30.9.03

Baudelaire desnudado



- Deus é o único ser que, para reinar, não precisa sequer existir.

- A qualquer pessoa, desde que saiba entreter os outros, é dado o direito de falar de si.

- Gostar de mulheres inteligentes é um prazer de pederasta.

- O que me entedia na França é que todo mundo se parece com Voltaire.

- Não podendo suprimir o amor, a Igreja quis pelo menos desinfetá-lo -- por isso inventou o casamento.

- Quanto mais um indivíduo cultiva as artes, menos trepa.

- A fila de pequenos literatos que se pode ver nos enterros, distribuindo cumprimentos a torto e a direito e procurando fazer-se lembrados dos fazedores de jornais.

- O homem de espírito, aquele que nunca estará de acordo com os outros, deve esforçar-se em apreciar a conversa dos imbecis ou a leitura de livros ruins. Disso extrairá amargas alegrias que compensarão sua fadiga.

- É por não ser ambicioso que não tenho convicções, como as entendem as pessoas do meu século.

- Quando Jesus Cristo disse "Bem-aventurados os que têm fome porque eles serão saciados", limitava-se a fazer um cálculo de probabilidades.

- O amor pode provir de um sentimento generoso -- o gosto de prostituir-se -- mas é logo corrompido pelo gosto da propriedade.

- Para uma natureza tímida, a portaria de um teatro assemelha-se um pouco ao Juízo Final.

- O que há de atraente no mau gosto é o prazer aristocrático que sentimos em chocar os outros.

- A glória pessoal não é mais do que o resultado da acomodação de um espírito à imbecilidade de um povo.

- Cultivei minha histeria com prazer e terror. Ainda continuo a sentir a vertigem e hoje, 23 de janeiro de 1862, tive um estranho pressentimento: senti a fria asa da imbecilidade passar sobre mim.

29.9.03

Viver



Viver é como cavalgar um tigre,
não se pode descer de suas costas.



-- provérbio chinês



27.9.03

As coisas


A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a desvanecida
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Servem-nos, como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que partimos em um momento.


-- Jorge Luis Borges

26.9.03

Dicionário do diabo


J/ K/ L


Julgamento -- inquérito formal criado para provar e registrar a inocência de juízes, advogados e jurados.

Justiça -- uma decisão a nosso favor.

Kilt -- saiote que os escoceses usam na América e os americanos usam na Escócia.

Ladrão -- político.

Legado -- presente de alguém que está deixando este vale de lágrimas.

Lexicógrafo -- sujeito pernicioso que, com a justificativa de estar registrando determinado estágio do desenvolvimento de uma língua, faz o possível para interromper o seu crescimento, emperrar a sua flexibilidade e mecanizar os seus métodos.

Liberdade -- um dos bens mais preciosos da imaginação.

Lícito -- compatível com a vontade do juiz.

Língua -- órgão sexual que alguns degenerados usam para falar.

Linguagem -- música com a qual encantamos as serpentes que guardam o tesouro alheio.

Litigante -- pessoa que abre mão da própria pele na esperança de conservar os ossos.

Litígio -- máquina na qual entramos como porco e saímos como salsicha.

Lógica -- arte de pensar e deduzir rigorosamente de acordo com os limites e incapacidades do entendimento humano.

Longevidade -- medo da morte de duração incomum.

Loquacidade -- distúrbio que acomete um indivíduo tornando-o incapaz de refrear a própria língua sempre que nós queremos falar.

Lord -- na sociedade americana, diz-se de todo turista inglês com status superior a um verdureiro. Já os ingleses de nível inferior são chamados de "Sir".

Louco -- pessoa dotada de um alto grau de independência intelectual.

Luminar -- diz-se daquele que lança luz sobre algum tema sobre o qual um editor não quis escrever.


-- Ambrose Bierce

16.9.03

(O adeus de) Teresa


A primeira vez que eu vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna.

