20.12.05

o português da estrada etc. etc.



(foto lá de Goianá -- MG)


17.12.05

Guia para ter cultura de Paulo Francis 1991



Pedem minha ficha acadêmica para jovens vestibulandos... Não tenho. Tentei um mestrado na Universidade Columbia em Nova York 1954, mas desisti, aconselhado pelo professor-catedrático Eric Bentley. Achou que eu perdia o meu tempo. Li toda a literatura relevante, de Ésquilo a Beckett, e sabia praticamente de cor a Poética de Aristóteles. Em alguns meses se lê tudo que há de importante em teatro. Li e reli anos a fio.
Mas, sem o doutorado ou nem sequer mestrado, me proponho fazer algumas indicações aos jovens, que, no meu tempo, seriam supérfluas, mas que, hoje, talvez tenham o sabor de novidade. Falo de se obter cultura geral. É fácil.
Educação era a transmissão de um acúmulo de conhecimentos. Hoje, é uma adulação da juventude, que supostamente deve fazer o que bem entende, estar na sua, como dizem, e o resultado é que os reitores de universidades sugerem que não haja mais nota mínima de admissão, que se deixe entrar quem tiver nota menos baixa. Deve haver exceções, caso contrário o mundo civilizado acabaria, mas a crise é real, denunciada por gente como o príncipe Charles, herdeiro do trono inglês, e por intelectuais como Alan Bloom, que consideram a universidade perdida nos EUA. No Brasil, houve a Reforma Passarinho nos anos 1980. A ditadura militar tinha o mesmo vício da esquerda. Queria ser popular. Era populista. Quis facilitar o acesso universitário ao povo, como reza o catecismo populista. Ameaça generalizar o analfabetismo.
Não há alternativa à leitura. Me proponho apontar alguns livros essenciais ao jovem, um programa mínimo mesmo, mas que, se cumprido, aumentará dramaticamente a compreensão do estudante do mundo em que está vivendo.
Começando pelo Brasil, é indispensável a leitura de Os sertões, de Euclides da Cunha. É curto e não é modelo de estilo. Euclides escreve como Jânio Quadros fala. É cara do far-te-ei, a forma oblíqua de que Jânio se gaba. Mas o livro é de gênio. Nos dá a realidade do sertão, que é, para efeitos práticos, o Brasil quase todo, tirando o Sul; a realidade do sertanejo, e do nosso atraso como civilização, como cultura, como organização do Estado. Euclides mostra o choque central entre o Brasil que descende da Europa e o Brasil tropicalista, nativo, selvagem. Euclides apresenta argumentos hoje superados sobre a superioridade da Europa, mas nem por isso deixa de estar certo. Tudo bem ter simpatia pelo índio e o sertanejo, o matuto, mas nosso destino é ser, à brasileira, à nossa moda, um país moderno nos moldes da civilização européia. Euclides começou o livro para destruir Antônio Conselheiro e a Revolta de Canudos, mas se deixou emocionar pela coragem e persistência dos revoltosos e terminou escrevendo um grande épico, em prosa, que o poeta americano Robert Lowell, que só leu a tradução, considera superior a Guerra e paz, de Tolstoi.
Mas o importante para o jovem é essa escolha entre o primitivo irredentista dos Canudos e a civilização moderna, porque é o que terá de enfrentar no cotidiano brasileiro. É o nosso drama irresolvido.
Leia algum dos grandes romances de Machado de Assis. O mais brilhante é Memórias póstumas de Brás Cubas. Para estilo, é o que se deve emular. O coloquialismo melodioso e fluente de Machado. É um grande divertimento esse livro. Eu recomendaria ainda para os que tem dificuldade de manejar a língua O memorial de Aires. É o livro mais bem escrito em português que há.
Os gregos são um dos nossos berços. Representam a luz e a doçura, na frase de um educador inglês, Mathew Arnold (também poeta e crítico). Arnold falava contra a tradição judaico-cristã, dominante na nossa cultura, na nossa vida, a da Bíblia e do Novo Testamento, que predominaram no mundo ocidental desde o século V da Era Cristã, quando o imperador romano Constantino se converteu ao cristianismo. Estudos gregos sérios só começaram no Século XIX, quando se tornaram currículo universitário, porque antes os padres e pastores não deixavam.
Mas leia originais. Escolhi quatro. Depois de se informar sobre Platão na enciclopédia do seu gosto, se deve ler A apologia, que é a explicação de Sócrates a seus críticos, quando foi condenado à morte, e Simpósio, um diálogo de Platão. Platão não confiava na palavra escrita. Dizia que era morta. Preferia a forma de diálogo.
Na Apologia se discute o que é mais importante na vida intelectual. A liberdade de ter opiniões contra as ortodoxias do dia. Ajudará o estudante a pensar por si próprio e ter a coragem de suas convicções.
Depois, o delicioso Simpósio. É uma discussão sobre o amor, tudo que você precisa saber sobre o amor sensual, o altruístico, o que chamam de platônico, é o amor centrado na sabedoria.
Platão colocou, à parte Sócrates, seu ídolo, no Diálogo, Aristófanes, o grande gozador de Sócrates. Na boca de Aristófanes põe uma de suas idéias mais originais. Que o ser humano era hermafrodita, parte homem parte mulher, e que cada pessoa, depois da separação, procura recuperar sua parte perdida, e daí a predestinação da mulher certa para um homem e do homem certo para uma mulher.
Imprescindível também ler As vidas, de Plutarco, o grande biógrafo da Antiguidade. Ficamos sabendo como eram os grandes nomes em carne e osso, de Alexandre, paranoico, a Júlio César, contido, a Antônio e Cleópatra. Shakespeare baseou grande parte de suas peças em Plutarco e leu em tradução inglesa, porque Shakespeare, como nós, não sabia latim ou grego. E, finalmente, como história, leia A Guerra do Peloponeso, de Tucídides. É sobre a guerra entre Atenas, Esparta, Corinto e outras, durante 27 anos, no século V antes de Cristo. Lendo sobre Péricles, o líder ateniense, Cleon, o führer espartano, e Alcebíades, o belo, jovem e traiçoeiro Alcebíades, nunca mais nos surpreenderemos com qualquer ato de político em nossos dias. É o maior livro de história já escrito. Sempre atual.
Da Roma original basta ler Os Doze Césares, de Suetônio, e Declínio e queda do Império Romano, de Gibbon. Mais um banho de natureza humana.
Meu conhecimento científico é quase nenhum. Mas li, claro, a Lógica da pesquisa científica, de Karl Popper, quando entendi o que esses cabras querem. Para quem quer um começo apenas, recomendo o prefácio do Novum Organum, de Francis Bacon, que quer dizer, o título, novo instrumento, e Bacon explica o método científico e o que objetiva a ciência. E para complementá-lo leia o prefácio dos Os princípios matemáticos da filosofia natural, de Isaac Newton, e o prefácio de Bertrand Russell e Alfred North Whitehead de seus Princípios da matemática. Também vale a pena ler a História da filosofia ocidental, de Bertrand Russell, e o capítulo sobre Positivismo lógico que é a filosofia calcada no conhecimento científico. Em resumo, tudo que pode ser provado lógica e matematicamente, é filosofia.O resto não é. Acho isso perfeitamente aceitável. Dispenso o resto.
É nas artes que está a sabedoria. Como viver bem sem ler Hamlet, de Shakespeare? Está tudo lá em linguagem incomparável, é de uma clareza exemplar, tudo que nós já sentimos, viremos a sentir, ou possamos sentir.
Preferi citar junto com Shakespeare uma peça grega, que considero vital: Antígona, de Sófocles. Há uma tradução de Antígona, em verso, por Guilherme de Almeida, que Cacilda Becker representou no Teatro Brasileiro de Comédia.
Antígona é o que há de melhor na mulher. É a jovem princesa cujos irmãos morreram em rebelião contra o tio, o rei Creon, e ela quer enterrá-los, porque na religião grega espíritos não descansam enquanto os corpos não são enterrados. Creon não quer que sejam enterrados, como advertência pública a subversivos. Antígona desafia Creon. Ele manda matá-la. Ela morre. Seu noivo se suicida. É o filho de Creon, que enlouquece. Parece um dramalhão, mas não é. É a alma feminina devassada em toda sua possibilidade fraterna. Hegel achava que Antígona era o choque de dois direitos, o direito individual e o direito do Estado. E assim definiu a tragédia.
A melhor história de Roma é a de Theodore Mommsem. A melhor história da Renascença é a de Jacob Buckhardt. Tudo que você precisa saber.
E aprenda com um dos mais famosos autodidatas, Bernard Shaw (o outro é Trotski). Leia todos os prefácios das peças dele. São uma história universal. Um estalo de Vieira na nossa cabeça. Em um dia você lê todos. Anotando, uma semana. Também vale a pena ler a Pequena história do mundo, de H.G.Wells, superada em muitos sentidos, mas insuperável como literatura.
Passo tranquilo pelo Iluminismo. Foi tão incorporado a nossa vida, que não é necessário ler Voltaire ou Diderot. Os livros de Peter Gay sobre o Iluminismo são excelentes. Dizem tudo que se precisa saber. Se se quer saber mesmo o que foi o cristianismo, a obra insuperada e As confissões de Santo Agostinho, uma das grandes autobiografias, à parte a questão religiosa.
Não é preciso ler Origem das espécies, de Darwin, mas é um prazer ler Viagens de um naturalista ao redor do mundo, as aventuras de Darwin como botânico e zoólogo, a bordo do navio inglês Beagle, nos anos 1830, pela América do Sul, com páginas inesquecíveis sobre Argentina, Brasil e Galápagos, que está até hoje como Darwin encontrou (e o Brasil e Argentina, na sua alma?)
Houve três grandes revoluções no mundo, a americana, a francesa e a russa. A literatura não poderia ser mais copiosa. Mas basta ler, por exemplo, Cidadãos, de Simon Schama, para se ter um relato esplêndido da revolução interrompida, 1789-1794, na França, e concluir com o livro de Edmund Wilson, Rumo à Estação Finlândia. Schama é conservador, Wilson não era, quando escreveu, fazia fé, ainda na década de 1930, como tanta gente, na Revolução Russa. Mas a esta altura, e mesmo antes de ele morrer, em 1972, é fácil notar que a Revolução Russa não teve o Terror interrompido, como a Francesa, mas continuou até Gorbachev revelar o seu imenso fracasso.
O melhor livro sobre a Revolução Francesa é História da Revolução em França, de Edmund Burke, de 1790, que previu o Terror de Robespierre e Saint-Just. Se o estudante quer um livro a favor da Revolução Francesa, leia, o título é o de sempre, o de Gaetano Salvemini. A favor da russa a de Sukhanov, que a Oxford University Press resumiu num volume, ou A Revolução Russa, de Trotski, um clássico revolucionário. Mas os fatos falam mais alto que o brilho literário de Trotski.
Sobre a Revolução Americana não conheço livro bom algum traduzido, mas por tamanho e qualidade, um volume só, sugiro a da editora Longman, A History of the United States of America, do jovem historiador inglês Hugh Brogan, 749 págs, apenas, quando comprei custava US$ 25. Tem tudo que é importante.
Em economia, a Abril publicou 50 volumes dos principais economistas. Eu não perderia tempo. Têm tanta relação com a nossa vida como tiveram Zélia e a criançada assessora. Mas há o Dicionário de Economia, também da Abril. Quando tascarem o jargão, você consulta para saber, ao menos, o que significa a embromação. Economia se resume na frase do português: quem não tem competência não se estabelece.
Dos romances do século XIX, Guerra e paz, de Tolstoi, e Crime e castigo, de Dostoievski, me parecem absolutamente indispensáveis. Guerra e paz porque é o retrato completo de uma sociedade como uma grande família, porque rimos e choramos sem parar, porque contém um mundo e as inquietações do protagonista, Pierre Bezhukov, que até hoje não foram respondidas. Crime e castigo, porque exemplifica toda a filosofia de Nietzsche de uma maneira acessível e profundamente dramática, de como o cérebro humano é capaz de racionalizar qualquer crime, que tudo é relativo, em suma, a pessoa que pensa e age, como Raskolnikoff, o protagonista. Vale tudo. Dostoievski, para nos impedir de aniquilar uns aos outros, acrescenta que não se pode viver sem piedade.
Dos modernos, Proust é maravilhoso, mas penoso, Joyce é desnecessário, mas vale a pena ler as obras-primas de Thomas Mann, A montanha mágica, para saber o que foi discutido filosoficamente neste século, e Dr. Fausto, que leva o relativismo niilista que domina a cultura moderna e de que precisamos nos livrar, se vamos sobreviver culturalmente, como civilização, e não como meros consumidores, num nível abjeto de satisfação animal.
Há muitas obras que me encantaram e não estou, de forma alguma, excluindo autores ou quaisquer livros. A lista que fiz me parece o básico. Em algumas semanas, duas horas por dia, se lê tudo. Duvido que se ensine qualquer coisa de semelhante nas nossas universidades. Se eu estiver enganado, dou com muito prazer a mão à palmatória.


