28.11.03

Alexandre O'Neill

Poema pouco original do medo


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

-

26.11.03

Lin Hsin Hsin

Phone-Mail


this is the phone-mail system
the party you have just called at extension 1272 is not available
you can either leave a message or transfer out of phone-mail
to leave a message, begin speaking at the tone
to transfer out of phone-mail, press zero
peee
... begin speaking at the tone
to transfer out of mail, press zero
This is ibm, good morning
Mr Lum's secretary please
one moment please

this is Karol, I am sorry I am not at my desk now
please leave a message after you hear the beep tone
if you have something urgent
please call Xiang Hoon at extension 1542
thank you

pu-pu, pu-pu, pu-pu
Hi! this is Xiang Hoon's desk, I am afraid I am not in now
please leave a message after you hear the beep tone
for urgent matters
you can contact either Ilaine at 1632
or Karol at 1273
thanks for calling

pu-pu, pu-pu, pu-pu
Hi! this is Ilaine, I am afraid I am not available
please leave a message after you hear the beep tone
for urgent matters
please call Karol at 1273
or Xiang Hoon at 1542
have a nice day, bye now

-

25.11.03

Heriberto Yépez


Tarde. Pôr-do-sol.


Na frente do cybercafé, o arco do milênio aparece refletido nas janelas do segundo e terceiro andares do dentista Lincoln. Estou aguardando uma máquina para poder escrever. Fumo um cigarro na calçada. Não é certo. São apenas palavras. Não acredite nelas. Aconteceu outro dia. Se você acredita. Mas não agora.


"Os escritores ruins revelam o ofício de escrever, porque neles tudo é grotesco, descarado. Eles deixam transparecer aquilo que os bons autores souberam ocultar e sublimar com muita eficiência. Um escritor ruim põe em evidência todos os outros escritores porque, ao abortar a escrita, deixa os segredos desta à vista de todos."


-

23.11.03


I like to have a martini,
Two at the very most.
After three I'm under the table,
After four I'm under my host.


-- Dorothy Parker

22.11.03

Dorothy Parker



Résumé


Razors pain you
Rivers are damp
Acid stain you
And drugs cause cramp
Guns aren't lawful
Nooses give
Gas smells awful
You might as well live

-

20.11.03

Era uma vez uma carta que não tinha nada de mais.
Era apenas uma folha, pequena e branca,
mas não era assim que Ivaníssia a via.
Para ela, uma folha em branco era
uma janela para um outro mundo,
nela poderia escrever o que quisesse
e ser então pássaro ou baleia, seta ou perífrase,
incandescência, brilho, amizade, paixão ou mesmo amor.

No esforço que ali se coadunava
com a mais erudita imaginação,
Ivaníssia culminou num tremendo gemido
que se viu transcender com um "sploft" suave
e um friozinho molhado na base da espinha.

Atravessou uma última vez a carta em branco
com o seu doce e agora sereno olhar,
amarrotou-a um pouco, puxou o autoclismo e limpou o rabo.


-- Filipe Goulão, em Luzes Azuis

18.11.03

Boris Vian

Tudo foi dito cem vezes


Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte e cago-vos na tromba

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12.11.03

Alexandre O'Neill


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.








11.11.03

Paul Verlaine

Gostos imperiais

Assim como Luís XV, não gosto de perfumes.
Só posso suportá-los no justo limite.
Na cama, por favor, nem frascos nem sachês!
Mas ah, que um ar singelo e picante flutue
Ao derredor de um corpo, desde que me excite;
E meu desejo preza e minha ciência aprova
No corpo apetecido, quando se desnuda,
O odor da picardia, o odor da puberdade
E o hálito excelente das belas maduras.
Mais: me fascinam (cala, moral, essa arenga)
Como dizer? Essas exalações secretas
Do sexo e arredores, antes e depois
Do abraço celestial e durante as carícias,
Sejam elas quais forem, devam ou pareçam.
Mais tarde, sonolento, com o olfato lasso,
Saciado de prazer, como os outros sentidos,
Quando meus olhos vão morrendo noutro rosto,
Quase extinto também, lembrança e previsão
Do entrelaçamento das pernas e braços,
Da união dos pés nos lençóis úmidos, vermelhos,
Sobe desse langor de agradável volúpia
Tanta humanidade que dá um certo embaraço
Mas tão bom, tão bom, que dá ganas de comer!
Como é possível desejar, por cima disso,
Uma fragrância estranha, de planta, de besta,
Mudando a percepção, confundindo os sentidos,
Quando disponho, para aumentar a volúpia,
Da quintessência, exatamente, da beleza!