Quando vi Teresa de novo
Achei os olhos mais velhos do que
o resto do corpo.
(Os olhos nasceram e ficaram um
ano esperando que o resto do
corpo nascesse).

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se
mover sobre a face das águas.


-- Manuel Bandeira, em brincadeira poética com os versos de "O Adeus de Teresa", poema de Castro Alves. A intenção era fazer uma "tradução para o moderno", 1925.

12.9.03

Giórgios Makrópoulos

quartos de solteiro


Quando você aluga quartos no andar de baixo da sua casa, isso quer dizer que é domador de pássaros ou se tornou oleiro. Porque, o mais das vezes, existe um mistério no caso. Em certos momentos do dia -- precisamente os mesmos -- você ouve ruídos muito discretos de arrastar de pratos ou xícaras, ou um indefinido tic-tac de prego na parede. A armadilha, porém, não está aí. Deixe que o inquilino lhe devolva a chave e se mude, para então você descer ao andar de baixo com um olho bem alerta, disposto a resolver o mistério. Aí é que está a armadilha. Será mister você ter servido no exército como apanhador de torpedos para poder levar adiante o trabalho, agora. Porque os inquilinos costumam largar pelo chão camisas velhas, uma cédula de identidade plastificada, alguma fotografia antiga, tirada ao lado de uma estátua ou em companhia dos pais diante de um transatlântico, no balneário de Kaiáfa, ou então cartas não postadas contendo frases do tipo "Quando eu era criança, queria ser músico. Hoje sou empregado de escritório", "Não precisa me esperar no porto". Sem suspeitar de nada, você as apanha com a natural sofreguidão dos solitários. A bomba portátil explode, você sofre apenas ferimentos leves, mas eis que surgem ambulâncias de sirenes abertas, anjos de avental branco e expressão severa te carregam de maca. Você lhes grita que não é nada disso que estão pensando. Eles são surdos. Começa a juntar gente. Metem você na ambulância, que parte incontinenti. Você sempre gritando, eles sempre surdos. O espetáculo termina, o ajuntamento se dissolve, e você lá dentro da ambulância. Sempre gritando. Cuida agora de acertar as coisas com os carniceiros. De lhes falar de quartos de solteiro, enquanto eles correm agitados pela enfermaria perguntando a você acerca do infortunado boletim e do histórico da amputação. Sempre a correr, eles, e você a falar a surdos-mudos.

Eu alugo quartos. Sou um cidadão tranqüilo, escrevia poemas e não incomodava ninguém. Pois quem foi que me amputou a mão?


-- Em "Pirotécnicos", 1979.

11.9.03

De súbito, um quarto com sua lâmpada surgiu diante de mim, quase palpável em mim. Nele eu já era canto, mas os postigos me perceberam e tornaram a fechar-se.


-- Rilke, fragmento de "Ma vie sans moi", trad. francesa.

10.9.03

Federico Garcia Lorca

dois marinheiros à margem




Trouxe no seu coração
um peixe do Mar da China.

Que às vezes se vê cruzar
diminuto por seus olhos.

Esquece sendo marítimo
os bares e as laranjas.

Olha a água.




Tinha a língua de sabão.
Lavou suas palavras e calou-se.

Mundo plano, mar riçado,
cem estrelas e seu barco.

Do Papa viu os balcões
e os peitos dourados das cubanas.

Olha a água.


8.9.03

Dicionário do diabo


I


Idiota -- membro de uma grande e poderosa tribo de preponderante influência nos assuntos humanos. A atividade do idiota não se restringe a uma área específica do pensamento ou da ação, ela está em tudo. O idiota detém a última palavra em tudo, sua decisão é inapelável. Ele dita as modas, os gostos, as opiniões e estabelece os limites do discurso e do comportamento.

Ignorante -- pessoa que desconhece coisas que já sabemos e que sabe de outras que desconhecemos.

Imbecilidade -- espécie de inspiração divina que acomete os críticos severos deste dicionário.

Imigrante -- pessoa não esclarecida que acha que um país é melhor do que outro.

