29.12.03

Nara Leão

Além do arco-íris


Além do arco-íris há um lugar
Onde um dia eu ouvi
Uma canção de ninar
Pra lá do arco-íris o céu é azul
E os sonhos que nós ousamos
Vêm nos acalentar
Um dia eu quis subir numa estrela
E acordar bem longe numa nuvem
Eu vi que estava mesmo no espaço
E que não era fantasia, te juro
Então o que pensei foi
Nada sei dos mistérios da vida
Nem por onde eu andei


-- Nara Leão, em sua versão para "Over the Rainbow".

27.12.03

Eudoro Augusto

Pelo telefone


Você me liga querendo saber
o que estou fazendo neste exato minuto.
Ando meio agitado.
Neste exato minuto estou consertando a janela
que ficou torta desde a morte de Amélia.
Estou no terceiro Cutty Sark
e devendo um monte de grana.
Pior que a janela continua torta
e Amélia continua morta.
Meu amigo foi demitido anteontem
por um babaca que era oposição
mas hoje não é mais não.
Agora mesmo aquela mesma idéia
volta a sacudir minha cabeça
e não consegue transformar-se em nada.
Uma idéia não quer dizer nada.
Sou um projeto muito arriscado.
Acho que vou desligar.
A respeito do velho mestre
a melhor coisa ainda é o livro do Truffaut.
Eu tinha, mas emprestei pra Martinha.
Vou desligar.
A melhor coisa é o intervalo preciso
entre as emoções mais fortes.
Só duas ou três, como nos bons filmes.
Neste momento
procuro encontrar no escuro
o outro par do meu olhar perdido.
Neste exato minuto
estou comendo o fio do telefone.


-- Eudoro Augusto

26.12.03

1 poema de Raymond Carver

Medo


Medo de ver o carro da polícia estacionar na porta de casa.
Medo de pegar no sono à noite.
Medo de não pegar no sono.
Medo do passado que volta.
Medo do presente que escapa.
Medo do telefone que toca de madrugada.
Medo de tempestades elétricas.
Medo da faxineira que tem uma verruga na bochecha!
Medo dos cachorros que não mordem.
Medo da ansiedade!
Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.
Medo de não ter dinheiro.
Medo de ter demais, embora ninguém acredite.
Medo de perfis psicológicos.
Medo de me atrasar e medo de chegar antes dos outros.
Medo da caligrafia dos meus filhos em envelopes.
Medo de que eles morram antes de mim e da culpa que sentiria.
Medo de viver com minha mãe quando ela e eu estivermos velhos.
Medo da confusão.
Medo de que o dia de hoje termine num tom melancólico.
Medo de acordar e descobrir que você foi embora.
Medo de não amar e medo de não amar o bastante.
Medo de que o que eu amo seja mortal àqueles que amo.
Medo da morte.
Medo de viver demais.
Medo da morte.
Eu já disse isso.


-- Raymond Carver

18.12.03

Almada Negreiros

A cena do ódio

(excerto final)


(... ) Larga a cidade masturbadora, febril,
rabo decepado de lagartixa,
labirinto cego de toupeiras,
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados,
anêmicos, cancerosos e arseniados!
Larga a cidade!
Larga a infâmia das ruas e dos boulevards,
esse vaivém cínico de bandidos mudos,
esse mexer esponjoso de carne viva,
esse ser-lesma nojento e macabro,
esse S ziguezague de chicote autofustigante,
esse ar expirado e espiritista,
esse Inferno de Dante por cantar,
esse ruído de sol prostituído, impotente e velho,
esse silêncio pneumônico
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira
Larga a cidade e foge!

Larga a cidade!
Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás — vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro: deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste?
Larga tudo!
— Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também, larga tudo!
— Põe-te a nascer outra vez!
Não queiras ter pai nem mãe,
não queiras ter outros nem Inteligência!
A Inteligência é o meu cancro:
eu sinto-A na cabeça com falta de ar!
A Inteligência é a febre da Humanidade
e ninguém a sabe regular!
E já há Inteligência a mais: pode parar por aqui!
Depois põe-te a virar sem cabeça,
vê só o que os olhos virem,
cheira os cheiros da Terra,
come o que a Terra der,
bebe dos rios e dos mares,
— põe-te na Natureza!
Ouve a Terra, escuta-A.
A Natureza à vontade só sabe rir e cantar!
Depois põe-te à coca dos que nascem
e não os deixes nascer.
Vai depois pla noite nas sombras
e rouba a toda a gente a Inteligência
e raspa-lhes a cabeça por dentro
co'as tuas unhas e cacos de garrafas,
bem raspado, sem deixar nada,
e vai depois depressa, muito depressa,
sem que o sol te veja,
deitar tudo no mar onde haja tubarões!

