28.4.06

Machado de Assis e a poesia





Sei de uma criatura antiga e formidável,
que a si mesma devora os membros e as
entranhas com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas,
E no mar que se rasga à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela, o chacal é como a rola inerme,
E caminha na terra imperturbável como,
Pelo vasto areal, um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo,
Vem a folha que, lento e lento, se desdobra.
Depois a flor, depois o suspirar do pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra,
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.
E é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama-te igual amor o poluto e o impoluto,
Começa e recomeça uma perpétua lida, e sorrindo
Obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a morte,
Eu direi que é a vida.



Machado de Assis, no poema "Uma Criatura", de Ocidentais, 1889. Machado, a quem muitos julgam um poeta de mão pesada, embora ficcionista genial, nasceu numa chácara no Morro do Livramento, hoje Bairro da Saúde no Rio. Na foto abaixo, vê-se o Cais de São Cristóvão, onde "Machadinho", para os íntimos, costumava pegar uma barca para se deslocar até o centro da cidade. Quando subiu na vida, graças a uma promoção no serviço público concedida pela Princesa Isabel e ao dinheiro que recebia dos direitos autorais de seus livros e de suas colaborações na imprensa, Machado mudou-se para o Catete, bairro luxuoso na época. O autor terminaria seus dias polindo o tapete da ABL, sua Casa, e morando solitário no Cosme Velho, um bairro da alta aristocracia.




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17.4.06

Ángel González




Esto no es nada


Si tuviésemos la fuerza suficiente
para apretar como es debido un trozo de madera,
sólo nos quedaría entre las manos
un poco de tierra.
Y si tuviésemos más fuerza todavía
para presionar con toda la dureza
esa tierra, sólo nos quedaría
entre las manos un poco de agua.
Y si fuese posible aún
oprimir el agua,
ya no nos quedaría entre las manos
nada.

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Todos ustedes parecen felices...


...Y sonríen, a veces, cuando hablan.
Y se dicen, incluso,
palabras
de amor. Pero
se aman
de dos en dos
para
odiar de mil
en mil. Y guardan
toneladas de asco
por cada
milímetro de dicha.
Y parecen -- nada
más que parecen -- felices,
y hablan
con el fin de ocultar esa amargura
inevitable, y cuántas
veces no lo consiguen, como
no puedo yo ocultarla
por más tiempo; esta
desesperante, estéril, larga
ciega desolación por cualquier cosa
que -- hacia donde no sé --, lenta, me arrastra.



Ángel González


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11.4.06





"O século XII deixou-nos as canções de Arnaut Daniel e de Raimbaut D'Aurenga. Mas Piert Fabel com seu prosar clus (prosa hermética) foi o precursor e mestre dos grandes trovadores que influenciaram a literatura do sudeste europeu. Reinventor da abandonada tradição da poesia em prosa, Fabel canta uma ousada relação amorosa homem/mulher, que acaba por levá-lo à morte sob tortura nas prisões da Inquisição. Seu supremo engenho foi quase todo queimado. Apenas oito textos incompletos sobrevivem e chegam inexplicavelmente a nosso tempo e nossos olhos. Um deles reproduzo aqui:


EN TEL AMOR


Mireolhei en ella para com todu forço, qual gostoin ella eran, qual bonitura ella eran.


Envirei pirata en olho dela, de todos melhures maneiros. Nen carroceira, nen canruage, nen passeiande de ten a pié, só en gosto de sello à toa. Der entornei a consoir, gentil lelira caçadereira qui a min de min caças devano, eu, desvaleiro de tan trigonços chabatizmado por min de me. Y eu de min sen me tambein, scudeiro seu ante de antes, despois prostrado perante sus. Desan mentiu, despaço trus.
Que fue banqui sentimentau, mornadei lheiras y trechorei por todu min corasson desto, en desrefiu hei versos tus, mesa marquisa, qui de premiu e conseliu por de frandanças, armau venturas, de darnos rizo, rejucundae dama de siso? Dama resplente, qui de castelho mirado rau de arragrades non fui destarte, non claro puiso.

De voi cantar moderas tristes, pios de voi rescribu carteas de mor en plus, plus tambein cor, qui cestra mode e por tal forme comu ventiro dequel nenínguem sensin labor nin derramor di lagrimejas en tel amor. "




Ezra Pound, no manuscrito "The Unfound Tradition", escrito em 1954 durante sua estada no St. Elizabeth's Hospital na qualidade de "louco incurável mas inofensivo", segundo diagnósticos médicos. Agradeço ao amigo Cesar Cardoso, poeta e escritor, leitor deste blog e meu ex-colega da faculdade de letras da UFRJ, pela lembrança e envio deste fragmento de Pound, nosso inesquecível mestre de Idaho, onde ele resgata a memória de Piert Fabel.


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8.4.06

Borges e o Farrapo Humano

la gota del tiempo que vacila





Dizem que Jorge Luis Borges, poucos anos antes de morrer, visitou Nova York para uma conferência e quis conhecer, apesar de cego, todos os bares por que passou Ray Milland no filme Farrapo Humano. Borges sabia de cor o nome de todos esses bares e nessa ocasião acabou conhecendo María Panero, estudante de medicina argentina, para quem declamou 5 sonetos feitos na hora para que ela os copiasse. Disse ele que vinha pensando naqueles poemas no avião que o levou de Buenos Aires a Nova York, e que ela seria a pessoa indicada para copiá-los. Os sonetos permaneceriam inéditos pois o autor não levou uma cópia e María não conseguiu enviar a ele a cópia que ficara consigo. Anos após a morte do autor, José Manuel Martell, especialista em Borges, confirmou a autoria ao ler os sonetos, argumentando no entanto que deviam ser rascunhos mentais dos anos 60 que o autor nunca quis publicar mas que usava como isca para conseguir alguma mulher por quem se interessava. Mais recentemente estes sonetos foram disponibilizados na rede pelo poeta colombiano Harold Alvarado Tenorio e aqui publico um deles:


Ya somos el olvido que seremos.
El polvo elemental que nos ignora
y que fue el rojo Adán y que es ahora
todos los hombres y los que seremos.
Ya somos en la tumba las dos fechas
del principio y el fin, la caja,
la obscena corrupción y la mortaja,
los ritos de la muerte y las endechas.
No soy el insensato que se aferra
al mágico sonido de su nombre,
pienso con esperanza en aquel hombre
que no sabrá quien fui sobre la tierra.
Bajo el indiferente azul del cielo,
esta meditación es un consuelo.



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Na foto, o escritor fracassado, vivido por Ray Milland no cinema, bebendo em seu bar favorito, o lendário Clarke's, na Terceira Avenida.


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7.4.06





bife de oião









- verbete do Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro, 2004.


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4.4.06

Damaris Calderón




Jardim Inglês


Os jardineiros
têm uma rara vocação para a simetria
e recortam as palavras sicômoro,
salgueiro, abeto, carvalho.
Guardam as proporções
como guardam suas partes pudendas.
E exercem sem condescendência
a ordem universal
porque o homem
-- como o pasto --
também deve ser cortado.



Mescal

No fundo
de uma garrafa
de mescal
-- como ao final --
nos espera o verme.
Mastigo na terra seca
esse brancor
de cercas vivas
para saber
o que sabe
aquele que nos comerá.



Os Outros

Sobre mim
crescerá
o capim
que pisotearão
os cavalos
de Átila.



Damaris Calderón, poeta cubana nascida em 1967. Tradução minha para este blog.


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