-

8.11.03

Sylvia Parker




up.


is


direction


possible


only


The


-

7.11.03

Laura Riding

William e Daisy: Fragmento de uma novela inacabada


William e Daisy moravam na rua do Cemitério. Não possuíam nenhuma ligação entre si exceto que ambos não se sentiam atraídos pela vida tampouco pela morte; por isso viviam na rua do Cemitério. William era pessimista porque desgostava da vida um pouco mais do que da morte. Daisy era otimista porque desgostava da morte um pouco mais do que da vida. William tinha duas lembranças: uma, que já tivera familiaridade com prostitutas; e a segunda, que já tivera familiaridade com escritores famosos. Estas duas lembranças se confundiam e delas não tirava nenhum sentido. Daisy tinha duas lembranças: uma, que algum dia já fora prostituta; e a segunda, que no seu tempo ela havia conhecido vários escritores famosos. Estas duas lembranças se confundiam e delas não tirava nenhum sentido. Não tiravam nenhum sentido de suas lembranças exceto que ambos se sentiam muito dignos e não queriam acabar seus dias vivendo num casebre. Por isso viviam na rua do Cemitério.

Todas as noites Daisy caminhava pela rua do Cemitério e dizia "Que noite bonita" e passava ao lado de William e dizia "Que coincidência"; e a cada noite William, também, dizia "Que noite bonita" e "Que coincidência". Assim foi que os dois começaram a conhecer os pensamentos um do outro e mais do que nunca acabaram se cansando disso.

Os dois consertavam seus sapatos no mesmo sapateiro. Os dois sabiam que o sapateiro colocara uma menina para viver com ele na parte dos fundos da sapataria e que logo depois a expulsou dali quando a esposa ficou sabendo de tudo. No entanto, os dois continuaram considerando o sapateiro um bom homem porque não queriam se aborrecer por considerá-lo um mau sujeito. Os dois se arraigavam cada vez mais a suas idéias e hábitos até que...

Não sei o que foi feito dos dois. Nem eles.


-- Laura Riding

Poema de Paul Auster

White Nights


No one here,
and the body says: whatever is said
is not to be said. But no one
is a body as well, and what the body says
is heard by no one
but you.

Snowfall and night. The repetition
of a murder
among the trees. The pen
moves across the earth: it no longer knows
what will happen, and the hand that holds it
has disappeared.

Nevertheless, it writes.
It writes: in the beginning,
among the trees, a body came walking
from the night. It writes:
the body's whiteness
is the color of earth. It is earth,
and the earth writes: everything
is the color of silence.

I am no longer here. I have never said
what you say
I have said. And yet, the body is a place
where nothing dies. And each night,
from the silence of the trees, you know
that my voice
comes walking toward you.


-- Paul Auster

5.11.03

Cálculo de probabilidades


Cada vez que um dono de terra
declara: para me tirarem este patrimônio
terão de passar por cima do meu cadáver

ele deveria levar em conta
que às vezes
passam


-- Mario Benedetti

4.11.03

Em memória de Rachel de Queiroz


Talvez o último desejo


Pergunta-me com muita seriedade uma moça jornalista qual é o meu maior desejo para o ano de 1950. E a resposta natural é dizer-lhe que desejo muita paz, prosperidade pública e particular para todos, saúde e dinheiro aqui em casa. Que mais há para dizer?

Mas a verdade, a verdade verdadeira que eu falar não posso, aquilo que representa o real desejo do meu coração, seria abrir os braços para o mundo, olhar para ele bem de frente e lhe dizer na cara: Te dana!