Larga tudo e a ti também!
Mas tu nem vives nem deixas viver os mais,
Crápula do Egoísmo, cartola despanta-pardais!
Mas hás de pagar-Me a febre-rodopio
novelo emaranhado da minha dor!
Mas hás de pagar-Me a febre-calafrio
abismo-descida de Eu não querer descer!
Hás de pagar-Me o Abismo e a Morfina!
Hei de ser cigana da tua sinal
Hei de ser a bruxa do teu remorso!
Hei de desforra-dor cantar-te a buena-dicha
em águas fortes de Tróia
e nos poemas de Poe!
Hei de feiticeira a galope na vassoura
largar-te os meus lagartos e a Peçonha!
Hei de vara mágica encantar-te arte de ganir!
Hei de reconstruir em ti a escravatura negra!
Hei de despir-te a pele a pouco e pouco
e depois na carne viva deitar fel,
e depois na carne viva semear vidros,
semear gumes,
lumes,
e tiros,
Hei de gozar em ti as poses diabólicas
dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro!
Hei de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques,
e desfraldar-te nas canelas mirradas
o negro pendão dos piratas!
Hei de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!
Hei de bóia do Destino ser em brasa
e tu náufrago das galés sem horizontes verdes!

E mais do que isto ainda, muito mais:
Hei de ser a mulher que tu gostes,
hei de ser Ela sem te dar atenção!
Ah! que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes.
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!


-- Almada Negreiros

17.12.03

Charles Bukowski



À puta que levou meus poemas



dizem que devemos evitar remorsos pessoais
num poema,
ser abstratos, e há razões para isso,
mas deus do céu
doze poemas perdidos e não tenho cópias!
você também levou meus quadros, os melhores!
é demais:
está querendo acabar comigo como todo mundo?
por que não levou meu dinheiro? é o que costumam fazer
com os bêbados caídos nas calçadas
da próxima vez leve meu braço esquerdo ou uma nota de 50
mas não os meus poemas:
não sou Shakespeare
mas pode ser que um dia não existam mais,
abstratos ou não,
sempre haverá grana e putas e bebuns
até que caia a última bomba,
mas como disse Deus,
cruzando as pernas,
acho que criei poetas demais
e muito pouca poesia.

(trad. de Maira Parula)

16.12.03

William Burroughs


Dia de Ação de Graças - 28 de novembro de 1986


Agradeço pelo peru e os pombos selvagens para serem cagados pelas tripas dos americanos.
Agradeço por todo um continente para espoliar e envenenar.
Agradeço pelos índios por proporcionarem um pouco de desafio e perigo.
Agradeço pelas manadas de bisões para matar, arrancar-lhes a pele e deixar que apodreçam.
Agradeço pelos troféus de caça de lobos e coiotes.
Agradeço pelo Sonho Americano, por difundir mentiras até que elas apareçam.
Agradeço pela Ku Klux Klan, pelos policiais que matam negros e os contabilizam, pelas mulheres religiosas e decentes com suas faces mesquinhas cansadas, amarguradas e perversas.
Agradeço pelos adesivos "Mate um viado em nome de Jesus".
Agradeço pela AIDS de laboratório.
Agradeço pela lei seca e a guerra contra as drogas.
Agradeço por um país aonde não se permite a ninguém que cuide da própria vida.
Agradeço por uma nação de delatores.
Oh sim agradeço por todas as recordações: "Me mostre aí os seus braços".
Você sempre foi um problema, um estorvo.
Agradeço pela traição do último e mais importante dos sonhos humanos...


(trad. Maira Parula)

14.12.03

Gottfried Benn

Apêndice


Tudo branco e preparado para o corte.
O bisturi esterilizado esfumaçando. O abdome marcado.
Debaixo dos panos brancos algo geme.

"Sr. Professor, está tudo pronto."
A primeira incisão. Como se fatiasse o pão.
"Pinças!" Algo púrpura começa a brotar.
Mais profundo. Os músculos: úmidos, brilhantes, frescos.
Há rosas sobre a mesa?

Isto que salta é pus?
Teriam cortado o intestino?
"Doutor, debaixo desta luz,
nem o diabo pode ver o diafragma.
Anestesia, não posso operar,
o homem sumiu com o estômago."

Silêncio pesado, úmido. No vazio
uma tesoura tilinta no chão
e a angelical enfermeira
oferece algodão esterilizado.

"Não consigo encontrar nada nesta porcaria!"
"O sangue está escurecendo. Tirem-me a máscara!"
"Mas, deus do céu, meu caro,
vamos logo com isso!"
Tudo disforme. Por fim: aqui está!
"O ferro em brasa, enfermeira!" Um corte.