15.12.05

Roberto Schwarz

Depois do telejornal


Pela terceira vez explico a manobra legal usada contra os pretos ativistas à velha tia surda que visito em Nova York. Seus olhos cansados postos em mim, também as mãos, são da irmã que envelhece noutro continente. Está aqui desde 42. Fugiu aos nazistas em 39, foi internada em 40 num campo francês, em 41 passou para um quartel em Casablanca, perdeu a mãe em Buchenwald e costurou seis dias por semana, 25 anos, numa fábrica de roupas no Bronx. Sem entender acena ao sobrinho do Brasil -- onde as coisas vão mal -- a cabeça que não pacienta mais com as lutas infindáveis do planeta. -- Sei que você vai dizer que explico fatos sociais como se fossem naturais, e vai pensar que sou uma velha. Mas às vezes acredito nalgum defeito genético do homem. Senão por que este gosto de brigar? É tudo muito, muito triste, e eles enquanto isto, os donos da vida como dizem os outros, os donos dos meios de produção -- a lepra do mundo, me entenda bem! a lepra do mundo -- nos acabam de trabalho, desemprego, guerra ou loucura.

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Divagações no cais


Há fuga de capitais
devido às medidas policiais
nesta não acredito mais
onde estais
que não nos achacais
meus sentimentos nacionais
diluem-se mais e mais
estranha essa paz
o que será que preparais

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Vejo num globo terrestre
de portaria de hotel
a familiar cara larga
e torta do Brasil
simpática, geografia
não é história




- Em Corações veteranos, 1974.

13.12.05




E a primeira, e a primeira, e a primeira memória, memória que tenho, que tenho de meu pai é dele me colocando no refrigerador. Ele tinha o hábito de tirar toda a roupa do meu corpo de cinco anos de idade e eu ficava sentada nua naquela prateleira prateada da geladeira. ... Então ele se abaixava em direção à gaveta dos legumes, abria a gaveta e tirava as cenouras, o aipo, a abobrinha, os pepinos. E aí ele começava a trabalhar o meu buraquinho, meu pequeno buraquinho, meu pequeno pequeno buraquinho. Meu buraquinho de menina. Me mostrando "como é ser como a mamãe", ele diz. Me mostrando "como é ser uma mulher, ser amada. Essa é uma tarefa para o papai", ele me diz. Trabalhando meu buraquinho. ... Então ouço minha mãe chegar em casa. E ela começa a gritar a plenos pulmões. "O que aconteceu com os legumes do jantar de hoje? Você andou brincando com sua comida de novo, menina? Eu ia fazer a receita favorita do seu pai." Eu apenas quero gritar, mas não posso, claro, "Mamãe, abra seus olhos! VOCÊ NÃO SABE QUE EU SOU A FAVORITA DO PAPAI?"



