arroz de tomate
nesse dia a noite viera mais cedo - na verdade, o seu particular adormecimento fizera-se pelas quatro da tarde, era dia, e com os dados assim lançados proponho um brinde à aldeia à casa amarela às ruas outonecidas que se lhe dirigem à satisfação iniciática ao pão com fiambre de vez em quando.
Homem de Cuecas
27.2.04
Chegou tarde, já passava da meia-noite, deixou o fuzil 762 em cima da mesa, tirou a .40 e colocou na gaveta do armário, foi para o banheiro e lavou o rosto, o plantão fora exaustivo, enfiar cocaína na boca do viciado, comandar os PMs para bater corretamente em marido valente, forçar suspeito a assinar o boletim de ocorrência, tudo isso cansava demais, prometia toda noite não se envolver pessoalmente, mas gostava, era assim que Mendonça sempre foi considerado, um delegado que fazia o que gostava, tirou a camisa, foi até o quarto de Carol, viu que estava dormindo, as crianças também deveriam estar, achou bom, foi à geladeira, pegou uma cerveja, desceu para o porão, ligou o computador, acessou a internet e entrou no mundo que mais gostava, a braguilha foi aberta, olhava para o monitor fixamente, as calças desceram para os joelhos, estava quase gozando quando ouviu um barulho, olhou pelas escadas, não devia ser nada, abriu os botões da camisa, continuou vendo as fotos de pedofilia e finalmente gozou, abriu a gaveta da escrivaninha, tirou uma toalha, passou pela barriga e pelas pernas, cheirou a toalha e decidiu deixá-la no cesto para Carol lavar.
Ferréz, em Manual Prático do Ódio, 2003.
Ferréz, em Manual Prático do Ódio, 2003.
26.2.04
22.2.04
A partir dos anos 2030 o processo de metamorphosing expande-se drasticamente. De uma primitiva técnica de animação que transformava passo a passo uma imagem em outra, o metamorphosing, apropriando-se de fundamentos da teoria dos fractais, passa a transformar progressivamente um indivíduo em outro. A princípio, esse fenômeno de "transmigração" ocorria somente on-line, em ambiente virtual. Bastava um clique do mouse para um indivíduo de carne e osso, utilizando um programa de vida artificial, transformar-se de espectador no agente à sua escolha, entre os milhões disponíveis na rede. Porém, com a explosão da inteligência coletiva e das populações imaginárias devido às sucessivas transmigrações interativas dos já agora bilhões de usuários, a indústria do metamorphosing, apostando no sucesso, partiu para a criação dos morphings off-line. Bilhões de seres humanos de carne e osso agora podem se transformar em outros seres humanos da vida real, à sua escolha. Para maiores detalhes leia o capítulo "Personalidades Compartilhadas e o Fim da Individuação" na página 325 ou visite nosso site.