Desta vez tiveste sorte, meu filho.
A coisa estava a ponto de perfurar-se.
"Está vendo esta pequena mancha verde?
Mais três horas e o estômago se encheria de merda."

Barriga fechada. Pele costurada.
"Ponham esparadrapos aqui!
Bom dia, senhores."
A sala fica vazia.
Furiosa, trincando e rangendo os dentes,
a morte se apressa para o pavilhão dos cancerosos.


-- Gottfried Benn

3.12.03

António Lobo Antunes

Não entendo por que motivo, querida, nunca te interessaste pela minha infância: sempre que falo de mim encolhes os ombros, a boca torce-se, as pálpebras prolongam-se de desdém, rugas escarninhas surgem por detrás da franja do cabelo louro, de modo que acabo por me calar, envergonhado, a colocar os copos, os pratos e os talheres na mesa do almoço, enquanto a tua tia tosse na despensa e o teu pai roda os botões do televisor em busca das estridências da novela. E, todavia, Iolanda, logo que adormeces, mal o teu rosto, amolgado na almofada, readquire a inocência do presépio de outrora, tal como te vi, pela primeira vez, na pastelaria à esquina do Liceu, quando os teus dedos sujos de tinta e os teus cadernos escolares me comoveram de uma alegria sem sentido,
logo que adormeces e uma brancura de olmo com pássaros nos atravessa o quarto, arengo sem que me troces, converso, pairando sobre ti, com as tuas palmas inertes e as tuas coxas indefesas, e a casa onde morei antes da família da minha mãe surge da noite, nascida de uma imperfeição do espelho ou da gaveta da cômoda em que a nossa roupa se mistura com ninhos de traças e maçanetas de cobre, desde que há meses me ordenaste Vem e eu me apresentei, com o guarda-chuva e duas malas gastas, neste andarzinho da Quinta do Jacinto, em Alcântara, para explicar que sim, que tinha mais trinta e um anos do que tu mas o emprego do Estado, Senhor Oliveira, não é mau de todo, e claro que pagaria a eletricidade, a renda e a despesa do talho.


-- Em "A Ordem Natural das Coisas", 1992.

1.12.03

Al Berto

Vigílias


pernoito
no interior do corpo desarrumado
o medo invade o penumbroso corredor
descubro uma cintilação de água no estuque
uma cicatriz de cristais de bolor abre-se
porosa ao contacto dos dedos indica
que não haverá esquecimento ou brisa
para limpar o tempo imemorial da casa

deste simulado sono ficou-lhe o amargo iodo
as madeiras enceradas cobertas de poeira
ervas secas à chuva molhos de rosmaninho
junquilhos, bocas de lobo silenas, trevo
mas nenhuma fuga foi recomeçada
a infância permanece triste onde a abandonei
quase não vive
no entanto ouço-a respirar dentro de mim

agora tudo é diferente
recomeço a viver a partir do vazio
da treva dos dias em silêncio
por entre a pele e um feixe de magníficas veias
sinto o pássaro da velhice arrastando as asas

onde desenvolve o calmo vôo lunar

enumero cuidadosamente os objetos, classifico-os
por tamanhos por texturas, por funções
quero deixar tudo arrumado quando a loucura vier
da extremidade aguçada do corpo alado
e o rosto for devassado por um estilhaço de asa

então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
onde verso a verso
me ilumino e me desgasto.


-- Al Berto

28.11.03

Alexandre O'Neill

Poema pouco original do medo


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

-

26.11.03

Lin Hsin Hsin

Phone-Mail


this is the phone-mail system
the party you have just called at extension 1272 is not available
you can either leave a message or transfer out of phone-mail
to leave a message, begin speaking at the tone
to transfer out of phone-mail, press zero
peee
... begin speaking at the tone
to transfer out of mail, press zero
This is ibm, good morning
Mr Lum's secretary please
one moment please

this is Karol, I am sorry I am not at my desk now
please leave a message after you hear the beep tone
if you have something urgent
please call Xiang Hoon at extension 1542
thank you

pu-pu, pu-pu, pu-pu
Hi! this is Xiang Hoon's desk, I am afraid I am not in now
please leave a message after you hear the beep tone
for urgent matters
you can contact either Ilaine at 1632
or Karol at 1273
thanks for calling

pu-pu, pu-pu, pu-pu
Hi! this is Ilaine, I am afraid I am not available
please leave a message after you hear the beep tone
for urgent matters
please call Karol at 1273
or Xiang Hoon at 1542
have a nice day, bye now

-

25.11.03

Heriberto Yépez


Tarde. Pôr-do-sol.


Na frente do cybercafé, o arco do milênio aparece refletido nas janelas do segundo e terceiro andares do dentista Lincoln. Estou aguardando uma máquina para poder escrever. Fumo um cigarro na calçada. Não é certo. São apenas palavras. Não acredite nelas. Aconteceu outro dia. Se você acredita. Mas não agora.


