31.8.04

Parece-me por vezes que ouço dizer o vinho (ele fala com a sua alma, com essa voz dos espíritos que só pelos espíritos é ouvida) : " -- Homem, meu bem-amado, quero lançar para ti, apesar da minha prisão de vidro e dos meus ferrolhos de cortiça, um canto cheio de alegria e de esperança. Não sou ingrato; sei que te devo a vida. Sei o que te custou de trabalho e de sol nas costas. Tu deste-me a vida, eu te recompensarei. Pagar-te-ei largamente a minha dívida; porque eu sinto uma alegria extraordinária quando caio no fundo de uma garganta sedenta pelo trabalho. O peito de um bom homem é uma morada que me agrada muito mais do que estas caves melancólicas e insensíveis. É um alegre túmulo onde cumpro o meu destino com entusiasmo. Faço no estômago do trabalhador um grande reboliço, e dali, por escadas invisíveis, subo-lhe ao cérebro onde executo a minha dança suprema.

"Ouves tu agitarem-se em mim as poderosas canções dos tempos antigos, os cantos do amor e da glória? Sou a alma da pátria, meio galante, meio militar. Sou a esperança dos domingos. O trabalho faz os dias prósperos, o vinho faz os domingos felizes. Com os cotovelos assentes na mesa de família e as mangas arregaçadas, tu me glorificarás altivamente e estarás verdadeiramente contente.

"Iluminarei os olhos da tua velha mulher, a velha companheira dos teus desgostos cotidianos e das tuas velhas esperanças. Enternecerei o seu olhar e porei no fundo das suas pupilas o fogo da juventude. E ao teu filho, palidozinho, esse pobre burrico atrelado à mesma fadiga que o cavalo da charrua, dar-lhe-ei de volta as belas cores do seu berço, e serei para esse novo atleta da vida o óleo que reforça os músculos dos antigos lutadores.

"Cairei no fundo do teu peito como uma ambrosia vegetal. Serei o grão que fertiliza o sulco dolorosamente lavrado. A nossa íntima reunião criará a poesia. Nós dois faremos um Deus e voaremos para o infinito, como os pássaros, as borboletas, os fios da Virgem, os perfumes e todas as coisas aladas."

Eis o que o vinho canta na sua linguagem misteriosa. Ai daquele cujo coração egoísta e fechado às dores dos seus irmãos nunca ouviu esta canção.


Charles Baudelaire, em "Do Vinho e do Haxixe, Comparados como Meios de Multiplicação da Individualidade", 1851.


28.8.04



Cheguei na beira do porto
Onde as ondas se espáia
As garça dá meia-volta
E senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia, ai, ai, ai
Aí quando eu vim de minha terra
Despedi da parentaia
Eu entrei no Mato Grosso
Dei em terras paraguaia
Lá tinha revolução
Enfrentei fortes bataia, ai, ai, ai
A tua saudade corta
Como aço de navaia
O coração fica aflito
Bate uma, a outra faia
Os óio se enche d`água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai, ai


-- Pena Branca e Xavantinho, em "Cuitelinho".



Carvalho Júnior



Antropofagia

Mulher! ao ver-te nua, as formas opulentas
Indecisas luzindo à noite, sobre o leito,
Como um bando voraz de lúbricas jumentas,
Instintos canibais refervem-me no peito.

Como a besta feroz a dilatar as ventas
Mede por dar-lhe o bote ajeito,
Do meu fúlgido olhar às chispas odientas
Envolvo-te, e, convulso, ao seio meu t'estreito:

E ao longo de teu corpo elástico, onduloso,
Corpo de cascavel, elétrico, escamoso,
Em toda essa extensão pululam meus desejos,

-- Os átomos sutis -- os vermes sensuais,
Cevando a seu talante as fomes bestiais
Nessas carnes febris -- esplêndidos sobejos!




27.8.04



e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta...


Al Berto

25.8.04

John Lennon - Um atrapalho no trabalho



Jesus El Pifco era um estrangeiro e sabia disso. Ele tinha imigratificado de seu pequeno barraco branco em Barcelônia uns bons dezenoivos anos atrás tendo antes o cuidado de garantir um emprego como cocheiro na Escócega. O emprego era na casa do Simsenhor de MacAnus, um típico muito qualacterístico que tinha um castelo nas Highlands. A primeira coisa que Jesus El Pifco notou nos primaveiros dias foi que o Simsenhor não parecia ter nada que se assemelhasse à descrição de um coche ou mesmo uma cocheira você sabe, para seu suprêmio desgasto. Mas -- e uso a palavra em vão -- o Simsenhor parece que tinha alguns cavalos, cada um exibindo um belo par de pernas. Jesus se apaixonou por eles à primeira vista, como eles por ele, o que era muita sorte, porque os aposentos de El Pifco eram realmente no estábulo lado a lado com seus quatro nobres amigos cavalares.

Logo longo a gente dava pra ver Jesus quase todo dia, pageando os cavalos do seu patrão, penteando suas crinas e obturando seus dentes, assobiando um velho refrão espanhol sonhando com suas úteras amadas lá na terrinha em suas bastardas e brancas cabaninhas fascistas.

-- Turminha legal de cavalos, eu diria, ele observava à pequena Spastic Sporran, a camareira escorregadiça, quem ele bem não tiritava o olho desdentão Hogmanose.

