26.12.02

A revolução americana


No séc. 18, o abade Morellet, um dos líderes do Iluminismo francês, declarou que a verdadeira motivação dos americanos para a Revolução não foi se libertar da coroa inglesa, mas conseguir se livrar da cerveja inglesa para poder pôr a mão no vinho francês. Benjamin Franklin então respondeu ao abade que a prova da vontade de Deus de que o homem devia beber vinho está na localização do cotovelo. Se este ficasse localizado mais acima ou mais abaixo no braço, seria impossível levar o copo de vinho diretamente à boca. Para incrementar o debate, Franklin escreveu uma canção sobre o tema, cujos versos finais dizem mais ou menos assim:

Neste ponto da história descobrimos simplesmente
que a água não é boa nem para o corpo, nem para a mente;
que Virtude & Proteção só no vinho vamos encontrar,
e os que bebem água merecem mais é se afogar.

23.12.02

Dylan Thomas

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.
-

17.12.02

La Fontaine

Epigrama

Amar, foder: uma união
De prazeres que não separo.
A volúpia e os desejos são
O que a alma possui de mais raro.
Caralho, cona e corações
Juntam-se em doces efusões
Que os crentes censuram, os loucos.
Reflete nisto, oh minha amada:
Amar sem foder é bem pouco
Foder sem amar não é nada.
-

Goethe



Gosto de rapazes, mas muito mais de moças:
Satisfaço a moça, e ela me serve de rapaz.


-- Fragmento dos "Epigramas Venezianos".




Benjamin Péret

Ah! as mocinhas que erguem o vestido
para se esfregarem na moita
ou então nos museus
atrás de Apolos de gesso
enquanto a mãe delas compara a vara da estátua
com a do marido
e suspira
Ah! se meu marido fosse parecido
Um dia a mãe voltará sozinha ao museu
mas a filha dela fugirá pelo outro lado
vara na mão
e a mãe desolada
roubará de uma porta
a maçaneta de cristal

--  "As Ferrugens Engaioladas".

16.12.02

William Carlos Williams



Nada Ter Feito


Não não é isso
nada que eu tenho feito
nada
que eu tenho feito

é feito de
nada
e o ditongo

eu

seguido da
primeira pessoa
do singular
do indicativo

do verbo
auxiliar
ter

tudo
que eu tenho feito
dá no mesmo

se fazer
é capaz
de uma
infinidade de
combinações
envolvendo os
códigos

morais
físicos
e religiosos

pois tudo
e nada
são sinônimos
quando

a energia in vacuo
tem o poder
de confusão

que só
nada ter feito
pode fazer
perfeito





12.12.02

Augusto dos Anjos

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme -- este operário das ruínas
Que o sangue podre das carnificinas
Come e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

--  "Psicologia de um Vencido".

Tagore

Em minha frágil canoa, luto por atravessar o mar do desejo 
e esqueço que eu também estou brincando.
-

11.12.02

Você diz que sabe muito
Borboleta sabe mais:
Anda com os pés pra riba
Coisa que você não faz.

-- Trova popular, autor anônimo.

7.12.02

Murilo Mendes

O ovo é um monumento fechado, automonumento; plano-piloto, realizado agora, do germe inicial da criação.

A exemplo da torre de Pisa, o ovo não costuma sustentar-se em pé. Ninguém ignora que a torre gosta de emigrar durante a noite. De resto, ela subsiste somente porque amparada por uma pena num quadro de René Magritte.

O mesmo pintor em outro quadro Les vacances de Hegel mostra um guarda-chuva aberto: em cima pousa um copo contendo um líquido. Evidentemente todos os observadores sofrem uma ilusão de ótica, trocando o copo por um ovo, de resto mais vizinho ao pensamento do filósofo.

O ovo, objeto concreto de alto coturno, caríssimo, quase inacessível: diamante do pobre.

No meu tempo de infância, indo a noite alta a dois metros, eu já não ouvia mais o tique-taque do relógio; antes, o pulsar do ovo na sua gema, nunca sua clara.

Num tempo ainda mais recuado eu tinha medo do ovo. O medo: confere-nos uma téssera de identidade, fazendo-nos enfrentar algo de real, o próprio medo. O medo é o ovo da aventura posterior.

--  "O Ovo".

6.12.02

Vinicius

Certa época, Vinicius de Moraes andava muito incomodado com a moda de musicalização de poemas. Virou-se para Tom e pediu: "Olha, parceirinho, antes que algum aventureiro apareça, faça por favor uma musiquinha para o meu 'Soneto da Separação'." Vinicius ficou encantado com o resultado do trabalho e comentou: "Está lindo, porque é uma música que não atrapalha o soneto. Que o deixa quieto." Essa foi uma das raras vezes, na carreira do poeta, em que a música sucedeu a um poema. Tinha medo de que a música viesse incomodar os versos, acordá-los de sua elegância. Era um mestre da brandura. Vinicius não acreditava em seriedade, acreditava no momento, com o roldão de emoções caóticas que ele arrasta atrás de si. Tom nunca negou que deve tudo, ou quase tudo, a esse sentimentalista. Mas Vinicius sempre renegou a posição de mestre - o que, aliás, faz parte da posição de mestre. Enigmas que não se dão esse nome. Tom testemunhou que, de todos os enigmas, o mais atroz para o poeta era a mulher. "A mulher não é para ser entendida, é para ser amada", argumentava sempre com o parceiro. E, com um cerimonioso português castiço, completava: "Não há entender mulheres." Essas confissões de ignorância mobilizavam Tom mais do que qualquer exibição luxuosa de saber. Vinicius o guiara para a incompletude atordoante dos sentimentos, e isso agora era um caminho sem volta.

-- José Castello, "Vinicius de Moraes, Livro de Letras", 1991.

4.12.02

Na verdade, eu me sinto como se já fosse tricolor antes do Fluminense, antes de mim mesmo e até, se me permitem o exagero: eu era tricolor antes de Cristo.

-- Nelson Rodrigues, em "O Profeta Tricolor".

3.12.02

Kurt Vonnegut

Sempre tive dificuldade para terminar os contos de uma forma que satisfizesse o público em geral. Na vida real, as pessoas não mudam, não aprendem nada com seus erros e não pedem desculpas. Num conto, elas precisam fazer pelo menos duas dessas três coisas, ou será melhor jogá-lo fora na lata de lixo sem tampa presa com corrente e cadeado a um hidrante em frente à Academia Americana de Letras e Artes.
Tudo bem, isso eu podia resolver. Mas depois de fazer um personagem mudar, aprender alguma coisa e/ou pedir desculpas, isso deixava o resto do elenco parado chupando o dedo. Isso não é jeito de dizer ao leitor que o espetáculo terminou.
Quando eu era jovem e inexperiente, imaturo nas minhas opiniões e, para começo de conversa, sem nunca ter pedido para nascer, pedi conselho a meu agente literário daquela época sobre como terminar os contos sem matar todos os personagens. Ele havia sido editor de ficção de uma revista importante, além de consultor de roteiros para um estúdio de Hollywood. "Nada mais simples, meu rapaz", disse ele. "O herói monta no seu cavalo e sai cavalgando em direção ao pôr-do-sol."
Muitos anos depois, ele se mataria deliberadamente com uma espingarda calibre 12.

-- Em "Timequake".

2.12.02

Mallarmé

Embora o sino acorde uma voz que ressoa
Clara no ar puro e limpo e fundo da manhã
E desperta, infantil, uma outra voz que entoa
Um angelus por entre a alfazema e a hortelã,

O sineiro evocado à clave da ave, irmão
Sinistro cavalgando, a gemer sua loa,
A pedra que distende a corda em sua mão,
Só ouve retinir um vago som que ecoa.