21.2.04
20.2.04
Rua Barão de Ipanema
Estou vendo 24 vultos da minha janela. "No campo de concentração de Majdanek, Kobyla chutava mulheres e crianças com uma bota cheia de ferragens." Meu tio chega da rua e põe Maysa na vitrola. Ele entra no banheiro e vai fazer a barba. Deixa a porta aberta. Eu fecho a revista dos anos 60 e o sigo pelo corredor do apartamento. O que é que foi, Fu Manchu?, ele me pergunta, porque tenho os olhos rasgados. O papa é judeu?, eu pergunto na ponta dos pés para vê-lo no reflexo do espelho. Não, que ideia. O papa é católico, como nós. Os judeus têm um papa?, eu insisto. Não, quer dizer, sei lá. Por que essa preocupação agora? É que se os judeus tivessem um papa nada disso teria acontecido, não é? Nada disso, o quê?, ele quer saber. O genocídio. Ah. Onde aprendeu esta palavra? Na revista. Uma gota de sangue escorre do rosto dele e se mistura com a espuma do creme de barba. Você foi à praia hoje?, ele muda de assunto. Não, não fez sol, eu digo, sentando na tampa da privada. Teu pai chega quando de viagem? Não sei, a mãe deve saber. Onde ela foi? Saiu. Foi na Colombo comprar um remédio. Vovô era italiano? Hum, hum. Ué, mas ele não nasceu na Argentina? Foi, mas era imigrante. Ele veio da Itália com os pais e nasceu no navio que parou na Argentina, entendeu? Então ele conhecia o papa? Chega dessa conversa de papa, o que deu em você? Olha, o disco acabou. Vai lá na sala e bota o outro lado pra mim, tá bom? Tá bom. Em vez de virar o disco, eu o guardo na capa e pego outro. Dolores Duran. Meu tio entra na sala e eu me agarro no seu pescoço com cheiro de loção pós-barba da Atkinsons. Ele me ergue do chão e do seu colo olhamos para o mar. Na beira da praia uma mulher corre ao lado de dois cachorros. Sozinha. Quer dar uma volta na praia? Mas está chovendo, eu digo, virando meus olhos rasgados para ele. E o carro velho do seu tio serve pra quê? Nós dois rimos e a mulher na praia some entre os prédios.
19.2.04
18.2.04
García Lorca
Lua e Panorama dos Insetos
(O poeta pede ajuda à Virgem)
Rogo à divina Mãe de Deus,
rainha celeste de todas as coisas criadas,
que me dê a pura luz dos animaizinhos
que têm uma só letra em seu vocabulário,
animais sem alma, simples formas,
longe da desprezível sabedoria do gato,
longe da profundeza fictícia dos mochos,
longe da escultórica sapiência do cavalo,
criaturas que amam sem olhos,
com um só sentido de infinito ondulado
e que se agrupam em imensos montões
para ser comidos pelos pássaros.
Rogo a única dimensão
que têm os pequenos animais planos,
para desviar-se de coisas cobertas de terra
sob a dura inocência do sapato;
não há quem chore porque compreenda
o milhão de mortezinhas que o mercado tem,
essa multidão chinesa das cebolas decapitadas
esse grande sol amarelo de velhos peixes esmagados
Tu, Mãe sempre temível. Baleia de todos os céus.
Tu, Mãe sempre jovial. Vizinha da salsa pesteada.
Sabes que eu abranjo a carne mínima do mundo.
15.2.04
Nota autobiográfica de Fernando Pessoa (1935)
Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.
Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.
Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e que foi Diretor-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus.
Estado: Solteiro.
Profissão: A designação mais própria será «tradutor», a mais exata a de «correspondente estrangeiro em casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.
Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dto. Lisboa. (Endereço postal - Caixa Postal 147, Lisboa ).
Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções de destaque, nenhumas.
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte: «35 Sonnets» (em inglês), 1918; «English Poems I-II» e «English Poems III» (em inglês também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria «Poema». O folheto «O Interregno», publicado em 1928, e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.
Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prêmio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.
Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reacionário.
Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.
Posição iniciática: Iniciado, por comunicação direta de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.
Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.
Lisboa, 30 de Março de 1935
Fonte: Fernando Pessoa no seu tempo, Biblioteca Nacional (Portugal), 1988 (págs. 17-22).
Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.
Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.
Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e que foi Diretor-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus.
Estado: Solteiro.
Profissão: A designação mais própria será «tradutor», a mais exata a de «correspondente estrangeiro em casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.
Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dto. Lisboa. (Endereço postal - Caixa Postal 147, Lisboa ).
Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções de destaque, nenhumas.
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte: «35 Sonnets» (em inglês), 1918; «English Poems I-II» e «English Poems III» (em inglês também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria «Poema». O folheto «O Interregno», publicado em 1928, e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.
Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prêmio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.
Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reacionário.
Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.
Posição iniciática: Iniciado, por comunicação direta de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.
Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.
