31.7.05




A primeira cabeça cortada a gente nunca esquece


Prezado Almocreve


Pois foi. Antesmente lhe agradeço as palavras tam gentis, fiz gosto. O senhor não carecia de. Um chamego é sempre bom, faz a p'ssoa sentir que está falando consigo mesma, aconchegando pertinho. Tão pertinho que posso lhe contar a confidência de como surgiu meu amor por Lampião. Assim, eu menina ainda, meus velhos me arrastaram prum museu aqui da ex-capital do Brasil. Um museu formoso, cheio de histórias e pertences de reis de Portugal, carruagens e coisas, mais ossadas de animais e vidas num formol, nem mais lhe relato porque o senhor deve de saber imaginar aquilo tudo que há dentro de uma casa dessas. Apois foi que meu olho bateu num mostruário de vidro com as cabeças duns cangaceiros, pura verdade. Lampião e Maria Bonita entre elas. Meu bestunto ainda mirrado naqueles dias quase perdeu a mão. Num se faz isso nem com uma criança, o senhor não acha, acha? Foi dali que nasceu doído meu amor pelo cangaço e pelo xaxado, que um dia lhe ensino a dançar, se o senhor fizer gosto. O xaxado como Lampião inventou: aquele ruidim que as pisadas de alpercatas faziam no chão arenoso e pedregulhoso do sertão.

Sem mais pra lhe dizer, que o dia hoje tá uma leseira só, deixo aqui uma toada popular pra alegrar quem tem calo no coração:

Eu canto o que sucedeu
Na sombra da gameleira:
Foi um tiro de ronqueira
O peido que a doida deu.
Toda terra estremeceu,
Abalou Assuaçu!
Ela mexendo um angu,
Puxou a perna de lado,
Deu um peido tão danado,
Quase não cabe no cu.


Que a Nossa Senhora das Vassouras lhe proteja.


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20.7.05

Luiza Neto Jorge





A cabeça em ambulância

Há feridas cíclicas há violentos vôos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã

ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos

ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta

quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura, de infância

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Venho de dentro, abriu-se a porta...

Venho de dentro, abriu-se a porta:
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.

Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo
de só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra

Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvolução do corpo.