Esse homem sou eu. Dentro da noite louca
Agrada-me puxar a corda do Ideal,
De pecados se alegra a plumagem leal

E a minha voz me vem aos pedaços e oca!
Mas um dia, cansado deste afã obscuro,
Ó Satã, eu roubo esta pedra e me penduro.

--  "O Sineiro".

28.11.02

Groucho Marx

Para aqueles de meus leitores que nunca viram um convidado, posso descrevê-los facilmente. São altos ou baixos, ligeiramente maltrapilhos e vêm em todas as cores. Um convidado pode ser identificado como aquele que vem a nossa casa a nosso convite. Aquele que vem sem convite ou é uma aranha viúva-negra ou um parente.
Há todo tipo de convidados. Há o convidado para jantar, a visita de fim de semana, o convidado mensal e, se você não tomar cuidado, o convidado permanente. Mas o mais inocente, o mais amigável e relativamente inofensivo de todos é o convidado para jantar.
Um jantar é geralmente composto por um grupo de seis, oito ou dez pessoas. O tamanho do jantar, é claro, depende muito do tamanho da sala de jantar. E, em muitos casos, do tamanho da cozinheira. (...) Em todo grupo de seis ou mais pessoas que vêm para o jantar, pelo menos quatro delas não só o detestam, como também à comida. Não gostar da comida é privilégio dos convidados. Eu quase sempre não gosto da comida da casa dos outros, e quando isso acontece, discretamente encho minha boca de pão e torço para que a sobremesa não seja pudim de pão. (...) Também há os casais que nunca vêm sozinhos. Sempre trazem um convidado extra, com muita elegância e esperteza. Mesmo assim, você encaixa uma cadeira extra, tira o seu belo serviço para seis e rearruma a mesa com uma miscelânea de louças de cerâmica que há anos vinha roubando de alguns dos melhores hotéis do país.
Para começar a noite com uma bomba, tem o espertinho que sempre chega uma hora antes que os outros. Se você disser: "O jantar é às sete", pode ter certeza de que ele estará lá às seis. Se disser "nove", ele chegará às oito. Não se sabe como ele entra na casa - ou é um ladrão ou um duende - ninguém jamais o escuta entrar, nenhuma porta bate, nenhuma campainha bate. (...) E existe aquele casal que sempre sai à meia-noite, mas que só chega até a porta da frente. É praticamente impossível tirá-los da casa - algo como um jogador de futebol que chega na área e não consegue marcar o gol. Esse tipo de gente que reluta em sair de perto da porta tem um rival à altura naquele outro que se levanta de vinte em vinte minutos, como se fosse ir embora. Cada vez que ele se levanta, você pula cheio de esperança e, como um cão de caça, aponta na direção do armário de casacos. Mas seu pulo foi em vão. Essa caixa de surpresas levará horas para sair!
Os métodos mais simples geralmente são os mais eficazes para se livrar dos convidados de fim de semana. Alguns comentários bem colocados durante o jantar em geral resolverão o problema. Por exemplo, quando o assado for servido, você pode se queixar:"A carne está ficando tão cara! Não é fácil manter uma família hoje em dia, sem falar nos convidados." Quando chegar à última parte desse discurso, encare o convidado. Se ele tiver algum orgulho ( e muito poucos o têm), irá para o quarto e imediatamente começará a fazer as malas. Se, no entanto, ele for o típico habitué de fim de semana, tais sutilezas são uma perda de tempo, é métodos mais esquisitos devem ser usados, mesmo e até e inclusive a força. (...) Cortar o suprimento de água e os fios telefônicos é geralmente muito eficaz. Botar fogo em sua correspondência (especialmente se for as do tipo que recebo) às vezes ajuda. Muita gente é alérgica a migalhas de bolacha na cama, e geralmente ficam prontas para partir se acordarem de manhã transformadas em costeletas de vitela empanada. (Um hóspede, contudo, ficou tão encantado com esse tratamento, que passou a comer as bolachas toda noite antes de dormir e, depois de uma semana, desfez todas as suas malas e começou a pedir queijo aos berros pelo buraco da fechadura.)

-- Em "Como se Livrar dos Convidados".

27.11.02

Alasdair Gray

COMECEI A FAZER MAPAS QUANDO ERA PEQUENO.
EU MOSTRAVA LUGARES, RECURSOS, ONDE O INIMIGO
E ONDE O AMOR ESTÃO. EU NÃO SABIA
QUE O TEMPO CONTRIBUI PARA A TERRA. ACONTECIMENTOS
AFUNDAM CONTINUAMENTE, APAGANDO MARCOS,
ELEVANDO NÍVEIS, COMO NEVE.

EU CRESCI. MEUS MAPAS JÁ NÃO SERVEM MAIS.
AGORA A TERRA ESTÁ SOBRE MIM.
NÃO CONSIGO ME MEXER. É HORA DE IR.

--- Em "Lanark".

25.11.02

Nossa cruenta alma espanhola


A tauromaquia é praticada na Espanha desde o séc. 18, e no séc. 19 atingiu um alto grau de profissionalismo e controle estatal. No séc. 20 foram realizadas mais de 31 mil touradas oficiais, todas envolvendo a tortura e morte de touros. Paixão nacional, o evento mobiliza multidões, elevadas somas em dinheiro, a mídia, criadores e empresários e profissionais especializados na construção e manutenção de arenas. Toureiros e fabricantes de novos modelos de espadas costumam reunir-se em sigilo para discutir a qualidade das armas, testando-as em novilhos. Enquanto os animais agonizam, eles avaliam o grau de facilidade e dificuldade com que elas penetraram na carne. Não menos terrível é a preparação dos touros para o dia do espetáculo. Seus chifres são cortados, ficam sob pesados sacos de areia durante horas, até que as patas, inchadas, são mergulhadas em aguarrás para que eles não consigam ficar parados devido à extrema ardência. Seus olhos são untados com vaselina e para empurrá-los para o corredor, espetam-nos repetidas vezes. O touro, já enfraquecido, aterrorizado e enxergando apenas cores fortes e quentes, corre na direção do que julga ser a saída, onde é recebido pelos gritos da multidão. A tourada, um jogo de celebração da morte, divide-se em três etapas de tortura do animal. Cada uma cheia de truques e recursos para enganar o público de que o toureiro é que é o herói corajoso e destemido. Após a execução, "el matador" empina os quadris, faz caras e bocas e sorri, orgulhoso, para uma platéia que prefere não levar em conta que o animal já entrou quase morto na arena. Obviamente justifica-se tudo como "expressão da cultura espanhola" para mascarar a sofisticada tortura dos animais e tratá-la como algo natural e até apreciável. O estigma de bárbaros, no entanto, não está só no povo espanhol. Está um pouco em cada um de nós. E em Gisele Bündchen, sim. Por que não?

--- (sobre o artigo de Marco Frenette, "O Balé da Morte Lenta", in rev. "Bravo!", 2002.)

18.11.02

Jack Kerouac

NUM HORRÍVEL APOSENTO em Nova York, toda a minha família, composta por mamãe, papai & Nin e eu, se instala e "todos conseguiram emprego" -- aqui dentro já é noite, e há uma única luz, muito fraca, acesa -- a gente conversa, mas é um papo meio esquisito -- parece que não sei o que faço e sem querer, ou por descuido (porque não sinto medo da raiva das mulheres da família e já me esqueci da de meu pai; faz tanto tempo que ele morreu), começo a enrolar um baseado, continuando a falar com eles uma porção de maluquices, empolgado, louco (por causa da erva); nem sequer prestam atenção, preferindo debater solenemente a meu respeito, até que meu pai se levanta e pergunta: "Mas ele não tem medo da maconha? Hem?" se aproximando de mim -- vejo que vem vindo e fico cego, a escuridão toma conta por completo da cena, mas sinto, contudo, a mão dele no meu braço; é possível que tenha um machado, qualquer coisa, e não consigo enxergar -- caio desmaiado feito morto no escuro, com um rugido que me acorda e impede que seja encontrado morto (se é que existe uma coisa como a morte) de manhã, na cama -- pois meu sangue parou de palpitar quando o Viajante Amortalhado cravou finalmente as garras em mim -- se aproxima cada vez mais -- agora já sei como fugir dele -- não me preocupando nem acreditando na vida ou na morte, se é que isso pode ser possível num humilde Pratyeka a essa altura.