Karen Finley, no monólogo do "Refrigerador", San Francisco, 1990. Na foto, a polêmica autora e performer atuando em George and Martha, 2004.


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7.12.05

Oswald de Andrade



Fatigado
Das minhas viagens pela terra
De camelo e táxi
Te procuro
Caminho de casa
Nas estrelas
Costas atmosféricas do Brasil
Costas sexuais
Para vos fornicar
Como um pai bigodudo de Portugal
Nos azuis do clina
Ao solem nostrum
Entre raios, tiros e jabuticabas.



Oswald de Andrade, "Fim de Serafim", 1929.


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6.12.05

Poesia africana

Poesia africana -- 2 momentos



Ser tigre


O tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo,
infra-sémen.

Não tem forma,
é quase nada, parece morto.

Porém existe,
por isso espera.

Epopéia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,

Ele será
quando for tempo disso.


(Arménio Vieira, Cabo Verde, 1999.)

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Em teus dentes


Em teus dentes
o sol
é diamante de fantasia
a lua
caco-de-garrafa
e
a mentira
verdade vagabunda
errando de cágado
em torno da lagoa dos olhos da noite
na treva aveludada
de tua pele
os dedos curiosos
são estrelas de marfim
à busca
de um dia caprichoso
despontando de miragem
por detrás das corcundas de elefantes adormecidos


(Arlindo Barbeitos, Angola)



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4.12.05

Tudo começou quando eu tinha 12 anos. E agora vou ter de contar isso por escrito porque meu médico mandou. Não estou com a menor paciência para revelações íntimas a esta altura da vida e ainda por cima domingo à noite. Mas o médico diz que escrever vai me ajudar porque ele acha que eu preciso de ajuda. Diz que tudo que é escritor é maluco e que só não estão trancafiados num hospício porque a sociedade ainda valoriza os livros porque dão um bom dinheiro a quem disfarça bem a maluquice. Ele disse isso, eu fiquei olhando, tentando entender por que o meu caso era motivo de comentários sobre literatura. Eu quero mais é que os escritores se fodam se eles gostam de lavar o rabo em público, mas parece que meu médico não pensa assim quando pensa. Eu quando penso, penso exatamente assim. Eu não gosto de lavar o rabo em público e vou ter que lavar porque tudo começou quando eu tinha 12 anos e um dia acordei gorda e peluda. Pêlos debaixo do braço, nas pernas, na buceta. E a pele inchada. Camadas de gordura se acumulando por baixo, sem que eu tivesse feito qualquer coisa que provocasse isso. Modificaram meu corpo sem a minha autorização. Os médicos disseram que era normal. Ouvi uma conversa de hormônios, tireóide, glândulas disso, glândulas do caralho e todos aqueles polissílabos que hoje qualquer ignorante diplomado ou não aprendeu a repetir na televisão sem entender xongas. Porque gente burra é mercadoria que não falta. E daí eu tinha 12 anos, acordei peluda e gorda e peguei uma gilete e cortei tudo. Pêlos e pele. Eu me furei como se fura um balão de aniversário, pra ver se desinchava. Não desinchou e fui parar no hospital. Fiquei umas duas semanas lá, até passar o risco de infecções. Voltei magra. Precisava ver. Meus pais até passaram a reparar em mim. Não bem em mim, mas na minha tentativa de suicídio, o que me pareceu o novo nome que eles deram pra mim. Tentativa de Suicídio, sexo feminino, branca, 12 anos. Não tive do que reclamar. A rua inteira, o colégio, o pessoal da praia, todos passaram a me ver com novos olhos. Eu me conferira um novo poder. Eu agora tinha poder sobre o meu corpo. Podia modificá-lo quando bem quisesse. Quando o mundo se acostumava com minha aparência, eu mudava tudo. Fazia dietas sucessivas de engorda e emagrecimento. Cabelo curto, cabelo grande. Loura, morena, grisalha, ruiva, verde, roxa. Alta, baixa, banho tomado, suja. Roupa nova e limpa, rasgada e fedorenta. Isso pra falar o mínimo que não estou aqui pra dar detalhe a vagabundo. Hoje em dia ninguém se mete mais. Médicos, especialistas, amigos ou parentes. Eles sabem que isso é coisa minha. Que sou feliz assim. E sempre forneço um espetáculo à parte. Devem se divertir à minha custa, os pobres de espírito. Falam pelas minhas costas, que eu sei. Eles pensam que vivo de costas. Que se fodam. Já foi determinado, é minha lei, ninguém se meta com o prazer que tiro de minhas experiências com o corpo. Quem não se interessa, que se foda também. A quem se interessa posso dizer que já fiquei 3 semanas sem dormir, 3 meses sem comer, 4 meses sem me mexer sentada numa cadeira de frente pra parede, 17 minutos debaixo d'água, 39 horas dentro de uma sauna na temperatura máxima, 4 dias sem roupa num freezer de açougue, troquei de cara 6 vezes, 23 transfusões de sangue, provei tudo que é droga e remédio, posso dizer isto tudo e muito mais mas não quero me exibir. Eu morri? Não morri. Se quisesse contar vantagem tinha aceito a proposta de um primo idiota e ido trabalhar num circo fazendo dupla com a gorila da mãe dele. Não fui. Será que meu médico vai gostar deste relato? Acho que não, médicos já ouviram falar de cada coisa, são todos pervertidos. Se ele soubesse da surpresa que estou preparando pra ele, não ia desfilar por aí com aquela carinha bonita que estou querendo pra mim.

maira parula



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2.12.05

Gregório de Matos


QUANTA ADMIRAÇÃO QUE LHE CAUSARAM AS MUDANÇAS DO SÍTIO.


Ou o sítio se acabou,
ou o mudaram daqui,
ou eu às cegas o vi,
e a cegueira me cagou:
quando o sítio me logrou,
ou eu o sítio lograva,
o sítio me enfeitiçava,
pelo sítio me morria,
pelas fêmeas, que ali via,
pelas saídas, que achava.

Havia umas fermosuras
mui ledas, e mui louçãs
para qualquer sim mui chãs
para qualquer não mui duras:
hoje há quatro más figuras
mui presumidas, e inchadas,
querem-se muito adoradas,
porém com pretexto errado,
e é que ao fazer do pecado
são fidalgas estiradas.

Outras putinhas malsins
me têm cercado de sorte,
que por ver-me em mãos da morte
não me dão descarga aos rins:
mas como nestes confins
tenho tanta parentela,
dando uma vista a Castela
me deparou logo Amor
na terra uma linda flor,
no céu uma rica estrela.

Fretei-a a pouco trabalho,
e mui pouco me custou,
porque era do ferro, ou
porque era amiga do alho:
veio buscar-me sem falho,
inda durava o luar,
não veio para ficar,
mas eu contudo finquei-o:
com que se a ficar não veio,
contudo veio a fincar.

Como tenho já segura
a carne no garavato,
me rio, que o sítio ingrato
tenha, ou não tenha fartura:
porque em sendo conjuntura,
que é lá pela noite alta,
nunca a Mulatinha falta,
e dêem-me outra Parda forra
em que tudo isto concorra,
geme, gosta, atura, e salta.



Gregório de Matos


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29.11.05

Montale




sempre più addentro, sempre più nel cuore




20.11.05




O único problema
do haicai é que você
mal começa e aí



Roger McGough



4.11.05

Guimarães Rosa



Dizem que o Rosa é regionalista... Eu me divirto muito com isso, porque dizem que eu fiz uma paisagem, um crepúsculo mineiro, e não é nada de crepúsculo mineiro, é um crepúsculo que eu vi na Holanda, misturei com umas coisas que eu vi em Hamburgo, com coisas de Minas, misturei tudo aquilo e joguei lá -- e as pessoas dizem que estou fazendo uma cena do interior de Minas, eu estou fazendo é um omelete ecumênico. O Rosa é como uma ostra: projeta o estômago para fora, pega tudo, de todas as fontes possíveis e introjeta de novo no estômago, mastiga tudo aquilo e produz o texto.