Lisboa, 30 de Março de 1935
Fonte: Fernando Pessoa no seu tempo, Biblioteca Nacional (Portugal), 1988 (págs. 17-22).
14.2.04
eu hoje vou saber o que aconteceu a Henri Matisse
eu hoje vou palitar os dentes
eu hoje vou levar-me a sério
eu hoje vou bater com a porta
eu hoje vou confessar tudo
eu hoje vou tomar banho
eu hoje vou arranjar um álibi
eu hoje vou ao Google procurar maçãs camoesas
eu hoje vou como hei-de ir
eu hoje vou ter de escolher se quero loira ou morena
eu hoje vou atirar-me ao rio
eu hoje vou estacionar em terceira fila
eu hoje vou comê-lo todo sozinha
eu hoje vou mas não sei para onde
eu hoje vou dizer à minha sogra o que penso dela
eu hoje vou repetir a dose
eu hoje vou à net ver aquele blog de que me falaram
eu hoje vou foder o rei
eu hoje vou arranjar outro dealer
eu hoje vou a um restaurante pedir alcatra açoriana
eu hoje vou conseguir imprimir
eu hoje vou com um casal
eu hoje vou fechar para obras
eu hoje vou e ponto final
-- Eu Hoje Vou
eu hoje vou palitar os dentes
eu hoje vou levar-me a sério
eu hoje vou bater com a porta
eu hoje vou confessar tudo
eu hoje vou tomar banho
eu hoje vou arranjar um álibi
eu hoje vou ao Google procurar maçãs camoesas
eu hoje vou como hei-de ir
eu hoje vou ter de escolher se quero loira ou morena
eu hoje vou atirar-me ao rio
eu hoje vou estacionar em terceira fila
eu hoje vou comê-lo todo sozinha
eu hoje vou mas não sei para onde
eu hoje vou dizer à minha sogra o que penso dela
eu hoje vou repetir a dose
eu hoje vou à net ver aquele blog de que me falaram
eu hoje vou foder o rei
eu hoje vou arranjar outro dealer
eu hoje vou a um restaurante pedir alcatra açoriana
eu hoje vou conseguir imprimir
eu hoje vou com um casal
eu hoje vou fechar para obras
eu hoje vou e ponto final
-- Eu Hoje Vou
12.2.04
Antônio Maria
O encontro melancólico
Sentaram-se, os dois, já arrependidos de terem marcado o encontro. Esvaziaram os pulmões, num suspiro da saciedade. Aos dois, faltava coragem de perguntar: -- Por que isto? Por que não vamos embora de uma vez? Preferiram ser gentis e tentar. Ele perguntou se ela queria beber alguma coisa, ou comer alguma coisa. Ela respondeu um "nada" de quem anseia abreviar a angústia de estarem juntos. Ambos sentiram calor, ou porque a tarde estivesse fria, ambos suaram, sem calor, na testa e no pescoço. Que saudade os trouxera ali? Nenhuma. Vieram, simplesmente, porque um gostaria de saber, no coração do outro, o tamanho da falta que estava fazendo. As pessoas são muito vaidosas e, quando acabam seus romances, têm a mania de pensar que, de um modo ou de outro, marcaram, para sempre, a pessoa amada. É uma pretensão tola, esta de ser inesquecível, na carne ou na alma de quem se amou. O mundo renova muito a todos nós. Ou, quando não renova, envelhece, muda-nos sempre, enchendo-nos a vida de quatro ou cinco belezas novas ou de uma nova dor, que abrange todo o ser, defendendo-o contra qualquer recaída na doença de que saímos vivos.