-- Em "O Livro dos Sonhos".

17.11.02

Drummond

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite
é tempo sem hora
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba
veludo escondido
na pele enrugada
água pura, ar puro
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

(Drummond, "Para Sempre")



15.11.02

Rosa, pura contradição
Volúpia de ser o sono de ninguém
Sob tantas pálpebras

--- Epitáfio de Rainer Maria Rilke para si mesmo.

Nelson Rodrigues

Quando ando de táxi, sinto uma euforia absurda e terrível. Isso vem de longe, vem de minha infância profunda. Bem me lembro dos meus seis, sete anos. Meu pai deu um passeio de táxi, com toda a família; e eu, na frente, ao lado do chauffeur,teci toda uma fantasia de onipotência. Repito: o táxi ainda me compensa de velhas e santas humilhações.
O ônibus, não. Quando ando de ônibus (e às vezes só tenho o dinheiro contadinho do ônibus), viajo como um ofendido e sou, realmente, um desfeiteado. É uma promiscuidade tão abjeta, que eu diria: o ônibus apinhado é o túmulo do pudor. "Exagero", dirão. Paciência. Mas quando eu passava fome, queria ser rico, e não para ter palácios ou andar de Mercedes. A minha obsessão nunca foi a Mercedes, nunca foi o palácio. Simplesmente, queria andar de táxi e nada mais.

--- Fragmento da crônica "Nenhum Vento Pode Apagar", 1967.

14.11.02

São minhas as ruas que dão na praia

e o sono das manhãs que dão no mar.

São meus a areia o barco e o vazio dentro do barco.

São meus o mar e o vazio dentro do mar

em que mergulho sem qualquer vestígio de sangue.



-- maira


Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
Uma noite me dei conta de que possuía uma história
e de que era monótona com sua fieira de lábios, narizes,
modos de voz e gesto repetindo-se.
O que existe são coisas, não palavras.
Granito, lápide, crepe
nuvem, saudades, lembranças.
Em todo enterro choro com um olho só,
com o outro acho coisas no meu sonho:
os toquinhos de vela crepitam e morrem.
Quando eu sofria dos nervos
fiz curso de filosofia pra escovar o pensamento,
não valeu.
De dentro da geometria
Deus me olha e me causa terror.
As formigas passeiam na parede, sobre
a cômoda, num quarto
Elas querem me matar, me comer, me cagar.
Eu sei escrever.
Escrevo cartas, bilhetes, listas de compras
Assim escrevo: tarde. Não a palavra.
A coisa.

--- Maira. Montagem criada a partir de versos isolados de Adélia Prado ("Poesias Reunidas").

13.11.02

Maiakovski

Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.

O pai, recordando sua progenitura,
Vivia a contestar os maternais direitos.
Com tais boas maneiras e tal compostura
Defendia o menino do pendor à sarjeta.

Assim como o vigia cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar fácil e sem sabão.

Quando cresceu, do tamanho de um bastão,
Sardas na cara como um prato de cogumelos,
Lançaram-no, com um leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se um cidadão.

Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de pano, calças e um embornal.
Com o nariz grácil como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.

E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.

Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucos.

Mas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Puchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.

Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.

Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?


---  "Hino ao Crítico", 1915.

12.11.02

Federico García Lorca

Calar e consumir-se é o maior castigo a que podemos nos condenar. De que me serviu a mim o orgulho, e o não te olhar, e o deixar-te acordada noites e noites? De nada! Serviu para abrasar-me. Porque tu acreditas que o tempo cura e as paredes tapam, e não é verdade, não é verdade! Quando as coisas chegam ao fundo, não há quem as arranque!
(...)
Que vidros cravam minha língua presa!
Porque eu te quis esquecer,
e pus um muro de pedra
entre a tua casa e a minha.
É verdade. --- Não te lembras?
E quando te vi de longe,
enchi meus olhos de areia.
Mas, se montava a cavalo,
em tua porta me achava ---
Tornou-se o sangue negro,
com alfinetes de prata.
E o sonho me foi cobrindo
as carnes de erva daninha.
Pois a culpa não é minha.
A culpa, a culpa é da terra
e do cheiro que desprendem
teus peitos e tuas tranças.

--- Em "Bodas de Sangue".

Jorge Luis Borges

Se não existe emoção, não pode existir poesia. Tampouco há necessidade de que haja esta poesia. Assim, eu diria que se escreve ungido pela emoção e melhor seria tentar desencorajar a emoção, porque se um tema não nos deixa sossegados, então o escrevemos para nos livrar dele ou, como disse Reyes, para que não passemos a vida corrigindo rascunhos.
(...)
O escritor deve ser submisso e não convém que tente compreender demais o que está fazendo, porque qualquer ato consciente pode deitar a perder a obra.
-

7.11.02

Marquês de Maricá

Os rouxinóis emudecem, quando os jumentos ornejam.
-

Olavo Bilac

"Não faça notícias. A notícia embota. Ataque as instituições, desmantele a sociedade, conflagre o país, excite os poderes públicos, revolte o comércio, assanhe as indústrias, enfureça as classes operárias, subleve os escravos, mas não escreva uma linha, uma palavra sobre notas policiais, nem faça reclamos. Mantenha-se artista: nem escriba nem camelote. (...) O livro fica, o jornal passa e raramente deixa vestígio. O artigo do dia mata o artigo da véspera, a opinião de hoje prevalece, a de ontem morre, mas com o artista consciencioso, não. Demais, meu amigo, egoísmo antes de tudo: o jornal é o redator político... o mais... que vale? Fica-se sempre à sombra, por mais que se faça. Não vale a pena. O trabalho de um ano no jornal não vale uma página requintada de um livro d'Arte."

--- Olavo Bilac, aconselhando o escritor Coelho Netto.

4.11.02

Joseph Conrad

... a maioria dos marujos leva, por assim dizer, uma vida sedentária. Eles sempre se sentem em casa, pois sua casa sempre os acompanha -- o navio; bem como seu país -- o mar. Um navio é muito parecido com outro, e o mar é sempre o mesmo. Num ambiente imutável, os litorais estrangeiros, as fisionomias estrangeiras, a variada imensidão da vida -- tudo passa imperceptível, velado não por um misterioso sentido, mas por uma ignorância levemente desdenhosa; pois não existe mistério para um homem do mar, a não ser o próprio mar, que é senhor de sua existência e inescrutável como o Destino. Quanto ao resto, nas suas horas de folga, uma caminhada casual, ou uma eventual bebedeira em terra bastam para revelar-lhe o segredo de todo um continente -- e geralmente acha que o segredo não vale a pena ser conhecido. As histórias dos homens do mar têm uma simplicidade direta, cujo significado cabe inteiramente na casca de uma noz partida.

---- Em "O Coração das Trevas".