Guimarães Rosa, em conversa com Haroldo de Campos relatada no documentário Os nomes do Rosa, 1996.



3.11.05

Hector Yánover




Poema


Eu quero ser aberto por punhais
e escavado no fundo dos meus ossos.
Quero abrir esta alma que me morde
como se abre uma noz, ver o que encontro.
Quero saber bem claro isto da vida:
que louco insaciável represento,
de que sede, que febre somos feitos.




Hector Yánover







30.10.05

2 poemas de Luiza Neto Jorge



Alguém se me assemelha
e me quer para si



Poema Quase Epitáfio
Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões

- Senhor demónio dos sós
Quando ele morrer
onde o pões?

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As Casas Vieram de Noite


As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas



Luiza Neto Jorge

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28.10.05

Ana C



Estou jogando na caixa do correio mais uma carta para você que só me escreve alusões, elidindo fatos e fatos. É irritante ao extremo, eu quero saber qual foi o filme, onde foi, com quem foi. É quase indecente essa tarefa de elisão, ainda mais para mim, para mim! É um abandono quase grave, e barato. Você precisava de uma injeção de neo-realismo, na veia.


(Pensando em você não é bem o termo. Você na minha pele, me ocorrendo sem querer, até lembrança de perfume.)



Ana C., em Luvas de pelica, 1980.


26.10.05

Murilo Mendes



Propõe-nos Toledo um encontro de culturas díspares -- a cristã, a judia, a mourisca -- bem como a superposição de camadas do tempo. Mas outros dados poderão excitar o hóspede: também o caráter duro da sua posição natural, as rochas, a presença do Tejo de águas severas; suspenso na altura o casario cor de sangue coagulado, as pontes tão próximas, tão distantes; a mole da catedral e do castelo de San Servando, os restos da arquitetura árabe.

***

Na Idade Média Toledo foi centro de alquimistas, de iniciados em ciências esotéricas, artes mágicas, inclusive na arte do demônio, cultivando-se também a cabala, ritos ocultos. Para isso teria contribuído a influência israelita.

***

Isabel a Católica costumava dizer: "Sólo mi siento necia en Toledo." Aludia em particular à mordacidade do espírito das toledanas, o que é confirmado por Azorin: "estas toledanitas son terribles".

***

Procuro pelas ruas moças e mulheres que se assemelhem a outras, pintadas por El Greco. Através das grades daquele convento de freiras atingem-me ecos dum canto com algo de oriental ou não. Sinos ouvem-se de todas as partes, conforme a cantiga popular colhida por Dámaso Alonso: "campanillas de Toledo,/ óigoos y no vos veo". Descubro uma loja onde me forneço de mazapán, estupendo doce árabe a base de amêndoas. É dia de Corpus Christi: as casas acham-se pavesadas, e as ruas atapetadas de folhagem. Sai a procissão percorrendo o centro; o cardeal primaz levanta no ar a pesada custódia do século XVI, invenção de Juan de Arfe; distinguem-se hábitos escuros ou variopintados de membros de ordens religiosas que eu julgava extintas de há muito. Decora externamente a catedral uma série de tapeçarias antigas: vestiram a pedra para a festa. Os turistas que contavam regressar a Madrid no ônibus da tarde impacientam-se: a corrida só terminará de noite. Festa de Corpus Christi e tourada no mesmo dia, quase na mesma hora: somente na Espanha isto sucede, indicando aspectos contrastantes do seu gênio. Mas eu não volto hoje a Madrid: como de outras vezes dormirei em Toledo; aqui a noite ainda consegue dispor de filtros mágicos; ajuda a funcionar o motor da história toledana, áspera.



Murilo Mendes, em "Espaço Espanhol, 1966-1969".



18.10.05

Christophe Tarkos

poésie impure: "d'une violangue proétique"




Eu atravesso a ponte, a ponte atravessa o Sena, eu atravesso o Sena, caminho ao longo da ponte, eu não paro, quando caminho eu olho o Sena, a água, sigo por uma ponte, caminho sobre a água, a ponte passa sobre a água, a ponte é longa, eu caminho longamente, vou bem junto ao parapeito da ponte, a ponte passa por cima do Sena, olho o Sena, a água, a água cinza, não estou só, o Sena não está só, estou sobre uma ponte, eu caminho olhando para o rio, a água do rio, a água cinza do rio, eu sigo por um dos lados da ponte, a ponte se alonga de uma margem a outra do Sena, eu caminho de cabeça baixa, a ponte deixa o Sena correr, não olho para a correnteza, tenho sob os olhos a água cinza e larga que passa, eu passo, eu caminho, eu sigo meu rumo, sigo a ponte, eu atravesso a ponte, reparando de vez em quando na água cinza do Sena, a ponte larga atravessa toda a largura do Sena, eu apenas caminharei.


Christophe Tarkos




16.10.05

Orides Fontela: Toda palavra é crueldade



Peixe
pescado
descobre o ar:

não volta para
contar.



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14.10.05




A poesia é um jogo em que,
sob uma realidade
aparente, aparece uma
outra de repente.

...............

Depois de escrever o poema,
os limites da página já não estão
onde foi cortado o papel.

...............

Pego a régua,
a caixa de compassos
e começo a riscar
e desenhar.

Passa um pássaro e o poema acaba.

................

São tantas as diferenças que noto
entre o que sinto e o que vejo,
que, se me lembro de tragédias
pessoais, acendo um cigarro
e saio do poema.



Joan Brossa, 4 poemas.


13.10.05

(.) (.)




Dizem que boi preto, em noite preta, entende o cochicho da gente.





Guimarães Rosa







25.9.05



Gosto de bares assim, logo que abrem para a noite. Quando o ar em seu interior ainda está fresco e limpo, tudo brilha e o barman dá uma última olhada em si mesmo no espelho, para ver se a gravata está no lugar e se o cabelo está bem penteado. Gosto das garrafas limpas no fundo do bar e dos belos copos brilhando, dessa expectativa toda. Gosto de ver o barman misturar o primeiro drinque da tarde e colocá-lo no copo com canudo e gelo e um pequeno guardanapo de papel dobrado ao lado. Gosto de apreciar isso tudo bem devagar. O primeiro e tranqüilo drinque da tarde num bar tranqüilo -- é ótimo... Álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo, o terceiro, mera rotina. Depois disso, tira-se a roupa da garota.



Raymond Chandler, em O longo adeus, 1953.


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23.9.05

É sempre o mesmo cachorro velho com uma coleira nova





"A Inglaterra daria boas-vindas e apoiaria um Hitler que oferecesse paz e tolerância."


Winston Churchill, o baluarte da democracia ocidental, em ensaio escrito em 1939 mas que viria à luz somente nos anos 60 (New York Times, 12-12-1965). A frase-título do post é de um operário catalão anarquista a respeito do governo da República durante a guerra civil espanhola.


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21.9.05

Dorothy Parker




Uma rosa perfeita


Dele só ganhei até hoje uma flor
E tão terna, com um coração à espreita
Pura, púrpura, tendo do orvalho o odor
Uma rosa perfeita.

Já conheço a linguagem do buquê
"Nestas frágeis folhas, meu coração se estreita"
E imagino perfeitamente em quê:
Numa rosa perfeita.

Por que é que nunca me dão
uma limusine perfeita, acaso você suspeita?
Ah, não, o meu destino é ganhar sempre
Uma rosa perfeita.



Dorothy Parker


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16.9.05




Projecto de Sucessão


Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra.

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponhas as mamas de fora
pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitroglicerina
deixar de fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.