"Os escritores ruins revelam o ofício de escrever, porque neles tudo é grotesco, descarado. Eles deixam transparecer aquilo que os bons autores souberam ocultar e sublimar com muita eficiência. Um escritor ruim põe em evidência todos os outros escritores porque, ao abortar a escrita, deixa os segredos desta à vista de todos."


-

23.11.03


I like to have a martini,
Two at the very most.
After three I'm under the table,
After four I'm under my host.


-- Dorothy Parker

22.11.03

Dorothy Parker



Résumé


Razors pain you
Rivers are damp
Acid stain you
And drugs cause cramp
Guns aren't lawful
Nooses give
Gas smells awful
You might as well live

-

20.11.03

Era uma vez uma carta que não tinha nada de mais.
Era apenas uma folha, pequena e branca,
mas não era assim que Ivaníssia a via.
Para ela, uma folha em branco era
uma janela para um outro mundo,
nela poderia escrever o que quisesse
e ser então pássaro ou baleia, seta ou perífrase,
incandescência, brilho, amizade, paixão ou mesmo amor.

No esforço que ali se coadunava
com a mais erudita imaginação,
Ivaníssia culminou num tremendo gemido
que se viu transcender com um "sploft" suave
e um friozinho molhado na base da espinha.

Atravessou uma última vez a carta em branco
com o seu doce e agora sereno olhar,
amarrotou-a um pouco, puxou o autoclismo e limpou o rabo.


-- Filipe Goulão, em Luzes Azuis

18.11.03

Boris Vian

Tudo foi dito cem vezes


Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte e cago-vos na tromba

-

12.11.03

Alexandre O'Neill


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.








11.11.03

Paul Verlaine

Gostos imperiais

Assim como Luís XV, não gosto de perfumes.
Só posso suportá-los no justo limite.
Na cama, por favor, nem frascos nem sachês!
Mas ah, que um ar singelo e picante flutue
Ao derredor de um corpo, desde que me excite;
E meu desejo preza e minha ciência aprova
No corpo apetecido, quando se desnuda,
O odor da picardia, o odor da puberdade
E o hálito excelente das belas maduras.
Mais: me fascinam (cala, moral, essa arenga)
Como dizer? Essas exalações secretas
Do sexo e arredores, antes e depois
Do abraço celestial e durante as carícias,
Sejam elas quais forem, devam ou pareçam.
Mais tarde, sonolento, com o olfato lasso,
Saciado de prazer, como os outros sentidos,
Quando meus olhos vão morrendo noutro rosto,
Quase extinto também, lembrança e previsão
Do entrelaçamento das pernas e braços,
Da união dos pés nos lençóis úmidos, vermelhos,
Sobe desse langor de agradável volúpia
Tanta humanidade que dá um certo embaraço
Mas tão bom, tão bom, que dá ganas de comer!
Como é possível desejar, por cima disso,
Uma fragrância estranha, de planta, de besta,
Mudando a percepção, confundindo os sentidos,
Quando disponho, para aumentar a volúpia,
Da quintessência, exatamente, da beleza!

-

8.11.03

Sylvia Parker




up.


is


direction


possible


only


The


-

7.11.03

Laura Riding

William e Daisy: Fragmento de uma novela inacabada


William e Daisy moravam na rua do Cemitério. Não possuíam nenhuma ligação entre si exceto que ambos não se sentiam atraídos pela vida tampouco pela morte; por isso viviam na rua do Cemitério. William era pessimista porque desgostava da vida um pouco mais do que da morte. Daisy era otimista porque desgostava da morte um pouco mais do que da vida. William tinha duas lembranças: uma, que já tivera familiaridade com prostitutas; e a segunda, que já tivera familiaridade com escritores famosos. Estas duas lembranças se confundiam e delas não tirava nenhum sentido. Daisy tinha duas lembranças: uma, que algum dia já fora prostituta; e a segunda, que no seu tempo ela havia conhecido vários escritores famosos. Estas duas lembranças se confundiam e delas não tirava nenhum sentido. Não tiravam nenhum sentido de suas lembranças exceto que ambos se sentiam muito dignos e não queriam acabar seus dias vivendo num casebre. Por isso viviam na rua do Cemitério.

Todas as noites Daisy caminhava pela rua do Cemitério e dizia "Que noite bonita" e passava ao lado de William e dizia "Que coincidência"; e a cada noite William, também, dizia "Que noite bonita" e "Que coincidência". Assim foi que os dois começaram a conhecer os pensamentos um do outro e mais do que nunca acabaram se cansando disso.