1.11.02

Virginia Woolf

Domingo, 29 de dezembro


Há momentos em que a vela trapeia. Depois, como sou grande amante da arte da vida, decidida a chupar minha laranja, sugá-la, como uma vespa se a flor em que pousei murchar, & murchou ontem --- cavalgo as colinas até o penhasco. Um rolo de arame farpado cerca a beira. Friccionei minha cabeça energicamente ao longo da estrada de Newhaven. Velhas solteiras andrajosas comprando em mercearias, naquela estrada erma com as villas; debaixo de chuva. E Newhaven arruinada. Mas que se canse o corpo & a cabeça dorme. Toda a vontade de escrever no diário se perdeu. Qual é o antídoto mais adequado? Preciso farejá-lo por aí. Penso em Mme de Sevigné. Escrever haverá de ser um prazer diário. Charleston mudo; Leslie sonoro. Os Anrep almoçaram. Detesto a dureza da velhice --- sinto-a. Irrito. Sou ácida.

The foot less prompt to meet the morning dew,
The heart less bounding at emotion new,
And hope, once crush'd, less quick to spring again.

Na realidade abri Matthew Arnold & copiei estes versos. Ao copiá-lo, ocorreu-me a idéia de que a razão por que desgosto, & gosto, de tantas coisas de maneira tão idiossincrática agora é que vou me desprendendo cada vez mais da hierarquia, do patriarcado. Quando Desmond elogia East Coker, & fico enciumada, caminho pelo pântano dizendo: eu sou eu; & tenho de seguir este sulco, não copiar outro. Esta é a única justificação para meu escrever & viver.

Como saboreio a comida agora: faço refeições imaginárias.


---- Virginia Woolf, em seus "Diários", três meses antes de cometer o suicídio em 1941.

30.10.02

Álvares de Azevedo

É belo dentre a cinza ver ardendo
Nas mãos do fumador um bom cigarro,
Sentir o fumo em névoas rescendendo,

Do cachimbo alemão no louro barro
Ver a chama vermelha estremecendo
E até...perdoem... respirar-lhe o sarro!

Porém o que há mais doce nesta vida,
O que das mágoas desvanece o luto
E dá som a uma alma empobrecida,
Palavra d' honra, és tu, ó meu charuto!


---  "Terza Rima".

21.10.02

D. H. Lawrence

A indecência pode ser normal, saudável.
Na verdade, um pouco de indecência é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.

E um pouco de putaria pode ser normal, saudável.
Na verdade, um pouco de putaria é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.

Mesmo a sodomia pode ser normal, saudável,
desde que haja troca de sentimento verdadeiro.

Mas se alguma delas for para o cérebro, aí se torna perniciosa:
a indecência no cérebro se torna obscena, viciosa,
a putaria no cérebro se torna sifilítica
e a sodomia no cérebro se torna uma missão,
tudo vício, missão, insanamente mórbido.

Do mesmo modo, a castidade na hora própria é normal e bonita.
Mas a castidade no cérebro é vício, perversão.
E a rígida supressão de toda e qualquer indecência, putaria e relações assim
leva direto a furiosa insanidade.
E a quinta geração de puritanos, se não for obscenamente depravada,
é idiota. Por isso, você tem de escolher.

---  "A Indecência Pode Ser Saudável".

20.10.02

Ana Cristina Cesar

Me deu uma dor forte de repente e eu disse -- me leva para o hospital.
O casal do lado me levou no carro.
Tinha fila na emergência. Eu fiquei chorando e espiando a folia que não quero contar como é que era. Quando voltei ele estava pálido e contou que tinha desmaiado.
Ele é tão grande e mesmo com dor eu ia pôr no colo. Fiquei sabendo melhor como é o desmaio.
Você não apaga -- acende uma velocidade de sonho sólido, e você vê Tudo num minuto. Até a sala de ópio com Fats Waller cantando Two Sleepy People em câmera bem lenta: no coração de Paris uma câmara de sonho oriental, tapetes persas fechando as paredes e almofadas fechando os olhos como no paraíso. Você pode também sentar de novo na Place des Vôges, que é perfeita, cartão postal mágico voador. Parece que você vê e pega, ou fica completamente dentro. Não é uma esponja nem uma bagatela. Até a travessia do canal, ou a primeira vez que alguém te cobriu de beijos, ou o nervoso de perder o trem por dois minutos. É um cinema hipnótico, sem pernas. Não é vago.

--- Em "Luvas de Pelica".

15.10.02

Rio em preto-e-branco

Nos anos 1930, o aluguel de um apartamento mobiliado na Cinelândia (centro do Rio) custava 400 mil réis. Na época, só uma elite emergente podia morar bem nessas vizinhanças. Um médico bem-sucedido podia ganhar 1:500.000 ( 1 conto e 500 mil réis), um operário têxtil ganhava 240 mil réis por mês e uma empregada doméstica, 120 mil. O quilo de arroz custava no mínimo 500 réis, o açúcar, 700; o bacalhau, 2.100; café, 2.400; carne de primeira e frango, 2.000; feijão preto, 500; leite, 800 o litro, e ovos, 2.200 a dúzia. Já um par de sapatos de pelica, modelo Luís XV, para moças de fino trato chegava a custar 36 mil réis. Nessa época o rádio e a propaganda incentivavam os "novos" hábitos: "Não há mais belo destino para um cigarro do que o de luzir, como um astro, nos lábios de uma mulher bonita." Nas ruas trafegavam os ônibus de dois andares, os "chope-duplo", os táxis passaram a calcular a corrida por taxímetros e ganhou popularidade o hábito de se tomar café em pé, no balcão. No comércio estabelece-se o "horário comercial" e as vendas são incrementadas com a introdução do crediário. Um grande número de mendigos "transfere-se" para São Paulo, alegando que lá serão tratados com mais civilidade, pois um decreto recém-criado os protegia da polícia. Dizia-se que alguns chegaram a fazer fortunas só de pedir esmolas. Nas farmácias podia-se comprar 5 gramas de cocaína malhada a 2.000 réis, e uma ampola de heroína custava 1.500. Na Lapa bebia-se cerveja por 1.100 a garrafa. Com seus casarões antigos de paredes enegrecidas, seus bares, restaurantes, cabarés e bordéis, a Lapa era ponto de encontro de intelectuais e artistas. Freqüentavam a Lapa Plínio Salgado, San Tiago Dantas, Noel Rosa, Assis Valente, Heitor dos Prazeres, Cartola, Nelson Cavaquinho, Francisco Alves, Araci de Almeida, Jorge Amado, Cândido Portinari, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda, Rubem Braga, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Madame Satã, um dos mitos do bas-fond, e muitos outros. No final dos anos 1930 a polícia do Estado Novo fechou todos os bordéis da Lapa, decidida a acabar violentamente com a prostituição na Capital Federal. Nos anos 1940, o bairro entra em franca decadência devido à Segunda Guerra Mundial. A Lapa é invadida por marinheiros americanos vomitando dólares e pelos "falsos malandros", deixando de ser a partir daí a Montmartre carioca.

14.10.02

Torquato Neto

o poeta nasce feito
assim como dois mais dois
; se por aqui me deleito
é por questão de depois

a glória canta na cama
faz poemas, enche a cara
mas é com quem mais se ama
que a gente mais se depara

ou seja:

quarenta a sete quilates
sessenta e nove tragadas
vinte e sete sonhos, noites,
calmas, desperdiçadas.

saiba, ronaldo, acontece
uma vez em qualquer vida:
as teias que a gente tece
abrem sempre uma ferida

no canto esquerdo do riso?
no lado torto da gente?
talvez.
o que mais forte preciso
não sei sequer se é urgente.

nem sei se eu sou o caso
que mais mereço entender -
de qualquer forma, o A-caso
me deixa tonto. e querer

não é sentar, ter na mesa
uma questão de depois:
é, melhor, ver com certeza
quem imagina um mais dois.