Sentados frente a frente, fumavam e trocavam perguntas, cujas respostas eram dispensáveis: "Como vai sua irmã?" "Sua tia viajou, afinal?" "Como estão as aulas de taquigrafia?" Pediram uma cerveja, para fazer jus à mesa e à tolerância do garçom. Era uma cerveja amarga, porque o gosto das cervejas é a gente quem faz, com a doçura, o tanino ou o amargo que se traz na vida. Ela evitou que ele lhe acendesse o cigarro. Ele guardou o isqueiro, sem o menor constrangimento. Depois de tudo isso foi que se olharam bem nos olhos. Um olhar sem enlevo, sem mensagem, sem mágoa. Um olhar corajoso, só isso. Como era estranho, depois de tanto amor, depois de tantas vezes terem chegado ao trágico, verem-se agora como se fossem dois parentes. Nem ao menos se odiavam. Como a vida é sábia em suas acomodações! Riram-se, cada um de si mesmo e os dois da vida. Não havia nada a dizer, porque sabiam de tudo, sem linguagem. A palavra complica muito. Levantaram-se. Deram-se as mãos nas pontas dos dedos, foram caminhando e largando-se aos poucos, até que passou um táxi e ele correu para alcançá-lo. Ao entrar no carro, ainda olhou para trás e gritou-lhe um "adeus" qualquer. Que ela não ouviu, porque entrara numa loja de bombons. E dali por diante, nada os uniu ou mesmo separou, no ar, nas pedras e na música da cidade.
-- crônica de 29.08.1959, publicada no jornal Última Hora, RJ.
O encontro melancólico
Sentaram-se, os dois, já arrependidos de terem marcado o encontro. Esvaziaram os pulmões, num suspiro da saciedade. Aos dois, faltava coragem de perguntar: -- Por que isto? Por que não vamos embora de uma vez? Preferiram ser gentis e tentar. Ele perguntou se ela queria beber alguma coisa, ou comer alguma coisa. Ela respondeu um "nada" de quem anseia abreviar a angústia de estarem juntos. Ambos sentiram calor, ou porque a tarde estivesse fria, ambos suaram, sem calor, na testa e no pescoço. Que saudade os trouxera ali? Nenhuma. Vieram, simplesmente, porque um gostaria de saber, no coração do outro, o tamanho da falta que estava fazendo. As pessoas são muito vaidosas e, quando acabam seus romances, têm a mania de pensar que, de um modo ou de outro, marcaram, para sempre, a pessoa amada. É uma pretensão tola, esta de ser inesquecível, na carne ou na alma de quem se amou. O mundo renova muito a todos nós. Ou, quando não renova, envelhece, muda-nos sempre, enchendo-nos a vida de quatro ou cinco belezas novas ou de uma nova dor, que abrange todo o ser, defendendo-o contra qualquer recaída na doença de que saímos vivos.
Sentados frente a frente, fumavam e trocavam perguntas, cujas respostas eram dispensáveis: "Como vai sua irmã?" "Sua tia viajou, afinal?" "Como estão as aulas de taquigrafia?" Pediram uma cerveja, para fazer jus à mesa e à tolerância do garçom. Era uma cerveja amarga, porque o gosto das cervejas é a gente quem faz, com a doçura, o tanino ou o amargo que se traz na vida. Ela evitou que ele lhe acendesse o cigarro. Ele guardou o isqueiro, sem o menor constrangimento. Depois de tudo isso foi que se olharam bem nos olhos. Um olhar sem enlevo, sem mensagem, sem mágoa. Um olhar corajoso, só isso. Como era estranho, depois de tanto amor, depois de tantas vezes terem chegado ao trágico, verem-se agora como se fossem dois parentes. Nem ao menos se odiavam. Como a vida é sábia em suas acomodações! Riram-se, cada um de si mesmo e os dois da vida. Não havia nada a dizer, porque sabiam de tudo, sem linguagem. A palavra complica muito. Levantaram-se. Deram-se as mãos nas pontas dos dedos, foram caminhando e largando-se aos poucos, até que passou um táxi e ele correu para alcançá-lo. Ao entrar no carro, ainda olhou para trás e gritou-lhe um "adeus" qualquer. Que ela não ouviu, porque entrara numa loja de bombons. E dali por diante, nada os uniu ou mesmo separou, no ar, nas pedras e na música da cidade.