Os dois consertavam seus sapatos no mesmo sapateiro. Os dois sabiam que o sapateiro colocara uma menina para viver com ele na parte dos fundos da sapataria e que logo depois a expulsou dali quando a esposa ficou sabendo de tudo. No entanto, os dois continuaram considerando o sapateiro um bom homem porque não queriam se aborrecer por considerá-lo um mau sujeito. Os dois se arraigavam cada vez mais a suas idéias e hábitos até que...

Não sei o que foi feito dos dois. Nem eles.


-- Laura Riding

Poema de Paul Auster

White Nights


No one here,
and the body says: whatever is said
is not to be said. But no one
is a body as well, and what the body says
is heard by no one
but you.

Snowfall and night. The repetition
of a murder
among the trees. The pen
moves across the earth: it no longer knows
what will happen, and the hand that holds it
has disappeared.

Nevertheless, it writes.
It writes: in the beginning,
among the trees, a body came walking
from the night. It writes:
the body's whiteness
is the color of earth. It is earth,
and the earth writes: everything
is the color of silence.

I am no longer here. I have never said
what you say
I have said. And yet, the body is a place
where nothing dies. And each night,
from the silence of the trees, you know
that my voice
comes walking toward you.


-- Paul Auster

5.11.03

Cálculo de probabilidades


Cada vez que um dono de terra
declara: para me tirarem este patrimônio
terão de passar por cima do meu cadáver

ele deveria levar em conta
que às vezes
passam


-- Mario Benedetti

4.11.03

Em memória de Rachel de Queiroz


Talvez o último desejo


Pergunta-me com muita seriedade uma moça jornalista qual é o meu maior desejo para o ano de 1950. E a resposta natural é dizer-lhe que desejo muita paz, prosperidade pública e particular para todos, saúde e dinheiro aqui em casa. Que mais há para dizer?

Mas a verdade, a verdade verdadeira que eu falar não posso, aquilo que representa o real desejo do meu coração, seria abrir os braços para o mundo, olhar para ele bem de frente e lhe dizer na cara: Te dana!

Sim, te dana, mundo velho. Ao planeta com todos os seus homens e bichos, ao continente, ao país, ao Estado, à cidade, à população, aos parentes, amigos e conhecidos: danem-se! Danem-se que eu não ligo, vou pra longe me esquecer de tudo, vou a Pasárgada ou a qualquer outro lugar, vou-me embora, mudo de nome e paradeiro, quero ver quem é que me acha.

Isso que eu queria. Chegar junto do homem que eu amo e dizer para ele: Te dana, meu bem! Dora em vante pode fazer o que entender, pode ir, pode voltar, pode pagar dançarinas, pode fazer serenatas, rolar de borco pelas calçadas, pode jogar futebol, entrar na linha de Quimbanda, pode amar e desamar, pode tudo, que eu não ligo!

Chegar junto ao respeitável público e comunicar-lhe: Danai-vos, respeitável público. Acabou-se a adulação, não me importo mais com as vossas reações, do que gostais e do que não gostais; nutro a maior indiferença pelos vossos apupos e os vossos aplausos e sou incapaz de estirar um dedo para acariciar os vossos sentimentos. Ide baixar noutro centro, respeitável público, e não amoleis o escriba que de vós se libertou!

Chegar junto da pátria e dizer o mesmo: o doce, o suavíssimo, o libérrimo te dana. Que me importo contigo, pátria? Que cresças ou aumentes, que sofras de inundação ou de seca, que vendas café ou compres ervilhas de lata, que simules eleições ou engulas golpes? Elege quem tu quiseres, o voto é teu, o lombo é teu. Queres de novo a espora e o chicote do peão gordo que se fez teu ginete? Ou queres o manhoso mineiro ou o paulista de olho fundo? Escolhe à vontade - que me importa o comandante se o navio não é meu? A casa é tua, serve-te, pátria, que pátria não tenho mais.

Dizer te dana ao dinheiro, ao bom nome, ao respeito, à amizade e ao amor. Desprezar parentela, irmãos, tios, primos e cunhados, desprezar o sangue e os laços afins, me sentir como filho de oco de pau, sem compromissos nem afetos.

Me deitar numa rede branca armada debaixo da jaqueira, ficar balançando devagar para espantar o calor, roer castanha de caju confeitada sem receio de engordar, e ouvir na vitrolinha portátil todos os discos de Noel Rosa, com Araci e Marília Batista. Depois abrir sobre o rosto o último romance policial de Agatha Christie e dormir docemente ao mormaço.



Mas não faço. Queria tanto, mas não faço. O inquieto coração que ama e se assusta e se acha responsável pelo céu e pela terra, o insolente coração não deixa. De que serve, pois, aspirar à liberdade? O miserável coração nasceu cativo e só no cativeiro pode viver. O que ele deseja é mesmo servidão e intranqüilidade: quer reverenciar, quer ajudar, quer vigiar, quer se romper todo. Tem que espreitar os desejos do amado, e lhe fazer as quatro vontades, e atormentá-lo com cuidados e bendizer os seus caprichos; e dessa submissão e cegueira tira a sua única felicidade.