-

Rogério Duarte

Depois que eu deixei crescer a barba as coisas continuaram igualmente confusas, exceto pelo acréscimo da barba que se associa ao antigo caos e o revela com aparente nova fúria. Não sei mesmo por que me permiti tal embuste (sim, nada agora merece mais do que este qualificativo).
Foi depois da visita à fazenda natal e do retrato do bisavô peludo que acabou por me sugerir reencarná-lo. Caricatura do meu passado me tornei porque caricaturei a busca de mim mesmo indo atrás dos detritos que o meu caminho deixou à margem.
Estranho às vezes o meu corpo assusto-me frente ao espelho na vã tentativa de captar-me outro e recebê-lo na minha ternura ou, menos ainda, procurando especular sobre a aparência nova e suas possibilidades de realizar o paradoxal embuste de parecer humana, coisa aliás que não se realiza é apenas em função da minha recusa.
Terá que ser desta mesma guitarrística maneira o continuar no ato de fazer a ladainha dos pães de cada dia. Talvez tenha descoberto eu hoje uma maneira nova: não se trata de cometer o verbo mas sim de esgotar-se no só afã de cometê-lo, ou de convencionar-se para si a fatalidade de cumpri-lo. Isto poderia se compreender imaginando-se a ação de modo a não diferenciá-la da não-ação. E é tangível quando tragicamente se cai na penumbra da unidade, ou zona do fenômeno.
Talvez, se a fidelidade a cada dia me compra o direito de depuração contínua, eu chegue a escutar a viva voz que articula a vibração do manifesto.
Guitarristicamente tecendo em dedos e espera-deflagração.
Que chance? O meu destino desenvolveu-se enquanto eu mantinha os olhos tapados e já nem me reconheço nele.
Brutalmente a qualquer momento pode surgir a vida, eu sei que não estou preparado. O medo, que é sombra da luxúria, aproveitou-se do meu corpo inteiro como morada do seu escuro.
Eu sinto, quando estou falando com alguém, nitidamente a sensação de não controlar a espontânea linguagem de loucura e sofrimento que torna como que desconcertantemente ridícula (já que a cobre e nega) a comunicação esboço-vomitada.
É absolutamente igual à fé na chegada do Messias o prognóstico sobre a passagem de um Cometa. Se nos voltamos para o grande corpo, sem um sequer leve cilício, tomamos o líquido aviso, confundimos a nossa alma com Ele.
Daqui a alguns anos a moral será uma ciência misteriosa ao alcance apenas de uns poucos iniciados que, de resto, ninguém viu. A Fé, as Leis etc. serão no Futuro não muito distante de uns duzentos anos como hoje são a alquimia, astrologia e lá vai fumaça...
Eu sou muito amigo do Rei, eu me dou bem com o Rei, Eu sou o outro Rei.
Hereafter all will be different, you need to get a very human face...

--- Na revista "Navilouca", anos 1970.

7.10.02

Guilhem de Peitieu

Fiz um poema sobre nada:
Não é de amor nem é de amada,
Não tem saída nem entrada,
Ao encontrá-lo,
Ia dormindo pela estrada
No meu cavalo.

Eu não sei quando fui gerado:
Não sou alegre nem irado,
Não sou falante nem calado,
Nem faço caso,
Aceito tudo o que me é dado
Como um acaso.

Não sei quando é que adormeci,
Quando acordei também não vi,
Meu coração quase parti
Com o meu mal,
Mas eu não ligo nem a ti,
Por São Marcial.

Estou doente e vou morrer,
Não sei de quê, ouvi dizer,
A um médico vou recorrer,
Mas não sei qual,
Será bom se me socorrer
E se não, mau.

Tenho uma amiga, mas quem é
Não sei nem ela sabe e até
Nem quero ver, por minha fé,
Pouco me importa
Se há normando ou francês ao pé
Da minha porta.

Eu não a vi e amo a ninguém
Que não me fez nem mal nem bem
E nem me viu. Isso, porém,
Tanto me faz,
Que eu sei de outra, entre cem,
Que vale mais.

Finda a canção, não sei de quem,
Irei passá-la agora a alguém
Que a passará ainda além
A amigo algum,
Que logo a passará também
A qualquer um.

---  "Canção", séc. 12.

25.9.02

Bruno Schulz



"Naquele tempo o meu pai já tinha morrido definitivamente. Morria várias vezes, mas nunca completamente, sempre com algumas objeções que implicavam a revisão deste fato. O que tinha as suas vantagens. Dividindo a sua morte em prestações, meu pai familiarizava-nos com o fato de seu sumiço. Ficamos indiferentes aos seus retornos, cada vez mais reduzidos e lamentáveis. A fisionomia do já ausente espalhou-se pelo quarto em que vivia, ramificou-se, atando, em certos pontos, extraordinários nós de semelhança e de incrível nitidez. O papel de parede imitava em determinados lugares as contrações de seus tiques, os arabescos compunham-se na anatomia dolorosa do seu riso, dispostos em membros simétricos como a impressão petrificada do trilobite. Por algum tempo contornávamos de longe o seu casaco de pele, plissado de fuinhas. O casaco de pele respirava. O pânico dos pequenos animais costurados, mordendo uns aos outros, passava por ele em espasmos impotentes e perdia-se nas pregas da pele. Encostando o ouvido nela, podia-se ouvir o rosnar melodioso do sono que partilhavam em harmonia. Nesta forma bem curtida, com este leve cheiro de fuinhas, assassinatos e cios noturnos, meu pai poderia durar ainda anos. Mas também aqui ele não agüentou muito tempo."

-- Em Sanatório, 1937.






23.9.02

A espera da hortelã

Numa casa às escuras não dá para se fazer muita coisa, principalmente se faltou luz. Nestas horas me deixo levar por um maneirismo acentuado e repito dezenas de frases diferentes com o mesmo sentido. É uma forma de me distrair e esquecer que passei a tarde toda sentindo um cheiro de hortelã sem que eu notasse à minha volta algum motivo concreto para isso. Seria fácil se eu pudesse atribuir esta escuridão de hortelã ao cansaço. Exasperação sensorial barroca, eu ouviria duras críticas nesse sentido. Minha pobre literatura egocêntrica seria alvo não preferencial de tudo que é tipo de mentalidade geocêntrica. Ponto para a crítica necrografista. Alhear-me nestes pensamentos pode não produzir resultados mas faz com que por um minuto eu me esqueça do cheiro hipnótico da hortelã, com que eu me esqueça do todo contido no detalhe, um perverso vício de raciocínio que se alimenta da minha natureza confundindo-me com ela. "Quando me procuro, nunca estou em casa." Acho que foi Hume quem desenhou esta frase. É possível que na casa dele faltasse luz também. Minha lógica é rasteira e se estende até a mesinha de cabeceira, onde se apoia e ergue a cabeça para me procurar pela cama. Eu disse que estava escuro. Está escuro e o cheiro de hortelã grudou na minha pele como se tivesse medo de cair. Eu quero ir até a cozinha mas tenho medo também de cair sobre os móveis e nunca mais levantar. De cair no chão e não saber me arrastar. Como uma boneca sentada numa cadeira, eu esperava que me tirassem dali. Esperava que me levassem para passear num carro vermelho ou até o cinema da esquina, que antes de dormir me contassem uma história bem bonita para eu poder pegar no sono e deixassem a luz do abajur acesa depois de me prometerem que se eu fosse uma menina boazinha, amanhã não precisaria mais de tantas nebulizações. Eu esperava.


-- maira parula

Definições de capitalismo

Capitalismo ideal: Você tem duas vacas. Vende uma e compra um touro. Eles se multiplicam, e a economia cresce. Você vende o rebanho e aposenta-se, rico!

Capitalismo americano: Você tem duas vacas. Vende uma e força a outra a produzir leite de quatro vacas. Fica surpreso quando ela morre.

Capitalismo francês: Você tem duas vacas. Entra em greve porque quer três.

Capitalismo canadense: Você tem duas vacas. Usa o modelo do capitalismo americano. As vacas morrem. Você acusa o protecionismo brasileiro e adota medidas protecionistas para ter as três vacas do capitalismo francês.