Sim, te dana, mundo velho. Ao planeta com todos os seus homens e bichos, ao continente, ao país, ao Estado, à cidade, à população, aos parentes, amigos e conhecidos: danem-se! Danem-se que eu não ligo, vou pra longe me esquecer de tudo, vou a Pasárgada ou a qualquer outro lugar, vou-me embora, mudo de nome e paradeiro, quero ver quem é que me acha.

Isso que eu queria. Chegar junto do homem que eu amo e dizer para ele: Te dana, meu bem! Dora em vante pode fazer o que entender, pode ir, pode voltar, pode pagar dançarinas, pode fazer serenatas, rolar de borco pelas calçadas, pode jogar futebol, entrar na linha de Quimbanda, pode amar e desamar, pode tudo, que eu não ligo!

Chegar junto ao respeitável público e comunicar-lhe: Danai-vos, respeitável público. Acabou-se a adulação, não me importo mais com as vossas reações, do que gostais e do que não gostais; nutro a maior indiferença pelos vossos apupos e os vossos aplausos e sou incapaz de estirar um dedo para acariciar os vossos sentimentos. Ide baixar noutro centro, respeitável público, e não amoleis o escriba que de vós se libertou!

Chegar junto da pátria e dizer o mesmo: o doce, o suavíssimo, o libérrimo te dana. Que me importo contigo, pátria? Que cresças ou aumentes, que sofras de inundação ou de seca, que vendas café ou compres ervilhas de lata, que simules eleições ou engulas golpes? Elege quem tu quiseres, o voto é teu, o lombo é teu. Queres de novo a espora e o chicote do peão gordo que se fez teu ginete? Ou queres o manhoso mineiro ou o paulista de olho fundo? Escolhe à vontade - que me importa o comandante se o navio não é meu? A casa é tua, serve-te, pátria, que pátria não tenho mais.

Dizer te dana ao dinheiro, ao bom nome, ao respeito, à amizade e ao amor. Desprezar parentela, irmãos, tios, primos e cunhados, desprezar o sangue e os laços afins, me sentir como filho de oco de pau, sem compromissos nem afetos.

Me deitar numa rede branca armada debaixo da jaqueira, ficar balançando devagar para espantar o calor, roer castanha de caju confeitada sem receio de engordar, e ouvir na vitrolinha portátil todos os discos de Noel Rosa, com Araci e Marília Batista. Depois abrir sobre o rosto o último romance policial de Agatha Christie e dormir docemente ao mormaço.



Mas não faço. Queria tanto, mas não faço. O inquieto coração que ama e se assusta e se acha responsável pelo céu e pela terra, o insolente coração não deixa. De que serve, pois, aspirar à liberdade? O miserável coração nasceu cativo e só no cativeiro pode viver. O que ele deseja é mesmo servidão e intranqüilidade: quer reverenciar, quer ajudar, quer vigiar, quer se romper todo. Tem que espreitar os desejos do amado, e lhe fazer as quatro vontades, e atormentá-lo com cuidados e bendizer os seus caprichos; e dessa submissão e cegueira tira a sua única felicidade.

Tem que cuidar do mundo e vigiar o mundo, e gritar os seus brados de alarme que ninguém escuta e chorar com antecedência as desgraças previsíveis e carpir junto com os demais as desgraças acontecidas; não que o mundo lhe agradeça nem saiba sequer que esse estúpido coração existe. Mas essa é a outra servidão do amor em que ele se compraz - o misterioso sentimento de fraternidade que não acha nenhuma China demasiado longe, nenhum negro demasiado negro, nenhum ente demasiado estranho para o seu lado sentir e gemer e se saber seu irmão.

E tem o pai morto e a mãe viva, tão poderosos ambos, cada um na sua solidão estranha, tão longe dos nossos braços.

E tem a pátria que é coisa que ninguém explica, e tem o Ceará, valha-me Nossa Senhora, tem o velho pedaço de chão sertanejo que é meu, pois meu pai o deixou para mim como o seu pai já lho deixara e várias gerações antes de nós, passaram assim de pai a filho.

E tem a casa feita pela nossa mão, toda caiada de branco e com janelas azuis, tem os cachorros e as roseiras.