António Maria Lisboa

imagem: Laurent Askienazy


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9.9.05

Paulo Coelho: uma leitura acadêmica








Nunca é demais lembrar a realidade do texto como coisa de palavras, onde identidade e valor se medem pela fluência de seus próprios materiais icônicos. Com isto em mente, Roman Iákobson sustentou a tese de que, na prosa, há uma inclinação natural para a metonímia e, na poesia, para a metáfora. No entanto, o que se observa na obra-invenção de Paulo Coelho é a transvaloração desta dupla polaridade, a saber, prosa/poesia e metonímia/metáfora.

A obra coelhiana transfigura, de forma irreconhecivelmente original, os dois universos de representação. Ao manipular livremente os pretextos sígnicos como se os transformasse em transparências, opacidades, Coelho des-hierarquiza o ritual/valor simbólico das palavras, atribuindo-lhes uma nova configuração numa hierarquia já agora transubstancializada dos caracteres físicos, articulando assim os novos signos-transparências numa espécie de descontexto em que falarão de tudo, menos do universo que o autor-leitor-autor vê a sua volta. Na recusa ao jogo fácil da poesia-dicionário e da prosa factual, Coelho implode o arame farpado das categorizações da literatura programática que se fez até agora para reinstaurar sua palavra liquidificada, transluzente e desritualizada no terreno livre, opaco e universal da pluri/nanossignificância, reinscrevendo assim o corpus literário no plano que lhe é de direito: um turbilhonante amálgama individuado de significados sem significado e de significantes des-significantizados.

Assim sendo, não seria hiperbólico afirmar que James Joyce e Guimarães Rosa têm em Paulo Coelho um herdeiro à altura, não como um discípulo do ABC poundiano, que tanto agrada às elites acadêmicas e à crítica mambembe de nossos resenhistas literários, mas enquanto a aurora de um novo paideuma: o XYZ da literatura.


7.9.05



mas quando tu reapareces
sob o hemisfério estrelado
ó brasil
meu coração feito de pedaços
se unifica
e proclama
a independência das lágrimas




-- versos de Oswald de Andrade



30.8.05

24.8.05

Camus descobre a América


Camus descobre a América


"15 grandes cidades apitando, berrando, trabalhando, divertindo-se com uma espécie de desespero mecânico."

"os americanos são cordiais, hospitaleiros e indiferentes, que se satisfazem depressa, e esquecem depressa."

"o segredo de qualquer conversa aqui é falar para não dizer nada: Good morning, Good morning. Do you like America, Mr. Camus?, Ok, I like it very much. Nice country, is it not?, It is. Will you come back again?, Sure. Etc. etc. "

"durante dias passeei por Nova York com os olhos cheios de lágrimas... simplesmente porque o ar da cidade é cheio de ciscos... É desse modo, enfim, que carrego Nova York em mim, como quem leva no olho um corpo estranho, insuportável e delicioso, com lágrimas de enternecimento e fúrias de rejeição a tudo. Talvez seja isso que chamamos de paixão..."

"sim, gosto das manhãs e das noites de Nova York. Gostei de Nova York com aquele amor possante que às vezes nos deixa cheios de incertezas e de ódio, precisando de um exílio."

"minha curiosidade por este país cessou de repente. Como acontece com alguns seres dos quais me afasto sem explicação e sem mais interesse. E certamente enxergo as mil razões que podemos ter para nos interessar por ele, seria capaz de apresentar sua defesa e apologia, posso descrever sua beleza e seu futuro, mas simplesmente meu coração parou de falar."


-- passagens extraídas de sua correspondência particular e de seu diário, por ocasião de sua viagem aos EUA em 1946 para uma série de palestras e o lançamento da edição americana de O estrangeiro. Em terras americanas, Camoose, como era chamado lá, observou com interesse o abuso do uísque entre intelectuais, o luxo e o mau gosto até nas gravatas, o hábito de sucos de frutas pela manhã, de sorvetes deliciosos, das doses de vitaminas, de ovos com bacon, as drásticas variações de temperatura, a Broadway e seus teatros, as luzes de néon, Chinatown, o Bronx, o Harlem, o Brooklyn, o jazz, as boates, os cafés-concertos burlescos e os estranhos costumes funerários dos americanos. Na volta a Paris, após 12 dias de navio, Camus traz na bagagem 80 quilos distribuídos por caixas de açúcar, café, ovos em pó, alimentos para bebês, comidas em conserva, sabonetes e sabão em pó. (in Albert Camus, Une Vie, Olivier Todd, 1996.)


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16.8.05

Gertrude Stein



I like the feeling the everlasting feeling of

sentences as they diagram themselves



As long as the outside does not put a value on you it remains outside but when it does put a value on you then it gets inside or rather if the outside puts a value on you then all your inside gets to be outside.





14.8.05

Cruz e Sousa



Elizirna! Elizirna!

Como faz a gente pensar nos mundos de além, emigrar, boemizar, para a gare azul dos sonhos estrelados de auroras, o teu perfil correto, linha direita de imperatriz da Rússia.

Como essa cintura, mais delicada e galante do que a pétala branca, de leite, da deliciosa magnólia, quando a gente te vê elegantemente espartilhada, jubilosa, parecendo uma alegria do céu, tantaliza e arrebata os bravios leões do desejo.

Elizirna! Elizirna!

E a tua epiderme, macia, jambosa, com a penugem veludínea do pêssego, molar com a suavidade doce do creme, e o frescor perfumoso da malva-maçã; de um róseo queimado, a tua epiderme, flor azul dos luares brancos, impressiona o nervosismo, dá irritabilidades espasmódicas.

E a música do teu laringe, o gargantear cantarolante do cristal, semelhante ao tinido miúdo, claro, sonoro de uma campainha elétrica, vibrada num palácio de vidro, como prostra a alma num êxtase, num êxtase...

Elizirna! Elizirna!

E a curva do teu colo, a abençoada curva do teu colo!

Quantos ideais meus, quantas cismas encharcadas no licor saborosíssimo da ventura que palpita, que ferve, que escalda e esbraseia, não foram flutuar, boiar no maciosíssimo topázio rico do teu colo moreno, como um batalhão triunfal de pássaros vermelhos, nos fluidos da enorme concha de alabastro do firmamento.

Elizirna! Elizirna!...

Pomba doce dos países de ouro.

E a tua boca, cor de pitanga madura, levemente roxa, esse escrínio rútilo dos meus beijos, esse fruto ruborizado, polposo, sempre aromático, infiltrado do sândalo agradável da mocidade, do gosto saudável da beleza pura, castíssima, frescurizada, vegetabilizante, como é consoladora e boa.

Elizirna! Elizirna!

E a tempestade negra dos teus cabelos, cortada pelos fuzis dos meus olhares, por onde o vento absurdo, desabrido, das minhas desgraças, faz ziguezagues e esfuziotes continuados; o mar profundo e vão dessas tranças, por onde o meu destino naufraga desoladoramente, como eu acho terrivelmente deslumbrante, esmagadoramente belo...

Elizirna! Elizirna!...

E os teus olhos, filha, abundantes de cousas celestiais, fartos das bênçãos do gozo, inundados dos equatorianos rosicleres primaverinos, cheios dos pizzicatos, dos acceleratos das paixões, como iluminam e cantam...

Elizirna! Elizirna!...

Parecem dois sóis esplendorosíssimos, os teus olhos, cada qual com um sabiá dentro, abrindo, cristalinizadoramente, em trilhos gorjeadores, a bravuresca garganta lírica...




Cruz e Sousa

3.8.05




Diálogo entre os escritores José Lins do Rego e Graciliano Ramos nos tempos do getulismo:


-- Mestre Graça, se a situação continuar deste jeito, vamos comer merda!

-- Se sobrar pra nós, Zé Lins. Se sobrar...