Capitalismo japonês: Você tem duas vacas. Redesenha-as para que tenham um décimo do tamanho de uma vaca normal e produzam 20 vezes mais leite. Depois cria desenhinhos de vacas chamados Vaquimon e os vende para o mundo inteiro.

Capitalismo italiano: Você tem duas vacas. Uma delas é sua mãe, a outra é sua sogra, maledetto!!!

Capitalismo Enron: Você tem duas vacas. Vende três para a sua companhia de capital aberto usando garantias de crédito emitidas por seu cunhado. Depois faz uma troca de dívidas por ações por meio de uma oferta geral associada, de forma que você consegue todas as quatro vacas de volta, com isenção fiscal para cinco vacas. Os direitos do leite das seis vacas são transferidos para uma companhia das Ilhas Cayman, da qual o sócio majoritário é secretamente o dono. Ele vende os direitos das sete vacas novamente para a sua companhia. O relatório anual diz que a companhia possui oito vacas, com uma opção para mais uma. Você vende uma vaca para comprar um novo presidente dos Estados Unidos e fica com nove vacas. Ninguém fornece balanço das operações e o público compra o seu esterco.

Capitalismo britânico: Você tem duas vacas. As duas são loucas.

Capitalismo holandês: Você tem duas vacas. Elas vivem juntas, não gostam de touros e tudo bem.

Capitalismo alemão: Você tem duas vacas. Elas produzem leite regularmente,segundo padrões de quantidade e horário previamente estabelecido, de forma precisa e lucrativa. Mas o que você queria mesmo era criar porcos.

Capitalismo russo: Você tem duas vacas. Conta-as e vê que tem cinco. Conta de novo e vê que tem 42. Conta de novo e vê que tem 12 vacas. Você pára de contar e abre outra garrafa de vodca.

Capitalismo suíço: Você tem 500 vacas, mas nenhuma é sua. Você cobra para guardar a vaca dos outros.

Capitalismo espanhol: Você tem muito orgulho de ter duas vacas.

Capitalismo português: Você tem duas vacas. E reclama porque seu rebanho não cresce...

Capitalismo chinês: Você tem duas vacas e 300 pessoas tirando leite delas. Você se gaba de ter pleno emprego e alta produtividade. E prende o ativista que divulgou os números.

Capitalismo hindu: Você tem duas vacas. Ai de quem tocar nelas.

Capitalismo argentino: Você tem duas vacas. Você se esforça para ensinar as vacas a mugir em inglês. As vacas morrem. Você entrega a carne delas para o churrasco de fim de ano do FMI.

Capitalismo brasileiro: Você tem duas vacas. Uma delas é roubada. O governo cria a CCPV- Contribuição Compulsória pela Posse de Vaca. Um fiscal vem e te autua, porque embora você tenha recolhido corretamente CCPV, o valor era pelo número de vacas presumidas e não pelo de vacas reais. A Receita Federal, por meio de dados também presumidos do seu consumo de leite, queijo, sapatos de couro, botões, presumia que você tivesse 200 vacas e para se livrar da encrenca, você dá a vaca restante para o fiscal deixar por isso mesmo...


(autor desconhecido)





20.9.02

Pedro Kilkerry

Pedro Kilkerry, poeta baiano, nasceu no final do séc. 19 e é praticamente desconhecido entre nós. Não publicou nada em vida pois detestava escrever e achava que editar livros implicava prostituir-se de alguma forma. Ele escrevia nas paredes, na cabeceira da cama e sabia tudo de memória, dizendo nos bares para os amigos, nunca no papel. O que ficou dele foi publicado pela revista baiana "Nova Cruzada", um movimento de poetas acadêmicos da época. Em 1978, Raymundo Amado fez um documentário sobre o poeta intitulado Harpa esquisita. São deste filme os textos de Kilkerry aqui apresentados.


"...E a gente pensa que a vida é um bem, mas a morte não é um grande mal, como dizia a grega Safo, porque, então, se compreende o panteísmo esquiliano: Zeus é o céu e muito melhor é ainda tudo que está além de tudo isso...por cima de representação comum, onde, aos pares, gozarmos o infinito."

"Há avesso em tudo. Penso nos grandes gestos das individualidades excelsas, no perdão de Jesus, nos passos energicamente espiritualizados de João Huss, caminho da fogueira rubra do Sacrifício, em Giordano Bruno e tantas outras chamas magníficas da vida, largadas como bênçãos sobre a marulhada soturna dos anos que vão, que foram para o cinzento devorante e infinito do Nada."

"A terra gira, quietinha, quietinha, e nós não sabemos nada, nem de nós, nem de nada, na vaidade de nos sabermos cheios de um futuro."

"Uma alma não é discípula de ninguém. Entre espíritos afins pode haver superioridade e inferioridade que não dependem de aprendizagem nenhuma."

"A filosofia já é ação, o sonho é ação, o cinismo, seja ou não por lei obrigatória, é grande parte na ação de dia-a-dia, o heroísmo é o mais humilde operário ou rei do petróleo, a poesia é a própria vida tumultuada, sem retardo, sem moras, sem decrepitude. O metro é livre: vivamo-lo."

"O homem de hoje deve nascer, nasce, com o instinto da modernidade."
"Olhos novos para o novo! Tudo é outro ou tende para outro."
-

18.9.02

Herculine Barbin

"Inicialmente a intimidade que havia entre mim e Sara era muito admirada, mas com o tempo passou a ser criticada pela maioria das pessoas que a considerava um pouco exagerada e por que não dizer suspeita. Mas estavam ainda muito longe da verdade. Por falta de conhecimento, fazia-se todo tipo de comentários, até que afinal, como sempre, algumas comadres caridosas decidiram prevenir a sra. P., em nome da moral ultrajada por nossa conduta cotidiana diante das alunas. Principalmente eu sofri graves acusações. Transformaram em crime o fato de eu beijar com muita freqüência a srta. Sara. Começamos a observar que, de fato, éramos objeto de sérios exames por parte das alunas mais velhas. Quando me viam abaixar e apertar Sara em meus braços, desviavam a cabeça com embaraço, como se tivessem medo de nos ver ruborescer. As internas principalmente, que nos viam dormir e acordar, manifestaram mais de uma vez seu espanto em relação a determinados detalhes que, sem dúvida, as assustavam. Evidentemente faziam comentários a esse respeito. Daí os rumores que se espalhavam pela cidade. A sra. P., que era extremamente cuidadosa em relação ao bom nome de sua casa, ficou seriamente afetada com isso. Não ousando falar sobre esse assunto comigo, chamou sua filha. "Sara", disse ela, "por favor, daqui por diante seja mais discreta em suas relações com a srta. Camille. Sei que vocês se gostam muito, e de minha parte fico feliz com isso, mas há conveniências que mesmo entre moças devem ser observadas." Esse primeiro ataque nos fez temer pelo futuro. O que seria de nós quando descobrissem a verdade?"

--- "Herculine Barbin, o Diário de um Hermafrodita" (1860), apresentação de Michel Foucault.

Jorge Luis Borges

"Todas as literaturas começaram pela poesia. Estudei as origens da literatura anglo-saxônica e achei a épica, séculos de épica, antes de chegar à prosa. Os conhecedores deram a explicação: é mais fácil conseguir a unidade de um verso e depois repeti-lo inúmeras vezes, do que se lançar na complexidade da prosa, onde não se pode repetir o jogo. A prosa é complexa, difícil, e para mim na verdade a prosa é a última forma da poesia. O homem começou cantando seus mitos, celebrando seus heróis, seus guerreiros, embora depois, graças a Deus, descobrisse outros temas."
.................................

