17.5.08

Manuel Bandeira e a poesia sem importância



Não concordo com o Mário [de Andrade] no preconceito de novidade: posso encontrar poesia em lugar-comum sentimental. Daí gostar de coisas suas que ele acha sem importância. Posso eu achar também sem importância e no entanto gostar. Você é justamente um desses poetas que chateiam os outros com coisas sem importância. Creio que você entende bem o sentido em que emprego a expressão "coisa sem importância". Digo isso porque o Mário faz diferença entre coisa sem importância com interesse artístico e coisa sem importância mesmo. Pois pode me suceder que eu goste e me comova com a "coisa sem importância mesmo".

Eu acho a estética uma coisa arriscadíssima porque os dados são falhos, a matéria imponderável... Naturalmente tudo o que se constrói sobre essa base é molto leggero, troppo leggero... [...] para você arte é criação emotiva. Estou de acordo. Imediatamente a seguir vem: "Que é que eu procuro, lendo? Gozo da inteligência." Ora, quando eu leio um capítulo de física, procuro também gozo da inteligência e o consigo. Física não é arte. Logo, por você encontrar gozo da inteligência numa carta não pode dizer que carta é arte. Poderá sê-lo quando houver "criação emotiva". Um capítulo de física pode gerar emoção mas esta será de caráter científico. Há uma emoção específica própria da arte e ela deriva da criação ou recriação de vida. As cartas que você tanto aprecia e chama substanciosas são aquelas em que não há composição, em que a inteligência crítica intervém pouco. Em literatura quer-se mais composição, mais crítica. Você aprecia muito as minhas cartas, mas toda vez que eu apliquei o processo epistolar a poemas ou artigos desagradei você. [...] No fundo (inconscientemente) você está com o Mário e eu acho que com razão: um poema é uma composição; quando não há composição, o que existe é um fragmento lírico. Naturalmente há mais frescura no puro lirismo. Porém maior "gozo da inteligência" na composição. Basta de estética.



Manuel Bandeira em cartas datadas de 1926 a Ribeiro Couto, a quem Mário de Andrade julgava um poeta banal, de lirismo sentimental, o pior crítico do mundo. A imagem é de Cindy Sherman.

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14.5.08



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10.5.08

Mário Faustino



Deixo a quem quer que seja
A quem queira, a quem possa, a quem sirva, a quem goste,
A tarefa de construir um mundo novo.
Minha obrigação, o mínimo
Que inda posso fazer,
É ajudar acabar com este monturo
Onde inadvertidamente me jogou a
Senhora minha mãe.
Há múltiplas maneiras de ajudar a acabar
Com o monturo
(O monturo, aliás, não tem nada de grande,
é até fácil de arrasar.)
Há uma que particularmente me apeteceu.
Uma delas é arrebentar-lhe ostensivamente
com as regras do jogo.
A outra é desenvolver até o requinte
as referidas regras do jogo
E obedecer, também até o requinte,
as ditas regras do jogo.
Outra maneira é aumentar o monturo fazendo filhos
Educando-os e ensinando-os higienicamente
a fazer outros filhos.
Outra maneira é ir à missa todos os domingos
e contribuir para as obras da paróquia.
Outra maneira é lançar mais um jornal,
Mais um partido, mais um grupo de estudos,
Mais uma conspiração militar ou civil



Mário Faustino

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8.5.08




deixa passar o passado. deixa passar o passado. deixa passar o passado. daqui não ouço as ondas lá fora. elas falam mal de mim. a cada golpe de mar calado de água. deixa passar o passado. ele também é como os outros. todos os passados são um. até o da ucraniana que ri dentro da cabine. rir não afunda. joga álcool e ateia fogo. o corredor é um osso. de norte a sul. firme, não perco o equilíbrio. manobro com cuidado. deixo passar o mundo e viro à direita.


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1.5.08

Triste para ela




eu posso duvidar dos meus ouvidos, não de mim. os espíritos são mudos. eu disse, ela não acreditou. esticou uma fileira de sal na porta de casa, pregou na porta do quarto uma estrela de seis raios e debaixo do travesseiro pôs uma tesoura aberta. os espíritos são reflexos da sua alma, insisti. ela virou todos os espelhos. aqui em casa espíritos não têm hora para aparecer. às vezes aparecem no meio de uma dor de cabeça. naquele jeitinho de quinta-feira. cada um ouve o que deve ouvir. triste para ela, quando o ouvir é mais importante do que o vivido. quase não sai de casa. ouve vozes por trás das vozes da TV. e todos os outros ruídos vindos do silêncio. mandou construir 28 degraus até o sótão, como no palácio de Pôncio Pilatos. nunca subi. não gosto de sótãos. não a vejo há quatro dias, embora moremos na mesma casa. talvez seja a minha voz que ela não quer ouvir. como o meu trabalho é escrever, me pediu que procurasse nos tantos livros que li -- aqui senti um tom de desprezo -- umas simpatias para apaziguar os seus nervos. não queria mais ouvir os mortos. foi bem assim. senti um arrepio na hora. mas depois de quatro dias sem vê-la, a convivência aqui está bem melhor e meu humor vem mudando. talvez ela até goste das minhas simpatias para cortar malefício de mortos indesejáveis, para evitar que os mortos falem mal de você, para agradar seu morto da guarda, para o morto não fugir com a sua melhor amiga, para calar a boca de morto de língua solta, para espantar morto de maus bofes, para curar morto destrambelhado, para morto deixar de babar, para morto cheio de xodó, para amansar morto brabo, para morto que tem medo de estar morto, para cortar olho-grande de morto, para entender conversa de morto estrangeiro, para dar um sossega-leão em morto de morte matada e para afastar morto com mania de psicografar. bem, cortei esta última. é tão bom morar de frente pro mar.