Imodesto -- pessoa dotada de forte concepção de seus próprios méritos e de uma frágil noção do valor dos outros.

Imoral -- inconveniente. Tudo aquilo que o ser humano acha inconveniente a determinados propósitos é rotulado de errado, doentio e imoral.

Impaciência -- esperar com pressa.

Imparcial -- incapaz de perceber uma vantagem pessoal na adoção de um dos lados de uma controvérsia ou de adotar uma de duas opiniões conflitantes.

Impiedade -- a sua irreverência à minha divindade.

Imposição -- ato de abençoar ou consagrar por meio da colocação das mãos. Cerimônia comum em muitos sistemas eclesiásticos, porém realizada com mais sinceridade por uma seita conhecida como os Ladrões.

Imposto -- preço que pagamos para poder criticar o governo.

Impostor -- aspirante rival às honras públicas.

Improvidência -- prover as necessidades de hoje com os rendimentos de amanhã.

Imprudente -- insensível ao valor de nossos conselhos.

Impunidade -- riqueza.

Incompatibilidade -- no casamento, diz-se da semelhança de desejos, particularmente o desejo de mandar.

Incorruptível -- diz-se daquele que cobra um preço alto demais.

Influência -- na política, um visionário quo que é dado em troca de um substancial quid.

Intelectual -- indivíduo capaz de pensar por mais de duas horas em algo que não seja sexo.

Intérprete -- alguém que possibilita que dois indivíduos de línguas diferentes se comuniquem mediante a repetição a cada um daquilo que o intérprete julga conveniente que seja dito de um para o outro.

Intimidade -- relação para a qual dois idiotas são arrastados para se autodestruírem.

Inventor -- sujeito que cria uma combinação de rodas, alavancas e molas e chama a isso de civilização.


-- Ambrose Bierce

4.9.03

Emil Staiger


Ao poeta lírico, propriamente, não importa se um leitor também vibra, se ele discute a verdade de um estado lírico. O poeta lírico é solitário, não se interessa pelo público; cria para si mesmo. Porém tal afirmação exige esclarecimentos. Composições líricas também são publicadas. A colheita de anos e anos é reunida e entregue a um público. Correto. Mas já aqui, num volume de poesias, "o balbucio apaixonado em linguagem escrita apresenta-se deveras estranho", como disse Goethe. E colecionar folhas soltas não parece apenas a Goethe um contra-senso. Quando o livro está pronto, o que é que o povo faz com ele? Pode-se declamar poesias líricas, mas apenas como também se pode ler um drama teatral. Recitado, um poema lírico não pode ser apreciado como merece. Um declamador a recitar, diante de uma sala cheia, poesias exclusivamente líricas transmite quase sempre uma impressão penosa. Mais plausível é um recital para um círculo pequeno, para pessoas a cuja sensibilidade possamos abandonar-nos. Mas um trecho lírico só desabrocha inteiramente na quietude de uma vida solitária. E mesmo este desabrochar não é sorte que seja dada todos os dias ao leitor. Folheamos uma coletânea de canções. Nada nos comove. Os versos nos soam vazios e surpreendemo-nos com o poeta vaidoso que se deu ao trabalho de escrever tais coisas, catalogá-las e entregá-las a seus contemporâneos e à posteridade. Subitamente, porém, numa hora especial, uma estrofe ou toda uma poesia comove-nos. A esta juntam-se outras, e chegamos quase a reconhecer que é um grande poeta que nos fala. É o efeito de uma arte que nem nos retém como a épica, nem excita e causa tensão, como a dramática. O lírico nos é incutido. Para a insinuação ser eficaz o leitor precisa estar indefeso, receptivo. Isso acontece quando sua alma está afinada com a do autor. Portanto, a poesia lírica manifesta-se como arte da solidão, que em estado puro é receptada apenas por pessoas que interiorizam essa solidão.


-- Em "Conceitos Fundamentais da Poética".