"A poesia japonesa se baseia no contraste. Não se compara uma coisa com outra, contrasta-se. Um dos mais famosos exemplos da poesia japonesa, traduzido, se expressaria assim: 'Sobre o grande sino de bronze pousou uma borboleta.' Há traduções diferentes, mas é mais ou menos assim. Aí obviamente não se compara nada com nada, se contrasta. O firme e durável sino de bronze com a efêmera borboleta. Não há metáfora."
-

17.9.02

Capinam

"Vou tentar a desistência
vou sentar aqui
ficar sem ir
e esperar por mim que vem atrás
os frutos caem
o carro corre
o poeta morre
o mundo marcha para sua manhã
e a sinfonia não pára

-- sendo fatalidade, fico aqui --
se em tudo existe a própria máquina
pouco acrescenta ir ou não ir

gritam
pulam
ficam eufóricos
nunca práticos
todos teóricos
abrem camisa arrancam gravata
dizem senões
perdem botões
e permanecem homens
............ filhos da hora
............ irmãos do momento

eu vou parar
que venha a noite

se vier com luz
amém

se vier escura
amém

se vier mulher
bem, aí muito bem."


-"Poeta e Realidade (O Desistente)".

16.9.02

Antônio Fraga

Sururu no Mangue


Alta madrugada oscar pereira vulgo desabrigo topou na rua benedito hipólito com seu velho desafeto amauri dos santos silva mais conhecido na zona do canal e redondezas por cobrinha Gastando sutilezas do vernáculo cobrinha mandou o outro à ponte que caiu e como o já citado outro solicitasse a gaita da passagem lhe deu um tapa ficando a rua assim de gente pra ver o frege Ao ser esculachado desabrigo gritou que era macho e partiu feroz pra dentro de cobrinha empunhando um ferro Este sem dizer ao menos mes amis mes ennemis cherchez l'étoile du matin comprou uma sueca num marujo que gozava o esporro e deu uma solinjada na cara do parceiro abrindo larga avenida na referida cara Com a chegada da canastra cobrinha azulou e desabrigo foi encaminhado ao pronto-socorro onde teve oportunidade de fazer elogiosas referências às novas instalações

Acabamos de rabiscar esta notícia quando fomos informados de que o delegado anacreonte feitosa em hábil diligência conseguiu encanar quatro estivadores pois suspeita que a sueca tenha entrado de contrabando pelo vapor mauritânia

--- Em "Desabrigo e Outros Trecos".

14.9.02

Paul Valéry


A especialidade me é impossível.
Valho um sorriso. Você não é nem
poeta, nem filósofo, nem geômetra ---
nem outra coisa. Você não aprofunda
nada. Com que direito você fala daquilo
a que não se consagrou com
exclusividade?
Eu sou como o olho que vê o que vê.
Seu menor movimento muda o muro em nuvem
a nuvem em relógio; o relógio
em letras que falam. Talvez esteja aí
a minha especialidade.


13.9.02

Rogério Duarte

"como é que é meu caro ezra pound? vou acender um cigarro daqueles para ver se consigo lhe dizer isto. andei fazendo um pouco de tudo aquilo que você aconselhou para desenvolver a capacidade de bem escrever. estudei Homero; li o livro de Fenollosa sobre o ideograma chinês, tornei-me capaz de dedilhar um alaúde; todos os meus amigos agora são pessoas que têm o hábito de fazer boa música; pratiquei diversos exercícios de melopéia, fanopéia e logopéia, analisei criações de vários dos integrantes do seu paideuma.
continuo, no entanto, a sentir a mesma dificuldade do início. uma grande confusão na cabeça tão infinitamente grande confusão um vasto emaranhado de pensamentos misturados com as possíveis variantes que se completam antiteticamente."

---  "Carnaval 74".

11.9.02

19 princípios para a crítica literária

Em 1970 o crítico Roberto Schwarz escreveu o seu irônico "19 Princípios para a Crítica Literária". É curioso constatar como mais de trinta anos depois a maioria deles ainda parecem estar valendo:

-- Acusar os críticos mais velhos de impressionismo, os de esquerda de sociologismo, os minuciosos de formalismo, e reclamar para si uma posição de equilíbrio.

-- Citar em alemão os livros lidos em francês, em francês os espanhóis, e nos dois casos fora de contexto.

-- Nunca apresentar a vida do autor sem antes atacar o método biográfico.

-- Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela lingüística e pela filosofia das formas simbólicas.

-- Citar muito e nunca a propósito. Uma bibliografia extensa é capital. Apoie a sua tese na autoridade dos especialistas, de preferência incompatíveis entre si.

-- A argumentação deve ser técnica, sem relação com as conclusões.

-- Resolva sempre sem entrar no mérito da questão.

-- A psicanálise está menos superada que o marxismo, mas também é muito unilateral.

-- Publique longos resumos de livros sem importância, convença o editor a traduzi-los e o leitor a lê-los.

-- Um doutoramento vale ouro.

-- Muito cuidado com o óbvio. O mais seguro é documentá-lo sempre estatisticamente! Use um gráfico se houver espaço.
-

Guy de Maupassant

"Há alguns dias que ando com um pouco de febre. Sinto-me doente, ou melhor, sinto-me triste. De onde vêm essas influências misteriosas que transformam em desânimo a nossa felicidade e a nossa confiança em angústia? Dir-se-ia que o ar , o ar invisível, está cheio de potências incognoscíveis, de cuja misteriosa vizinhança sofremos a influência. Acordo cheio de alegria, com desejos de cantar -- Por quê? -- Desço até a margem do rio e, de súbito, após um curto passeio, regresso desolado como se alguma desgraça me esperasse em casa. -- Por quê? -- Será que um arrepio de frio, roçando minha pele, abalou meus nervos e entristeceu minha alma? Será que a forma das nuvens ou a cor do dia, a cor das coisas, tão variável, passando por meus olhos, perturbou meu pensamento? Quem sabe? Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que roçamos sem conhecer, tudo o que tocamos sem apalpar, tudo o que encontramos sem distinguir, causa em nós, em nossos órgãos, e por meio destes, em nossas idéias, e até em nosso coração, efeitos súbitos, surpreendentes e inexplicáveis?"

--- Em "O Horla".

9.9.02

Pego o ônibus da alma e por um instante acho que Deus não vai mais me aborrecer. Sou uma perfeita dama isolada numa aldeia aclimatada.

Um vestido de pano faz-me oscilar durante dias, convertendo o cristianismo em bolhas soltas no ar. Sou jovem e não estremeço. Posso estruturar um negócio. Posso prolongar a melancolia. Passo de um assunto a outro sem muitos poréns, o que é uma forma divertida de não perder tempo, de evitar familiaridades com o pensamento. Tenho o rosto esbranquiçado que poderia ser o de um cachorro, o de uma irmã, o de alguém que se conhece, se eu conseguisse ler sem meus óculos.


- maira parula

Oscar Wilde

"Não podemos ser excessivamente cuidadosos ao escolher os nossos inimigos. Nenhum dos que tenho é um imbecil. São todos homens de algum valor intelectual e, por conseguinte, me apreciam."
-

"Brasil, choca o teu ovo..."

--- Raul Bopp

6.9.02

Fill with mingled cream and amber
I will drain that glass again.
Such hilarious visions clamber
Through the chamber of my brain ---
Quaintest thoughts --- queerest fancies
Come to life and fade away
What care I how time advances?
I am drinking ale today.

--- Edgar Allan Poe, em "The Unknown Poe", antologia organizada por Raymond Foye.

4.9.02

Roberto Schwarz

ULISSES


A esperança posta num bonito salário
corações veteranos

Este vale de lágrimas. Estes píncaros de merda.

...............................

JURA

Vou me apegar muito a você
vou ser infeliz
vou lhe chatear


---- Em "26 Poetas Hoje".