-- crônica de 29.08.1959, publicada no jornal Última Hora, RJ.
10.2.04
ARMA ESCONDIDA NO MIOLO DO ARBUSTO/ TANTA PROCURA PARECEU UM CLISTER
...
QUERIA TER UM TESTAMENTO DE GALINHA,
PODERIA CERTAMENTE COMPARÁ-LO AO DA MINHA VIZINHA.
A RETÓRICA DANÇA EM TORNO DA VERDADE HISTÓRICA
E É ASSIM QUE A PUTA DA VERDADE HISTÓRICA SE ABRE À RETÓRICA.
Às vezes a Loucura é uma reles expressão
Sou a casta mais pura da minha Religião.
Desgasto-me quotidianamente em explicações
que degeneram sempre em complicações.
Por mim correrei mundo a vida inteira
até que pare o tempo e a maneira.
Aí envolver-me-ei provavelmente no escuro
mas desde já aviso que ao mesmo tempo
estarei provavelmente a construir um novo muro.
Let the Fly Fly
...
QUERIA TER UM TESTAMENTO DE GALINHA,
PODERIA CERTAMENTE COMPARÁ-LO AO DA MINHA VIZINHA.
A RETÓRICA DANÇA EM TORNO DA VERDADE HISTÓRICA
E É ASSIM QUE A PUTA DA VERDADE HISTÓRICA SE ABRE À RETÓRICA.
Às vezes a Loucura é uma reles expressão
Sou a casta mais pura da minha Religião.
Desgasto-me quotidianamente em explicações
que degeneram sempre em complicações.
Por mim correrei mundo a vida inteira
até que pare o tempo e a maneira.
Aí envolver-me-ei provavelmente no escuro
mas desde já aviso que ao mesmo tempo
estarei provavelmente a construir um novo muro.
Let the Fly Fly
8.2.04
Plínio Marcos
Pálido de espanto, constato que o medo é tanto e mora dentro de tantos, que até os amesquinhados por mil e uma fomes berradoras, em fúria, trucidam o que não se conteve, o que quis quebrar os vidros. E matam e trucidam na vã esperança de acabar com a violência que os aperta num terrível sufoco. Matam e trucidam o que não se conteve e quebrou o vidro que separava sua fome do pão, para mostrarem que não acreditam na polícia, mas que anseiam por justiça e ordem que não têm. Justiça e ordem das quais são desvalidos os famintos... E assim vai morrendo um povo que era generoso. Vai morrendo no desespero de se ver morrer.
Pálido de espanto, constato que o medo é tanto e mora dentro de tantos, que até os amesquinhados por mil e uma fomes berradoras, em fúria, trucidam o que não se conteve, o que quis quebrar os vidros. E matam e trucidam na vã esperança de acabar com a violência que os aperta num terrível sufoco. Matam e trucidam o que não se conteve e quebrou o vidro que separava sua fome do pão, para mostrarem que não acreditam na polícia, mas que anseiam por justiça e ordem que não têm. Justiça e ordem das quais são desvalidos os famintos... E assim vai morrendo um povo que era generoso. Vai morrendo no desespero de se ver morrer.
5.2.04
Hilda Hilst
Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.
nota: Hilda Hilst, num passado recente, havia resistido a três isquemias cerebrais e por conta disso tinha a saúde bastante fragilizada. Internada no Hospital da Unicamp devido a uma segunda fratura no fêmur (a primeira no ano passado), faleceu por haver contraído uma infecção hospitalar. O que alguns jornais não mencionaram. Ponto.
Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.
nota: Hilda Hilst, num passado recente, havia resistido a três isquemias cerebrais e por conta disso tinha a saúde bastante fragilizada. Internada no Hospital da Unicamp devido a uma segunda fratura no fêmur (a primeira no ano passado), faleceu por haver contraído uma infecção hospitalar. O que alguns jornais não mencionaram. Ponto.
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