Tem que cuidar do mundo e vigiar o mundo, e gritar os seus brados de alarme que ninguém escuta e chorar com antecedência as desgraças previsíveis e carpir junto com os demais as desgraças acontecidas; não que o mundo lhe agradeça nem saiba sequer que esse estúpido coração existe. Mas essa é a outra servidão do amor em que ele se compraz - o misterioso sentimento de fraternidade que não acha nenhuma China demasiado longe, nenhum negro demasiado negro, nenhum ente demasiado estranho para o seu lado sentir e gemer e se saber seu irmão.

E tem o pai morto e a mãe viva, tão poderosos ambos, cada um na sua solidão estranha, tão longe dos nossos braços.

E tem a pátria que é coisa que ninguém explica, e tem o Ceará, valha-me Nossa Senhora, tem o velho pedaço de chão sertanejo que é meu, pois meu pai o deixou para mim como o seu pai já lho deixara e várias gerações antes de nós, passaram assim de pai a filho.

E tem a casa feita pela nossa mão, toda caiada de branco e com janelas azuis, tem os cachorros e as roseiras.

E tem o sangue que é mais grosso que a água e ata laços que ninguém desata, e não adianta pensar nem dizer que o sangue não importa, porque importa mesmo. E tem os amigos que são os irmãos adotivos, tão amados uns quanto os outros.

E tem o respeitável público que há vinte anos nos atura e lê, e em geral entende e aceita, e escreve e pede providências e colabora no que pode. E tem que se ganhar o dinheiro, e tem que se pagar imposto para possuir a terra e a casa e os bichos e as plantas; e tem que se cumprir os horários, e aceitar o trabalho, e cuidar da comida e da cama. E há que se ter medo dos soldados, e respeito pela autoridade, e paciência em dia de eleição. Há que ter coragem para continuar vivendo, tem que se pensar no dia de amanhã, embora uma coisa obscura nos diga teimosamente lá dentro que o dia de amanhã, se a gente o deixasse em paz, se cuidaria sozinho, tal como o de ontem se cuidou.

E assim, em vez da bela liberdade, da solidão e da música, a triste alma tem mesmo é que se debater nos cuidados, vigiar e amar, e acompanhar medrosa e impotente a loucura geral, o suicídio geral. E adular o público e os amigos e mentir sempre que for preciso e jamais se dedicar a si própria e aos seus desejos secretos.

Prisão de sete portas, cada uma com sete fechaduras, trancadas com sete chaves, por que lutar contra as tuas grades?

O único desabafo é descobrir o mísero coração dentro do peito, sacudi-lo um pouco e botar na boca toda a amargura do cativeiro sem remédio, antes de o apostrofar: Te dana, coração, te dana!



-- Rachel de Queiroz, em "Um alpendre, uma rede, um açude".




3.11.03

Alberto Moravia


Agnes podia ter-me avisado em vez de ir embora assim, sem sequer dizer: dane-se. Não pretendo ser perfeito e se ela me tivesse dito o que lhe faltava, poderíamos ter discutido. Mas não: durante dois anos de casamento, nenhuma palavra; e depois, uma manhã, aproveitando um instante em que eu não estava, foi embora sorrateiramente, como fazem as empregadas que arranjaram um serviço melhor. Foi-se e, ainda agora, seis meses depois que me deixou, não entendi por quê.
Naquela manhã, após ter feito as compras no mercadinho do bairro (gosto de fazer as compras eu mesmo: conheço os preços, sei o que quero, gosto de regatear e discutir, experimentar e apalpar, quero saber de que animal vem minha bisteca, de que cesta a maçã), saí novamente para comprar um metro e meio de franja para pregar na cortina, na sala de jantar. Como não queria gastar mais que o devido, dei muitas voltas antes de encontrar o que me convinha, numa lojinha na rua da Umiltà. Voltei para casa a umas onze e vinte, entrei na sala de jantar para comparar a cor da franja com a da cortina e logo vi em cima da mesa o tinteiro, a caneta e uma carta. Para dizer a verdade, o que, sobretudo, atraiu minha atenção foi uma mancha de tinta na toalha de centro da mesa. Pensei: "Mas olha, que porcalhona... manchou a toalha." Tirei o tinteiro, a caneta e a carta, peguei a toalha, fui à cozinha e ali, esfregando limão com força, consegui tirar a mancha. Depois voltei à sala de jantar, repus a toalha no lugar e, só então, me lembrei da carta. Era endereçada a mim: Alfredo. Abri e li: "Limpei a casa. O almoço você mesmo faça, que tem muita prática. Adeus. Volto para a casa de mamãe. Agnes." Por um instante fiquei sem entender nada. Em seguida reli a carta e finalmente entendi: Agnes tinha ido embora, me deixava após dois anos de casamento. Por força do hábito, coloquei a carta na gaveta do bufê onde guardo os recibos e a correspondência e sentei numa cadeira perto da janela. Não sabia o que pensar, não estava preparado para isso e quase que não acreditava. Enquanto assim refletia, bati os olhos no chão e vi uma pequena pena branca que devia ter se soltado do espanador quando Agnes tirara o pó. Catei a pena, abri a janela e a joguei fora. Depois peguei o chapéu e saí de casa.