31.7.05




A primeira cabeça cortada a gente nunca esquece


Prezado Almocreve


Pois foi. Antesmente lhe agradeço as palavras tam gentis, fiz gosto. O senhor não carecia de. Um chamego é sempre bom, faz a p'ssoa sentir que está falando consigo mesma, aconchegando pertinho. Tão pertinho que posso lhe contar a confidência de como surgiu meu amor por Lampião. Assim, eu menina ainda, meus velhos me arrastaram prum museu aqui da ex-capital do Brasil. Um museu formoso, cheio de histórias e pertences de reis de Portugal, carruagens e coisas, mais ossadas de animais e vidas num formol, nem mais lhe relato porque o senhor deve de saber imaginar aquilo tudo que há dentro de uma casa dessas. Apois foi que meu olho bateu num mostruário de vidro com as cabeças duns cangaceiros, pura verdade. Lampião e Maria Bonita entre elas. Meu bestunto ainda mirrado naqueles dias quase perdeu a mão. Num se faz isso nem com uma criança, o senhor não acha, acha? Foi dali que nasceu doído meu amor pelo cangaço e pelo xaxado, que um dia lhe ensino a dançar, se o senhor fizer gosto. O xaxado como Lampião inventou: aquele ruidim que as pisadas de alpercatas faziam no chão arenoso e pedregulhoso do sertão.

Sem mais pra lhe dizer, que o dia hoje tá uma leseira só, deixo aqui uma toada popular pra alegrar quem tem calo no coração:

Eu canto o que sucedeu
Na sombra da gameleira:
Foi um tiro de ronqueira
O peido que a doida deu.
Toda terra estremeceu,
Abalou Assuaçu!
Ela mexendo um angu,
Puxou a perna de lado,
Deu um peido tão danado,
Quase não cabe no cu.


Que a Nossa Senhora das Vassouras lhe proteja.


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20.7.05

Luiza Neto Jorge





A cabeça em ambulância

Há feridas cíclicas há violentos vôos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã

ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos

ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta

quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura, de infância

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Venho de dentro, abriu-se a porta...

Venho de dentro, abriu-se a porta:
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.

Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo
de só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra

Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvolução do corpo.




17.6.05

Fazer poético: lição de João Cabral


como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar o poema.


João Cabral de Melo Neto, no poema "Alguns Toureiros", 1954-55.


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12.6.05

Mario Benedetti



Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque viestes a recolher tua imagem
e és melhor do que todas tuas imagens
porque és linda desde o pé até a alma
porque és boa desde a alma a mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça

porque és minha
porque não és minha
porque te vejo e morro
e pior que morro
se não te vejo amor
se não te vejo

porque tu sempre existes onde quer que seja
porém existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que amar-te amor
tenho que amar-te
ainda que esta ferida doa como dois
ainda que te busque e não te encontre
e ainda que
a noite passe e eu te tenha
e não.




11.6.05

Conde de Lautréamont




Para construir mecanicamente o miolo de uma história de adormecer, não basta dissecar asneiras e embrutecer poderosamente em doses repetidas a inteligência do leitor, de maneira a tornar paralíticas as suas faculdades para o resto da vida, pela infalível lei do cansaço; é preciso, além disso, com um bom fluido magnético, pô-lo engenhosamente na impossibilidade sonâmbula de se mexer, forçando-o a escurecer os olhos, contra o que lhe é natural, pela fixidez dos nossos. Quero eu dizer, para não me fazer compreender melhor mas apenas para desenvolver o meu pensamento, que ao mesmo tempo interessa e irrita por uma harmonia das mais penetrantes, que não acredito que seja necessário, para atingir o fim que nos propomos, inventar uma poesia inteiramente fora do caminho habitual da natureza, e cujo sopro nocivo pareça transtornar até as verdades absolutas; mas conseguir tal resultado (aliás conforme às regras da estética, se pensarmos bem) não é tão fácil como se pensa: era o que eu queria dizer. É por isso que envidarei todos os meus esforços para o conseguir! Se a morte detiver a magreza fantástica dos dois braços compridos dos meus ombros, utilizados no lúgubre esfarelamento do meu gesso literário, quero pelo menos que o leitor de luto possa dizer consigo mesmo: "Há que lhe fazer justiça. Cretinizou-me muito. Que não teria ele feito se tivesse podido viver mais! É o melhor professor de hipnotismo que conheço!"



Conde de Lautréamont, em Cantos de Maldoror, 1869.



6.6.05

Duas canções do tempo do beco


Primeira canção do beco


Teu corpo dúbio, irresoluto
De intersexual disputadíssima,
Teu corpo, magro não, enxuto,
Lavado, esfregado, batido,
Destilado, asséptico, insípido
E perfeitamente inodoro
É o flagelo de minha vida,
Ó esquizóide! ó leptossômica!

Por ele sofro há bem dez anos
(Anos que mais parecem séculos)
Tamanhas atribulações,
Que às vezes viro lobisomem,
E estraçalhado de desejos
Divago como os cães danados
A horas mortas, por becos sórdidos!

Põe paradeiro a este tormento!
Liberta-me do atroz recalque!
Vem ao meu quarto desolado
Por estas sombras de convento,
E propicia aos meus sentidos
Atônitos, horrorizados
A folha-morta, o parafuso,
O trauma, o estupor, o decúbito!



Segunda canção do beco


Teu corpo moreno
É da cor da praia.
Deve ter o cheiro
Da areia da praia.

Deve ter o cheiro
Que tem ao mormaço
A areia da praia.

Teu corpo moreno
Deve ter o gosto
De fruta de praia.
Deve ter o travo,
Deve ter a cica
Dos cajus da praia.

Não sei, não sei, mas
Uma coisa me diz
Que o teu corpo magro
Nunca foi feliz.



Manuel Bandeira


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29.5.05

A poesia de Glauber Rocha




Não é mais possível esta festa de medalhas,
este feliz aparato de glórias,
esta esperança dourada nos planaltos!
Não é mais possível esta festa de bandeiras
com Guerra e Cristo na mesma posição!

Não é possível a impotência da fé
a ingenuidade da fé...

Vejo campos de agonia,
Velejo mares do Não...
Na ponta da minha espada
Trago os restos da paixão
Que herdei daquelas guerras.
Umas de mais, outras de menos,
Testemunhas silenciosas
Do sangue que nos sustenta.
Convivemos com a morte.
Dentro de nós a morte se converte
Em tempo diário, em derrota
Do quanto empregamos,
Ao passo que vamos, recuamos.

Não anuncio cantos de paz
Nem me interessam as flores do estilo.
Como por dia mil notícias amargas
Que definem o mundo em que vivo.
Não me causam os crepúsculos
A mesma dor da adolescência.
Devolvo à paisagem
Os vômitos da experiência...

Quando a beleza é superada pela realidade,
Quando perdemos nossa pureza nestes jardins de males tropicais,
Quando no meio de tantos anêmicos respiramos
O mesmo bafo de vermes em tantos poros animais,
Ou quando fugimos das ruas e dentro da nossa casa
A miséria nos acompanha em suas coisas mais fatais
Como a comida, o livro, o disco, a roupa, o prato, a pele,
O fígado de raiva arrebentando, a garganta em pânico
E um esquecimento de nós inexplicável,
Sentimos finalmente que a morte aqui converge
Mesmo como forma de vida, agressiva.

Qual o sentido da coerência?
Dizem que é prudente observar a História sem sofrer.
Até que um dia, pela coincidência,
As massas tomem o poder...
Ando nas ruas e vejo o povo fraco, abatido,
Este povo não pode acreditar em nenhum partido.
Este povo cuja tristeza apodreceu o sangue
Precisa da morte mais do que se pode supor.
O sangue que em seu irmão estimula a dor,
O sentimento do nada que faz nascer o amor,
A morte enquanto fé e não como temor.

