28.10.04

Juvenilidades Auriverdes



"Pessoalmente acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Acho o Brasil infecto. Devo imenso a Anatole France que me ensinou a duvidar, a sorrir e a não ser exigente com a vida." Foi o que disse o poeta Drummond em carta enviada a Mário de Andrade no final do ano de 1924. Mário e Drummond mantiveram uma correspondência habitual ao longo de décadas, jamais conviveram assiduamente, exceto por cartas, mesmo na época em que ambos moravam no Rio de Janeiro, no final dos anos 1930. A este "desabafo escandaloso", segundo o mineiro, Mário responderia com o seu cinismo filosófico prático:

"Mas meu caro Drummond, pois você não vê que é esse todo o mal que aquela peste amaldiçoada fez a você! Anatole ainda ensinou outra coisa de que você se esqueceu: ensinou a gente a ter vergonha das atitudes francas, práticas, vitais. Anatole é uma decadência, é o fim duma civilização que morreu por lei fatal e histórica. Não podia ir mais pra diante. Tem tudo que é decadência nele. Perfeição formal. Pessimismo diletante. Bondade fingida porque é desprezo, desdém ou indiferença. Dúvida passiva, porque não é aquela dúvida que engendra a curiosidade e a pesquisa, mas a que pergunta: será? irônica e cruza os braços. E o que não é menos pior: é literato puro. Fez literatura e nada mais. E agiu dessa maneira com que você mesmo se confessa atingido: escangalhou os pobres moços fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem coragem, duvidando se vale a pena qualquer coisa, duvidando da felicidade, duvidando do amor, duvidando da fé, duvidando da esperança, sem esperança nenhuma, amargos, inadaptados, horrorosos. Isso é que esse filho-da-puta fez. Foi grande? Foi. Foi talvez mesmo genial nalgumas páginas. Pouquinhas, graças a Deus. Foi elegante, fino, sutil? Foi, foi, foi. Mas também foi filho-da-puta, porque as grandezas que engendrou não bastam pra pagar um só dos males que fez. Você diz que ele ensinou você a não ser exigente com a vida... Como isso! se você se confessa um inadaptado e tem um errado desprezo pelo Brasil e os brasileiros. O mal que esse homem fez a você foi torná-lo cheio de literatices, cheio de inteligentices, abstrações em letra de fôrma, sabedoria de papel, filosofia escrita: nada prático, nada relativo ao mundo, à vida, à natureza, ao homem. Representou a sua época. Não foi um passadista. Mas a nossa época, a sua época, Drummond, não é a época dele, e foi e é outros gatunos da laia dele que roubaram a você as riquezas da felicidade, que só pode existir nesta terra pela adaptação, pela correspondência, pelo equilíbrio. Ele não é um passadista, mas se você tiver as idéias dele, será um horroroso, ridículo passadista. Mas tudo passa, Drummond, você vai ver. Um pouco de paciência, um pouco de raciocínio, um pouco mais de farra vital, muito menos literatura, mudar um hábito antigo e então você me dirá se foi injusto ou se ficou muito aquém de toda a maldade e insulto que esse homem merecia de você... Tudo isso são caraminholas metidas na cabeça de você pelas letras do sr. France et caterva... Você faça um esforcinho pra abrasileirar-se. Depois se acostuma, não repara mais nisso e é brasileiro sem querer. "


(A íntegra desta carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade e da correspondência entre os dois foi publicada em A Lição do Amigo, 1982.)

17.10.04

Joan Airas de Santiago



Todalas cousas eu vejo partir
Todalas cousas eu vejo partir
do mund' en como soian seer,
e vej' as gentes partir de fazer
ben que soian, ¡tal tempo vos ven!,
mais non se pod' o coraçon partir
do meu amigo de mi querer ben.

Pero que ome part' o coraçon
das cousas que ama, per bõa fe,
e parte-s' ome da terra ond' é,
e parte-s' ome d' u gran[de] prol ten,
non se pode partilo coraçon
do meu amigo de mi [querer ben].

Todalas cousas eu vejo mudar,
mudan-s' os tempos e muda-s' o al,
muda-s' a gente en fazer ben ou mal,
mudan-s' os ventos e tod' outra ren,
mais non se pod' o coraçon mudar
do meu amigo de mi querer ben.


Joan Airas de Santiago, cantiga de amigo da literatura galega medieval.


16.10.04

A mulher na poesia barroca portuguesa



Mortal doença

Na febre do amor-próprio estou ardendo,
No frio da tibieza tiritando,
No fastio ao bem desfalecendo,
Na sezão do meu mal delirando,
Na fraqueza do ser, vou falecendo,
Na inchação da soberba arrebentado,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.

Na dureza do peito atormentada,
Na sede dos alívios consumida,
No sono da preguiça amadornada,
No desmaio à razão amortecida,
Nos temores da morte trespassada,
No soluço do pranto esmorecida,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.

Na dor de ver-me assim, vou desfazendo,
Nos sintomas do mal descoroçoando,
Na sezão de meu dano estou tremendo,
No ris como da doença imaginando,
No fervor de querer-me enardecendo,
Na tristeza de ver-me sufocando,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.

Vou ao pasmo do mal emudecendo,
À sombra da vontade vou cegando,
Aos gritos do delito emouquecendo,
No tempo sobre tempo caducando,
Nos erros do caminho entorpecendo,
Na maligna da culpa agonizando,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.


Soror Maria do Céu, freira também autora de autos e comédias de fundo moral para uso didático nos conventos.

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Que suspensão, que enleio, que cuidado
É este meu, tirano deus Cupido?
Pois tirando-me enfim todo o sentido
Me deixa o sentimento duplicado.

Absorta no rigor de um duro fado,
Tanto de meus sentidos me divido,
Que tenho só de vida o bem sentido
E tenho já de morte o mal logrado.

Enlevo-me no dano que me ofende,
Suspendo-me na causa de meu pranto
Mas meu mal (ai de mim!) não se suspende.

Ó cesse, cesse, amor, tão raro encanto
Que para quem de ti não se defende
Basta menos rigor, não rigor tanto.



Vozes de uma dama desvanecida
de dentro de uma sepultura que fala
a outra dama que presumida entrou em
uma igreja com os cuidados de ser vista
e louvada de todos; e se assentou junto
a um túmulo que tinha este epitáfio
que leu curiosamente

Ó tu, que com enganos divertida
Vives do que hás-de ser tão descuidada,
Aprende aqui lições de escarmentada,
Ostentarás acções de prevenida.

Considera que em terra convertida
Jaz aqui a beleza mais louvada,
E que tudo o da vida é pó, é nada,
E que menos que nada a tua vida.

Considera que a morte rigorosa
Não respeita beleza nem juízo
E que, sendo tão certa, é duvidosa.

Admite deste túmulo o aviso
E vive do teu fim mais cuidadosa,
Pois sabes que o teu fim é tão preciso.


Soror Violante do Céu, freira dominicana e um dos expoentes máximos da poesia barroca portuguesa, séc. 17.



12.10.04

A q u i
J a z



aquele cujo nome traçaram os vagalumes
cujo perfil formaram as pétalas caídas
antes do dia
e do vento



Mário Faustino, 1948