2.9.02

Abraão Ibn Ezra

AS MOSCAS


Junto a quem fugirei para escapar ao meu tormento?
Lanço os altos brados contra o flagelo das moscas.
Elas não dão o menor sossego à minha vida
e me atacam com todas as forças, como o pior inimigo,
correndo sobre meus olhos e minhas pálpebras
e murmurando a meus ouvidos cantigas de amor.
Eu julgava comer inteiramente só o meu bocado:
eis que também elas o compartilham com apetite de lobo.
Elas bebem até mesmo de meu copo de vinho, como se
eu convidado as tivesse quais amigos ou parentes.
Mas não lhes bastou. Eu as vi sobre o vinho velho
e sobre o meu pedaço predileto de cordeiro
Nada mais lhes resta senão tomar o que eu levo à boca,
disputar-me o vinho que estou para beber e o pedaço que estou para comer.
Que eu convide à mesa os meus íntimos,
elas se metem nos primeiros lugares do festim.
Anseio ardentemente pelo inverno, que as destruirá
no frio das ventanias, das nevascas e dos aguaceiros.
Não fosse isto, elas me fariam horror,
mas, por isto, louvo aquele que está sobre os Querubins.

--- Abraão Ibn Ezra, poeta espanhol do séc. XII.

Waly Salomão

"Espero aprender inglês vendo tv em cores. sou um pinta de direita com vontade de poder um baiano faminto baiano é como papel higiênico: tão sempre na merda. eficácia da linguagem na linha Pound Tsé-tung. sou um reaça tento puxar tudo para trás: li retrato do artista quando jovem na tradução brasileira."

--- Em "Self-Portrait".

30.8.02

Beckett

"Eu sorrio ainda não vale mais a pena há muito tempo não vale mais a pena a língua ecoa vai na lama continuo assim mais sede a língua entra na boca se fecha ela deve fazer uma linha reta no momento está feita eu fiz a imagem."

--- "A Imagem".

Nelson Rodrigues

"O brasileiro não sabe ser inteligente com naturalidade. Vejam o francês. Jean-Paul Sartre, por exemplo. É um homem que inspira, aqui, admirações abjetas. Dizem: "A maior cabeça do mundo." Pois Sartre é inteligente com relativo tédio. E, por vezes, ele tem o que eu chamaria de "a nostalgia da burrice". Nessas ocasiões, diz as bobagens mais hediondas. Do mesmo modo o inglês, que também é inteligente sem espanto, sem angústia, sem deslumbramento. E não há mistério. O inglês, ou francês, encontra a língua feita e repito: um idioma que pensa por ele. Uma lavadeira parisiense é uma estilista, um cocheiro fala como um grã-fino de Racine. Ao passo que nós temos de recriar, dia após dia, a nossa língua e pensar em péssimo estilo."

--- Em crônica de "O Óbvio Ululante".

27.8.02

Elizabeth Bishop

ONE ART


The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-- Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
-


Teoria geral dos chatos

Jaguar em seu livro "Confesso que bebi" descreve a teoria geral dos chatos de Tom Jobim e por que este frequentava a churrascaria Plataforma, no Rio. Dizia Tom: "Grandes ambientes confundem o chato, ele se desconcentra. Ai de ti quando o chato consegue te encurralar num canto de bar, sem óculos escuros. Bloqueia a passagem, olho no olho, te toca, te enche de perdigotos. Aí não tem escapatória... Óculos escuros é fundamental. O chato exige atenção pupilar. Sem saber para onde você está olhando, ele perde o moral, aí você aproveita o momento de fraqueza e escapa."
-

25.8.02

Hilda Hilst

"Eu tenho oito anos. Eu vou contar tudo do jeito que eu sei porque mamãe e papai me falaram para eu contar do jeito que eu sei. E depois eu falo do começo da história. Agora eu quero falar do moço que veio aqui e que mami me disse agora que não é tão moço, e então eu me deitei na minha caminha que é muito bonita, toda cor-de-rosa. E mami só pôde comprar essa caminha depois que eu comecei a fazer isso que eu vou contar. Eu deitei com a minha boneca e o homem que não é tão moço pediu para eu tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu para eu abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei. Então ele começou a passar a mão na minha coxa que é muito fofinha e gorda, e pediu que eu abrisse as minhas perninhas. Eu gosto muito quando passam a mão na minha coxinha. Daí o homem disse pra eu ficar bem quietinha, que ele ia dar um beijo na minha coisinha. Ele começou a me lamber como o meu gato se lambe, bem devagarinho, e apertava gostoso o meu bumbum. Eu fiquei bem quietinha porque é uma delícia e eu queria que ele ficasse lambendo o tempo inteiro, mas ele tirou aquela coisona dele, o piupiu, e o piupiu era um piupiu bem grande, do tamanho de uma espiga de milho, mais ou menos. Mami falou que não podia ser assim tão grande, mas ela não viu, e quem sabe o piupiu do papi seja mais pequeno, do tamanho de uma espiga mais pequena, de milho verdinho. Também não sei, porque nunca vi direito o piupiu do papi. O moço pediu pra eu dar um beijinho naquela coisa dele tão dura. Eu comecei a rir um pouquinho só, ele disse que não era pra rir nem um só pouquinho, que atrapalhava ele se eu risse, que era pra eu ficar quietinha e lamber o piupiu dele como a gente lambe um sorvete de chocolate ou creme, de casquinha, quando o sorvete está no comecinho. Então eu lambi. Aí ele disse pra esperar, e foi até aquela mesinha do meu quarto perto do espelho. É um espelho bem comprido, em volta tem pintura cor-de-rosa, ele pediu para eu ficar deitadinha nas almofadas do chão na frente do espelho com as pernas bem abertas. Eu fiquei. Aí ele tirou da malinha dele uma pasta que parecia pasta de dente grande e apertou a pasta e deu pra eu experimentar e tinha gosto de creme de chocolate. Ele passou o chocolate no piupiu dele, aí eu fui lambendo e era demais gostoso, e o moço falava: ai que gostoso, sua putinha. Eu também achava uma delícia mas não falei nada porque se eu falasse tinha de parar de lamber."

--- Hilda Hilst, no polêmico livro "O Caderno Rosa de Lori Lamby", 1990, Massao Ohno, SP.

23.8.02

Ácaro, Operação Terra. No mundo pós-holocausto nuclear, o último ser vivo a escapar da sanha assassina dos cyborgs será o Ácaro. O Ácaro não veio do espaço, não é alienígena, não tem o rosto de Marte. O Ácaro é o Darth Vader de Deus e coleciona pedaços de tecido humano. O Ácaro é uma máquina de destruição. Uma epidemia. E dele a humanidade não escapará. Ele irá ao seu encalço. No planeta dos macacos, na estação de Alphaville, no labirinto de videogames, no outro lado do inferno, numa órbita do futuro. O ser humano está com os dias contados. Inútil tentar dizimá-lo. Com sua carapaça indestrutível, o Ácaro se apossará do lixo atômico após o cataclisma final da derradeira hecatombe. E em sua espasmódica câmara dos horrores seremos todos estranhos visitantes. Porque o Ácaro está em mim e na tumba do faraó Tutancamon. Está em você e no cardápio da sua próxima refeição. Até o fim dos tempos.

maira parula

19.8.02

Raymond Chandler

"Ele caminhou em direção à porta, parou no meio do caminho olhando para o sol no carpete, olhou de novo para ela rapidamente e então saiu.
Quando a porta se fechou, ela se levantou e foi até o quarto de dormir e se deitou na cama assim mesmo como estava, de casaco. Olhou para o teto. Depois de bastante tempo, ela sorriu. No meio do sorriso, pegou no sono."

-- Raymond Chandler, dando um fecho brilhante a "Armas no Cyrano's".