das árvores que chegaram até o solo morreram em seguida. Na verdade, o choque da queda era transmitido às células cerebrais deles, mas morriam imediatamente, antes que pudessem ter descendentes. Nós somos descendentes dos que não atingiram o chão, e é por isso que em nossos sonhos nunca chegamos ao solo.


-- Em "Antes de Adão".

4.6.03

Frutas da infância e post



O jambo. O tamarindo. A guabiroba.
A uvaia. A pitanga. A carambola.
A pitangueira dá pitangas e indigestão.
Os uivos da uvaia. A raiva da cabeluda. A força da banana. O ácido do araçá.

O cântico do cambucá nos canais do intestino.

A sublevação dos indígenas alimentos frutais ingeridos e indigeridos.
O odre podre de qualquer fruta.
As comadrices da tangerina. O ubre convexo da mamoa.
O verdeveronese das frutas. As veludosas amarelezas do mamão.
Os passeios do limão nas alamedas de tangerineiras.
A fruta-de-conde. A fruta-de-condessa. Principalmente a fruta-de-condessa.
A fúria do abacaxi. A relva do abacate. A soledade da grumixama. A ironia da goiaba. A explosão da manga-espada. A glória do maracujá. O peito da laranja. O asco da toronja.

O preto da jabuticaba. As pretas da jabuticabeira. As tetas das pretas na jabuticabeira.

O sorriso em flor da canela. As congeminações da noz-moscada. Os esgares da pimenta desacompanhada da hortelã.

Morder a realidade, a matéria mordível e mordente, a universal tangerina, a fruta-esfera da terra. Saborear o sumo de todas as coisas somadas. O sumo do universo, o saber do sabor, o sabor do saber.


-- Murilo Mendes

2.6.03

1 poema de Avraham Shlonsky


O Sr. Fulano fala de sua vizinhança


Vivo num prédio de 5 andares.
As janelas bocejam para a parede oposta
Como rostos olhando nos espelhos.

Em minha cidade há 70 linhas de ônibus,
Atulhadas pelo teto e cheias do fedor dos corpos.
Eles trabalham
Trabalham
E trabalham arduamente no coração da cidade:
Quase como se não pudesse alguém morrer de tédio
Logo aqui em minha vizinhança.

É bem pequena minha vizinhança.
Todavia tem seus nascimentos, as suas mortes
E as coisas todas que acontecem no entremeio
Em cada cidade igualmente existe
Mesmo crianças radiantes rodopiando um arco
E 3 cinemas.
Assim, se eu não achasse o tédio na minha própria casa suficiente
Eu freqüentaria um dos cinemas.

Vivo num prédio de 5 andares.
A mulher que saltou pela janela oposta
Achou 3 suficientes.



(in Quatro mil anos de poesia, Coleção Judaica, ed. Perspectiva)