#

Estou morrendo agora, nesta hora.
Estou morrendo neste tempo.
Estou correndo meu sangue e minhas lágrimas.
Ah, Sara! Todos vão dizer que sempre fui um louco,
um anarquista, que sempre...
Ah, não sei, Sara...
Até quando suportaremos?
Até quando além da fé e da esperança suportaremos?
Até quando além da paciência e do amor suportaremos?
Até quando além da inconsciência?
Até quando? Até quando, Sara?
Sara, foi tudo por amor a você...


-- poemas esparsos do personagem Paulo Martins do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, 1967.


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21.5.05



Posso ter sido eu mesma, mas sem que me surpreendesse,
o que havia significado
ser alguém completamente diferente.


Wislawa Szymborska


20.5.05

Adélia Prado



Cinzas


No dia do meu casamento eu fiquei muito aflita,
Tomamos cerveja quente com empadas de capa grossa.
Tive filhos com dores.
Ontem, imprecisamente às nove e meia da noite,
eu tirava da bolsa um quilo de feijão.
Não luto mais daquele modo histérico,
entendi que tudo é pó que sobre tudo pousa e recobre
e a seu modo pacifica.
As laranjas freudianamente me remetem a uma fatia de sonho.
Meu apetite se aguça, estralo as juntas de boa impaciência.
Quem somos nós entre o laxante e o sonífero?
Haverá sempre uma nesga de poeira sob as camas,
um copo mal lavado. Mas que importa?
Que importam as cinzas,
se há convertidos em sua matéria ingrata,
até olhos que sobre mim estremeceram de amor?
Este vale é de lágrimas.
Se disser de outra forma, mentirei.
Hoje parece maio, um dia esplêndido,
os que vamos morrer iremos aos mercados.
O que há neste exílio que nos move?
Digam-no os legumes sobraçados
e esta elegia.
O que escrevi, escrevi
porque estava alegre.


Adélia Prado


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18.5.05

Oração a Oxum



Ora iê iê ô Oxum,
Salve dourada senhora
Da pele de ouro!
Benditas são suas águas,
e essas mesmas águas lavam meu ser
e me livram do mal.

Oxum, Divina Rainha, bela orixá,
venha a mim, caminhando na Lua Cheia.
Traga, mãe, em suas mãos,
os lírios do amor e da paz.
Dai-me o néctar da sua doçura.

Mãe do ouro, da beleza e do amor,
Senhora do mais puro Axé,
valei-me hoje e sempre.
Aiê iê ô Oxum!


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14.5.05

Cecily von Ziegesar

brunch no domingo

No fim da manhã de domingo, a escadaria do Metropolitan Museum of Art estava abarrotada de gente. Turistas, principalmente, e moradores que tinham vindo em uma breve visita para poder se gabar com os amigos e aparentar cultura.

Dentro do museu, estavam servindo um brunch na ala egípcia para todos os membros do conselho do museu e suas famílias. A ala egípcia era um cenário soberbo para festas noturnas -- em ouro brilhante e exótica, com o luar brilhando dramaticamente em todas as modernas paredes de vidro. Mas era totalmente inadequada para um brunch. Salmão defumado, ovos e faraós egípcios mumificados realmente não combinam. Além disso, o sol da manhã brilhava tão forte pelas paredes de vidro oblíquas que até a mais leve ressaca parecia dez vezes pior.

Quem foi o idiota que inventou o brunch? O único lugar decente para ele nas manhãs de domingo era a cama.

A sala estava cheia de grandes mesas redondas e moradores recém-lavados do Upper East Side. Eleanor Waldorf, Cyrus Rose, os van der Woodsen, os Bass, os Archibald e seus filhos estavam ali, todos sentados em volta de uma mesa. Blair sentou-se entre Cyrus Rose e a mãe, mal-humorada. Nate, intermitentemente chapado, bêbado ou inconsciente desde sexta-feira, parecia tonto e amarrotado, como se tivesse acabado de acordar. Serena usava uma das roupas novas que tinha comprado com a mãe na véspera e estava com um novo corte de cabelo, com camadas suaves emoldurando o rosto. Estava ainda mais bonita do que nunca, mas nervosa e quicando depois de beber seis xícaras de café. Só Chuck parecia tranqüilo, bebericando satisfeito seu Bloody Mary.

Cyrus Rose cortou a omelete de salmão e alho-poró ao meio e a enfiou em um pão de centeio.

-- Estou louco para comer ovo -- disse ele para ninguém em particular, dando uma mordida faminta. -- Sabe quando o seu corpo diz que você precisa de uma coisa? O meu está gritando: "Ovo, ovo, ovo!"

E o meu está gritando: "Cala a porra dessa boca!", pensou Blair.

Blair empurrou seu prato para ele.

-- Toma, fica com o meu. Detesto ovo.

Cyrus empurrou o prato de volta.

-- Não, você está em fase de crescimento. Precisa dele mais do que eu.

-- Ele tem razão, Blair -- concordou a mãe dela. -- Coma seu ovo. Vai fazer bem a você.

-- Ouvi dizer que ovo dá brilho aos cabelos -- acrescentou Misty Bass.

Blair sacudiu a cabeça.

-- Eu não como aborto de galinha -- disse ela, obstinada. -- Me dá enjôo.



Cecily von Ziegesar, em Gossip Girl, vol. 1. Considerada a "Sex and the City" versão adolescente, a série Gossip Girl virou best-seller nos EUA. Aqui vai trilhando o mesmo caminho.


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3.5.05

Günter Grass

Pontualidade


No andar debaixo
uma jovem mulher
bate no filho
a cada meia hora.
Por isso vendi
o meu relógio
e só me oriento
pela mão severa
do andar debaixo,
os cigarros contados
ao alcance de minha mão.
Tenho o tempo bem medido.


Günter Grass, trad. MP.

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2.5.05



O que há em mim é sobretudo cansaço --
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.
Essas coisas todas --
Essas e o que falta nelas eternamente --;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada --
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...


Álvaro de Campos, 1934.

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27.4.05

José Craveirinha





Aforismo


Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

(1968)




Fábula


Menino gordo comprou um balão
e assoprou
assoprou com força o balão amarelo.

Menino gordo assoprou
assoprou
assoprou
o balão inchou
inchou
e rebentou!

Meninos magros apanharam os restos
e fizeram balõezinhos.



José Craveirinha, considerado o maior poeta da língua portuguesa na África e um dos maiores escritores africanos.

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23.4.05

Manicure


Fui atender uma ligação no celular ontem e senti um cheiro de cocô. Não era aquele cheiro forte de quando se pisa em merda e sai-se por aí carimbando a calçada, era algo mais sutil. Um cheiro leve mas decidido: era bosta, sem dúvida.

Cheirei a mão e lá estava o motivo. Debaixo do canto da unha, marotamente escondida, estava a prova orgânica da minha dedada matinal em Teresa. Se a Interpol precisasse me foder, nem precisava solicitar exame de DNA. Teresa tem um amarelo clarinho que é só dela.

É por essas e outras que sou um cara prevenido. Saquei do bolso do paletó minha escova de dentes, entrei no McDonald's mais próximo e fiz a higiene do dedo, cantinho por cantinho, bastante água e sabão.

Preciso parar com essas sacanagens na escada do prédio da empresa.


Jair Beirola, para quem aprecia pornoerotismo e escatologia com bom humor.

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20.4.05

Arqueologia do poder




Bento I (575-579) - fracassou em todas as suas tentativas de restabelecer a ordem na Itália e França controladas pelas invasões bárbaras e ensanguentadas pelas disputas internas.

Bento II (684-685) - seu primeiro ato foi conseguir do imperador um decreto que abolia o privilégio de imperadores confirmarem a escolha do papa.

Bento III (885-858) -- fomentou a luta contra os sarracenos. Amado pelo povo, tentou ser derrubado por antipapistas mas foi defendido pelo povo.