-- Dá pro gasto, ela respondiva com seu lixeiro sotictac de Aberdeen-martin. Vosmecê passa mais tempo co'esses cavalos do que mecê passa comigo, com uma dessas ela se precipirulitava para suas obrigações, amarrando bem firme seu jacinto de castidade na epidorme.

Bom católico que era, Jesus limpava o cuspo da cara e oferecia a outra alface -- mas ela já tinha ido emborbas deixando ele mais uma vez numa ágata Christi.

-- Um dilha ela vai passar da conta, e eu seixo ela, ele disse ao seu cavalo Favo o Ríctus. Claro que o cavalo não responsou, porque vocês sabem eles não falam, e vê lá se iam falar logo com um comedor de alho, fedorento, baixinho, covarde, seboso, um bastardo fascista católico espanhol. Logo fizeram as aspásias e Jesus e a tal Spastic estavam de nojo unidos naquele amor sem dolores.

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(Fragmento de Um atrapalho no trabalho (1984), tradução particularíssima de Paulo Leminski ao texto A Spaniard in the Works (1965), de John Lennon. Por sua prosa pop, um mix de flash-contos, esboços de peças, poemas nonsense e desenhos, os livros de Lennon (Lennon On His Own Write e A Spaniard in the Works) têm um lugar especial na criação literária do século 20. Apesar de seus textos lembrarem o estilo de James Joyce, Lennon confessou que sua maior influência foi Lewis Carroll -- a fonte onde bebeu Joyce. Nem preciso dizer que essa tradução é na verdade uma transcriação, difícil saber onde acaba Lennon e começa Leminski.)


11.8.04

Junqueira Freire



Martírio
Beijar-te a fronte linda
Beijar-te o aspecto altivo
Beijar-te a tez morena
Beijar-te o rir lascivo

Beijar o ar que aspiras
Beijar o pó que pisas
Beijar a voz que soltas
Beijar a luz que visas

Sentir teus modos frios,
Sentir tua apatia,
Sentir até repúdio,
Sentir essa ironia,

Sentir que me resguardas,
Sentir que me arreceias,
Sentir que me repugnas,
Sentir que até me odeias,

Eis a descrença e a crença,
Eis o absinto e a flor,
Eis o amor e o ódio,
Eis o prazer e a dor!

Eis o estertor de morte,
Eis o martírio eterno,
Eis o ranger dos dentes,
Eis o penar do inferno!


Junqueira Freire, monge beneditino e poeta baiano, séc. 19.


8.8.04

Explicação de poesia sem ninguém pedir


Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.


Adélia Prado

5.8.04

Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação ou agradecimento:
(Machado de Assis)

- Uma galinha é a maneira de um ovo produzir outro ovo.
(Samuel Buttler)

- Nasci para satisfazer a grande necessidade que eu tinha de mim mesmo.
(Sartre)

- O otimista acha tudo bom exceto o pessimista. O pessimista acha tudo ruim exceto a si mesmo.
(Chesterton)

- Quando o populacho se mete a raciocinar, tudo está perdido.
(Voltaire)

- Tenho tentado viver numa torre de marfim, mas sempre uma maré de merda lhe bate nas paredes para fazê-la desabar.
(Flaubert)

- Os velhos repetem-se e os jovens nada têm para dizer. O tédio é recíproco.
(Jacques Bainville)

- Dize às vezes a verdade para que te creiam quando mentires.
(Jules Renard)

- Um idiota pobre é um idiota. Um idiota rico é um rico.
(Paul Laffitte)

- O imigrante é um indivíduo mal informado que pensa que um país é melhor que outro.
(Ambrose Bierce)

- É agradável ver o nome da gente impresso. Um livro é um livro, ainda que não contenha nada.
(Byron)

- Eu nunca viajo sem o meu diário. A gente sempre tem que ter alguma coisa sensacional para ler no trem.
(Oscar Wilde)

- Se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la.
(Balzac)

- Que homem Balzac teria sido se soubesse escrever!
(Flaubert)

- Não gosto de Deus porque não o conheço, nem do próximo, porque o conheço.
(Montesquieu)

- O homem só inventou Deus para poder viver sem matar-se.
(Dostoievski)

- O autodidata é o ignorante por conta própria.
(Mário Quintana)

- Quando o apocalipse vier, Senhor, que eu tenha pelo menos escovado os dentes!
(Eno Teodoro Wanke)

- Detesto citações.
(Emerson)



4.8.04

Agustín Garcia Calvo




Maletas
Bagagem
Bagaxe
Bagaje
Bagatge

En una equipaje caben todos los diccionarios.


De vuelta

Saber el nombre de los pueblos
por los que va pasando el tren
gracias al nombre de las estaciones
por las que va pasando el tren.


Recelos justificados

Prescindir de lo propio
no por propio o por impropio,
sino por enteramente ajeno.
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"La cultura es una fantasía que está a expensas del poder. "
"El artista es un estorbo para su obra."
"El cultivo del prestigio de los autores clásicos y contemporáneos es un juego de vanidades y engaños." Saiba mais do poeta e filólogo em uma entrevista de 2003 publicada no site Babab.


3.8.04



O maior poeta possível -- é o sistema nervoso.
O inventor do todo -- mas antes o único poeta.


Paul Valéry

1.8.04

O livro do desassossego

Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reincarnar, reincarnei sem mim, sem ter eu reincarnado. Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar. Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direcção infinítupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo ? vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo. E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda. E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrónico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.
Poder saber pensar! Poder saber sentir!
Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...


Bernardo Soares (Fernando Pessoa), em O livro do desassossego.