E tem o sangue que é mais grosso que a água e ata laços que ninguém desata, e não adianta pensar nem dizer que o sangue não importa, porque importa mesmo. E tem os amigos que são os irmãos adotivos, tão amados uns quanto os outros.

E tem o respeitável público que há vinte anos nos atura e lê, e em geral entende e aceita, e escreve e pede providências e colabora no que pode. E tem que se ganhar o dinheiro, e tem que se pagar imposto para possuir a terra e a casa e os bichos e as plantas; e tem que se cumprir os horários, e aceitar o trabalho, e cuidar da comida e da cama. E há que se ter medo dos soldados, e respeito pela autoridade, e paciência em dia de eleição. Há que ter coragem para continuar vivendo, tem que se pensar no dia de amanhã, embora uma coisa obscura nos diga teimosamente lá dentro que o dia de amanhã, se a gente o deixasse em paz, se cuidaria sozinho, tal como o de ontem se cuidou.

E assim, em vez da bela liberdade, da solidão e da música, a triste alma tem mesmo é que se debater nos cuidados, vigiar e amar, e acompanhar medrosa e impotente a loucura geral, o suicídio geral. E adular o público e os amigos e mentir sempre que for preciso e jamais se dedicar a si própria e aos seus desejos secretos.

Prisão de sete portas, cada uma com sete fechaduras, trancadas com sete chaves, por que lutar contra as tuas grades?

O único desabafo é descobrir o mísero coração dentro do peito, sacudi-lo um pouco e botar na boca toda a amargura do cativeiro sem remédio, antes de o apostrofar: Te dana, coração, te dana!



-- Rachel de Queiroz, em "Um alpendre, uma rede, um açude".




3.11.03

Alberto Moravia


Agnes podia ter-me avisado em vez de ir embora assim, sem sequer dizer: dane-se. Não pretendo ser perfeito e se ela me tivesse dito o que lhe faltava, poderíamos ter discutido. Mas não: durante dois anos de casamento, nenhuma palavra; e depois, uma manhã, aproveitando um instante em que eu não estava, foi embora sorrateiramente, como fazem as empregadas que arranjaram um serviço melhor. Foi-se e, ainda agora, seis meses depois que me deixou, não entendi por quê.
Naquela manhã, após ter feito as compras no mercadinho do bairro (gosto de fazer as compras eu mesmo: conheço os preços, sei o que quero, gosto de regatear e discutir, experimentar e apalpar, quero saber de que animal vem minha bisteca, de que cesta a maçã), saí novamente para comprar um metro e meio de franja para pregar na cortina, na sala de jantar. Como não queria gastar mais que o devido, dei muitas voltas antes de encontrar o que me convinha, numa lojinha na rua da Umiltà. Voltei para casa a umas onze e vinte, entrei na sala de jantar para comparar a cor da franja com a da cortina e logo vi em cima da mesa o tinteiro, a caneta e uma carta. Para dizer a verdade, o que, sobretudo, atraiu minha atenção foi uma mancha de tinta na toalha de centro da mesa. Pensei: "Mas olha, que porcalhona... manchou a toalha." Tirei o tinteiro, a caneta e a carta, peguei a toalha, fui à cozinha e ali, esfregando limão com força, consegui tirar a mancha. Depois voltei à sala de jantar, repus a toalha no lugar e, só então, me lembrei da carta. Era endereçada a mim: Alfredo. Abri e li: "Limpei a casa. O almoço você mesmo faça, que tem muita prática. Adeus. Volto para a casa de mamãe. Agnes." Por um instante fiquei sem entender nada. Em seguida reli a carta e finalmente entendi: Agnes tinha ido embora, me deixava após dois anos de casamento. Por força do hábito, coloquei a carta na gaveta do bufê onde guardo os recibos e a correspondência e sentei numa cadeira perto da janela. Não sabia o que pensar, não estava preparado para isso e quase que não acreditava. Enquanto assim refletia, bati os olhos no chão e vi uma pequena pena branca que devia ter se soltado do espanador quando Agnes tirara o pó. Catei a pena, abri a janela e a joguei fora. Depois peguei o chapéu e saí de casa.


-- Fragmento do conto "Não se aprofundar", do livro Contos romanos, 1954.