-- Fragmento do conto "Não se aprofundar", do livro Contos romanos, 1954.


29.10.03

Dos Diários de Virginia Woolf


Não: não quero qualquer introspecção. Registro a frase de Henry James: Observar sem cessar. Observar a aproximação da velhice. Observar a cobiça. Observar meu próprio desalento. Isto significa que ele se torna útil. Ao menos é o que espero. Teimo em aproveitar ao máximo esta época. Vou tombar com minha bandeira desfraldada. Percebo que isto tende à introspecção; mas não chega a tanto. Vamos supor que eu compre um ingresso para o museu; vá lá de bicicleta todo dia & estude história. Vamos supor que eu escolha uma importante personagem de cada época & escreva sobre ela & sobre o que está a sua volta. Ocupar-me é essencial. E agora com certo prazer constato que são sete; & tenho de fazer o jantar. Hadoque & carne moída. Acho que é verdade que se ganha algum poder sobre a carne moída & o hadoque ao escrevê-los.

-

28.10.03

Ana Cristina Cesar


Ela ficava olhando pela janela
vertendo seu único olho pela janela
com o pé em cima da janela
Ela ficava olhando pela janela
O dia inteiro o olho, o pé, a janela
em cima embaixo pelos lados da janela
Ela ficava olhando pela janela
um dia ela cansou de olhar e fechou a janela
mas era dura e não fechava a janela
Ela ficava olhando pela janela
às vezes tentava mas logo esquecia da janela
que sempre aberta com um olho e um pé a janela
Ela ficava olhando pela janela
até que um dia seus pensamentos dissociaram a janela
que caiu inteiriça, e era uma caída janela
Ela ficava olhando pela janela
que não era, nem existia como janela:
Ela ficava olhando pelo buraco



27.10.03

Czeslaw Milosz



"A utilidade da poesia está em nos fazer lembrar
que é difícil continuar sendo a mesma pessoa
porque nossa casa está aberta
as portas estão sem chave
e os hóspedes invisíveis entram e saem."


-- (fragmento do poema "Ars poética?")

24.10.03

Augusto dos Anjos

Minha Finalidade


Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!

Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
-- A águia dos latifúndios florentinos!

Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno,
A fórmula de todos os destinos!

-

21.10.03

John Fante

Tornei-me um vagabundo na minha cidade. Vadiava por lá. Peguei um serviço para capinar ervas daninhas, mas era dureza e larguei. Outro serviço, lavando janelas. Mal consegui dar conta. Procurei trabalho por toda Boulder, mas as ruas estavam cheias de homens jovens desempregados. O único emprego na cidade era para entregar jornais. Pagava cinqüenta centavos por dia. Recusei. Me escorava pelas paredes dos salões de bilhar. Me mantinha longe de casa. Ficava envergonhado de comer a comida que meu pai e minha mãe proporcionavam. Eu sempre esperava até meu pai sair de casa. Minha mãe tentava me animar. Ela fazia tortas de nozes e raviolis para mim. "Não se preocupe", ela dizia. "Espere e verá. Alguma coisa vai acontecer. Estou rezando."
Eu ia à biblioteca. Olhava as revistas, as figuras nelas. Um dia fui até as estantes de livros e puxei um livro. Era "Winesburg, Ohio". Sentei numa mesa comprida de mogno e comecei a ler. Subitamente meu mundo virou de cabeça para baixo. O céu desabou. O livro me absorveu. Fui às lágrimas. Meu coração batia rápido. Li até meus olhos arderem. Levei o livro para casa. Li outro Anderson. Eu lia e lia, e estava deprimido e solitário e apaixonado por um livro, muitos livros, até que aconteceu naturalmente, e sentei com um lápis e um bloco comprido e tentei escrever, até que senti que não poderia continuar porque as palavras não vinham como acontecia com Anderson, elas vinham somente como gotas de sangue do meu coração.


-- Em "Sonhos de Bunker Hill".