Bento IV (900-903) -- em meio a corrupção generalizada, conservou a integridade da Santa Sé. Transformou Ludovico de Borgonha em imperador de Roma.

Bento V (964-966) - passa por períodos turbulentos e só assume após a pressão de francos e romanos. Mesmo assim Bento V e Leão VIII intitulam-se papa simultaneamente.

Bento VI (973-974) - converteu os húngaros ao cristianismo. Acabou encarcerado e estrangulado pelo seu sucessor, o papa Bonifácio VII (que mataria outros papas e acabou também deposto e assassinado).

Bento VII (974-983) - reprimiu os abusos e a ignorância reinantes na Itália e no mundo cristão, deu grande impulso à agricultura. Bento VII e Bonifácio VII intitularam-se papa simultaneamente.

Bento VIII (1012-1024) - comprou o ofício papal. Derrotou os sarracenos que atacaram o litoral da Itália, proibiu que os padres se casassem. Simultaneamente os católicos elegem Gregório VI como antipapa de Bento VIII.

Bento IX (1032-1045) -- compra o ofício papal e elege-se papa aos 12 anos. Foi obrigado a renunciar por interesses econômicos e políticos e denúncias de corrupção.

Bento X (1058-1059) - antipapa. Devido a um cisma, foi eleito pelo partido romano; os reformistas elegeram como papa Nicolau II. Bento X passaria em brancas fumaças.

Bento XI (1303-1304) homem de paz, tentou resolver os conflitos entre Roma e França. Morreu envenenado.

Bento XII ( 1334-1342) -- combateu heresias, o nepotismo e a simonia.

Bento XIII (1724-1730) - aboliu a pena de excomunhão para quem cheirasse rapé na Basílica Vaticana; proibiu o jogo a dinheiro. Aceitou ser papa por imposição do Superior Geral de sua Ordem.

Bento XIV (1740-1758) - atraiu os protestantes para a Igreja. Proibiu a escravização dos índios.

Bento XV (1914-1922) -- assumiu uma postura de neutralidade durante a Primeira Guerra Mundial, apesar de suas tentativas para negociar a paz. Fez a reforma administrativa da Igreja.

Bento XVI (2005-?) - ex-filho de policial, ex-Juventude Hitlerista, ex-soldado de infantaria na Alemanha nazista, ex-desertor do exército nazista, ex-prisioneiro de guerra dos alemães, ex-padre, ex-professor de teologia, ex-reitor de universidade, ex-arcebispo, ex-prefeito do ex-Tribunal da Inquisição (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), ex-teólogo conselheiro especialista no combate ao marxismo e ao ateísmo no movimento estudantil dos anos 60, opositor à teologia da libertação e a inúmeras outras denominações cristãs, ao controle da natalidade, ao feminismo e à união homossexual, ex-braço-direito de João Paulo II, ex-cardeal.

Vamos pedir piedade, Senhor, piedade...

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18.4.05

Argonautas



"Se uma alma
Quer se conhecer
É numa alma que ela deve se olhar":
Foi no espelho que
Vimos o inimigo e o estrangeiro.
Eram rapazes valentes, companheiros, não se queixavam
Nem da sede nem da fadiga nem do frio,
Faziam como as árvores e as ondas
Que aceitam o vento e a chuva,
Aceitam o sol e a noite,
E em meio à mudança, permanecem sem mudar.
Eram rapazes valentes. Dia após dia,
Suando nos remos, os olhos baixos,
Respirando em cadência,
O sangue colorindo-lhes a carne dócil.
Um dia cantaram, de olhos baixos,
Enquanto passávamos pela ilhota deserta das figueiras da
Barbárie
Rumo ao poente, depois do cabo dos cães que ladram.
Se ela quer se conhecer, diziam eles,
É numa alma que deve se olhar,
E os remos braceavam o ouro do mar em meio ao crepúsculo.
Dobramos muito cabos, muitas ilhas, o mar
Que dá em outro mar, gaivotas e focas.
Mulheres lacrimosas lamentavam-se às vezes
E choravam os filhos perdidos,
Outras, em furor, reclamavam Alexandre
E suas glórias submersas nas profundezas da Ásia.
Abordamos plagas cheias de aromas noturnos,
Cantos de aves, fontes que deixavam nas mãos
A lembrança de grande felicidade.
Mas não tinham mais fim aquelas viagens.
A alma dos companheiros confundiu-se com os remos e com
as cavilhas,
Com a austera figura de proa,
A esteira do leme,
A água dispersando seus rostos.
Um após outro, os companheiros morreram,
De olhos baixos. Seus remos
Indicam na praia o lugar onde repousam.

Ninguém se lembra. Justiça.


Georgios Seféris, em "Argonautas", anos 30.


11.4.05

Serguei Iessiênin




Dois poemas

A confissão de um vagabundo

Nem todos sabem cantar,
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.

Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.

Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então, limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.

Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro,
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim.
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.

Pobres, pobres camponeses,
Por certo estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.

Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de noiva.

Amo a terra.
Amo demais minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos dos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?

E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E o mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.

Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.

Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo...
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.

Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Pégaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos.
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.

Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.

(1920)


Iessiênin nasceu em 1895 e foi um dos maiores poetas russos. Aos 30 anos suicidou-se num quarto de hotel em Leningrado cortando os pulsos e se enforcando. Alcoólatra, casou cinco vezes e três de suas esposas foram a atriz Zinaida Raich, a dançarina americana Isadora Duncan e a neta de Tolstoi. Contudo, o que é pouco mencionado foram seus relacionamentos clandestinos com homens. Antes de suicidar-se escreveu com sangue um poema de despedida dedicado ao poeta Anatoli Marienhof, com quem vivia há quatro anos:



Até logo, até logo, meu companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.


 (tradução Augusto de Campos)




30.3.05

antroponímia

Abrilina Décima Nona Caçapavana Piratininga de Almeida
Alce Barbuda
Barrigudinha Seleida
Cafiaspirina Cruz
Chevrolet da Silva Ford
Cólica de Jesus
Colapso Cardíaco da Silva
Comigo é Nove na Garrucha Trouxada
Dezêncio Feverêncio de Oitenta e Cinco
Éter Sulfúrico Amazonino Rios
Foca Bilota
Gerunda Gerundina Pif Paf
Graciosa Rodela D'Alho
Hepotamedes Maria Good Good
Himeneu Casamentício das Dores Conjugais
Ilegível Inelegível
Inocêncio Coitadinho Sossegado
Janeiro Fevereiro de Março Abril
Joaquim Casou de Calças Curtas
José Marciano Verdinho das Antenas Longas
Jotacá Dois Mil e Um
Kussen Pestana
Letsgo
Magnésia Bisurada do Patrocínio
Maria da Segunda Distração
Maria Panela
Maria Passa Cantando
Maria Tributina Prostituta Cataerva
Naída Navinda Navolta Pereira
Ocricocrides de Albuquerque
Pália Pélia Pília Púlia dos Guimarães Peixoto
Pedrinha Bonitinha da Silva
Placenta Maricórnia da Letra Pi
Restos Mortais de Catarina
Sete Rolos de Arame Farpado
Soraiadite das Duas a Primeira
Última Delícia do Casal Carvalho
Voltaire Rebelado de França


-- nomes de brasileiros registrados em cartório.

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19.3.05

Anna Akhmatova



Poeta


Que grande mistério este trabalho,
esta vida de nenhuma agrura:
espiar qualquer coisa da música
e fazê-la passar por coisa sua.

E intrometer por entre as linhas
um scherzo de outrem bem alegre,
jurando que na luz das pradarias
é teu pobre coração que geme.

Roubar qualquer coisa aos pinheiros
da negra floresta taciturna,
enquanto ergue os seus nevoeiros
a toda a volta a cortina de bruma.

E ir procurar - impudica -,
por onde calha e me aventuro,
alguns pedaços da vida oblíqua
e, ao silêncio da noite, tudo.



Anna Akhmatova, 1959.

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