31.7.06

Baudelaire: de fato e ficção



Nas "Litanias de Satã" em As flores do mal:


Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!Ó Príncipe do exílio, a quem fizeram mal
E que, vencido, sempre te ergues mais triunfal,

Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!Tu que vês tudo, ó rei das trevas soberanas,
Charlatão familiar das angústias humanas,

Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!...

E por aí vai a oração baudelaireana. Mas na intimidade do poeta, a regra era outra, já que ansiava "dirigir todas as manhãs minha oração a Deus, reservatório de toda força e toda justiça, a meu pai, a Mariette [a "ama bondosa" que o criou, celebrada nas Flores do Mal] e a Poe, como intercessores". A contradição é apontada por André Breton no Segundo Manifesto do Surrealismo em 1930, como exemplo de atitude que desonra o pensamento. Entre outras revelações, Breton entrega o dramaturgo Antonin Artaud, ex-membro da panelinha surrealista, a quem chama de informante da polícia [por estar sempre cercado de policiais na porta do Teatro Alfred Jarry] e ator exclusivamente voltado para o lucro e a fama [por encenar peças de autores que desprezava mas que obtinham patrocínio]. Muito divertidas as revelações desse Manifesto, onde se vê que o coquetismo literário e a briga de egos não são privilégio dos nossos tempos.



28.7.06




Os sinos das igrejas de Minas ainda batem uma vez a cada meia hora, seis vezes às seis horas, onze vezes às onze. E ao meio-dia ou meia-noite batem doze vezes. Todo dia. Toda madrugada. Não é para os nervos de qualquer um. Nas grandes cidades, todos os barulhos formam um só. Um imenso rugido ao fundo, indetectável, que dia após dia não damos atenção. Não ouvimos mais. Em Minas cada ruído é um só. Inacrescentável. Solitário. Metrificável ao ouvido. A folha que cai no quintal primeiro cai de pé, bandeia pro lado e por fim deita inteira. Essa queda final dura um segundo, mas você é capaz de ouvir cada movimento e, se for esperto, saberá até de que árvore partiu. Um boi mugindo, o tintim do padeiro que passa na rua, o cricri metálico das corujas acasalando no campanário, o cântico da missa, as quatro ferraduras do cavalo, o lamento sertanejo nos botequins, o último suspiro dos agonizantes -- Minas morre muito. Cada ruído é um só. O sino bate dez vezes com um intervalo de 8 segundos entre um dobre e outro. São dez horas. Meu coração ajusta seus batimentos ao tempo das badaladas. Não há pressa. Em Minas todo coração bate demorado.

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8.7.06

Baú do Raul



Hoje

Tensão total

Angústia

Apatia

Ansiedade

Dor de cabeça

Depressivo

Triste

Desanimado

Culpado

Desolado

Irritado

Mentalmente fraco

Existencialmente pesado

Falta de vontade

Labilidade


Presa fácil da minha cerebrotânica labilidade
à terrível lucidez do medíocre.
Negar que é pestilento, jamais.
O mais e o menos são valoráveis.
Porém de nada se extrai
Da média-ocridade
Idade da pedra.
Me incomodar
A dúvida que, mascarada em cão,
Ladra e morde enfermamente.
Não quero interferências banais
Interferindo no meu espírito.
Não.


Me dê um momento para não escrever,
para não ficar na necessidade de preencher coisas


me peguei com 36 de idade, fumando
e no espelho grande vi muita vontade
imediatamente saí e comprei outro igual.


Hoje é aniversário do meu pé
ele é poucos meses mais velho do que eu
foi por causa do parto de minha mãe
diz ela que, na hora que eu estava pra ser parido,
meu pé pintou primeiro e ficou dois meses de fora.
Só depois desses dois meses que o resto de mim saiu inteiro.
E como eu, paranóico, desconfio
que ele se gaba de ter dois meses de vida em minha frente
no seu aniversário eu o castigo
não colocando polvilho Granado no seu pé-de-atleta.


Amanheci determinado a mudar
agora vou ser punk até apodrecer


Pássaro negro
Corvo, por certo,
Solitário
Me olha de soslaio
Do muro do cemitério
Aí, eu olho pra ele
Fixo
Ele voa embora,
Mas volta.




Raul Seixas, do seu Baú, revirado.
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