19.10.03

W. H. Auden

A solitária nata


Eu ouvia da sombra, numa cadeira de praia,
A gama de ruídos que por meu jardim se espraia
E julgava de toda conveniência se isentasse
Do dom da palavra tanto os vegetais como as aves.

Um tordo sem nome de batismo repetia
O Hino Tordo, que era tudo quanto conhecia.
Por terceiro esperavam as flores roçagantes
Para dizer-lhes, sendo o caso, quais os pares de amantes.

Não seria, nenhum deles, capaz de mentir;
Tampouco havia ali quem sentisse a morte vir-
Lhe ou que, com ritmo ou rima, pudesse dar tento
Da sua responsabilidade pelo tempo.

Ficasse a linguagem para a solitária nata
Dos que contam os dias e esperam certas cartas.
Ao rir e ao chorar, nós também fazemos ruídos:
Palavras são só para os que estão comprometidos.

-- W. H. Auden

16.10.03

Ambrose Bierce e o Dicionário do Diabo


M/N


Macaco -- animal arborícola que se sente perfeitamente em casa nas árvores genealógicas.

Mágica -- arte de transformar a superstição em ouro. Há inúmeras outras artes servindo a este mesmo propósito elevado, porém um lexicógrafo prudente não deve mencioná-las.

Maioria -- característica que distingue um crime de uma lei.

Matar -- criar uma vaga sem nomear sucessor.

Mausoléu -- derradeira extravagância dos ricos.

Medalha -- pequeno disco de metal com que se premia virtudes, façanhas e serviços relativamente autênticos.

Menor -- diz-se daquilo que não é passível de objeção.

Mentira -- substituto pobre da verdade, mas o único que se descobriu até agora.

Mentiroso -- sujeito viciado em retórica.

Menu -- relação dos pratos de um restaurante que acabaram de terminar.

Metade -- uma de duas partes iguais em que se pode dividir uma coisa, ou considerá-la dividida.

Meu -- tudo aquilo que pertence a mim, se eu puder pegar e não largar.

Mitologia -- corpo de crenças de um povo primitivo relacionando suas origens, história, heróis, divindades e assim por diante, de uma forma bem diferente dos relatos verdadeiros que ele inventaria mais tarde.

Moda -- despotismo que os sábios ridicularizam e obedecem.

Modéstia -- reconhecer a própria perfeição mas sem dizer isso a ninguém.

Monógamo -- polígamo reprimido.

Monumento -- estrutura projetada para comemorar algo que não precisa de comemoração ou que não devia ser comemorado.

Morrer -- desejo repentino de deixar de pecar.

Morte -- dormir sem precisar levantar-se para mijar.

Nepotismo -- contratar a própria avó em benefício do partido.

Newtoniano -- adepto da filosofia do universo inventada por Newton, que descobriu que uma maçã sempre cairá no chão mas não foi capaz de dizer por quê. Seus sucessores e discípulos até agora só conseguiram saber quando.

Niilista -- russo que nega a existência de tudo, menos de Tolstoi.

Ninfomaníaca -- termo empregado pelo homem para definir a mulher que deseja fazer sexo com mais freqüência do que ele.

Nirvana -- na religião budista, diz-se do prazeroso estado de auto-anulação experimentado pelos sábios, particularmente aqueles sábios o bastante para entendê-lo.

Noiva -- mulher que deixa para trás uma boa perspectiva de felicidade.

Notoriedade -- tipo mais acessível e aceitável de reconhecimento da mediocridade.

Novembro -- décimo primeiro mês do cansaço.


-- Ambrose Bierce

15.10.03

Eugénio de Andrade

À Beira de Água


Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

-



12.10.03

Five words in a line.


-- Gertrude Stein, 1930.



READ THIS WORD THEN READ THIS WORD READ THIS WORD NEXT READ THIS WORD NOW SEE ONE WORD SEE ONE WORD NEXT SEE ONE WORD NOW AND THEN SEE ONE WORD AGAIN LOOK AT THREE WORDS HERE LOOK AT THREE WORDS NOW LOOK AT THREE WORDS NOW TOO TAKE IN FIVE WORDS AGAIN TAKE IN FIVE WORDS SO TAKE IN FIVE WORDS DO IT NOW SEE THESE WORDS AT A GLANCE SEE THESE WORDS AT THIS GLANCE AT THIS GLANCE HOLD THIS LINE IN VIEW HOLD THIS LINE IN ANOTHER VIEW AND IN A THIRD VIEW SPOT SEVEN LINES AT ONCE THEN TWICE THEN THRICE THEN A FOURTH TIME A FIFTH A SIXTH A SEVENTH AN EIGHTH


-- Vito Acconci


8.10.03

Hilda Hilst




Sempre fui apaixonado por mamãe. Quando completei 16 anos, ela, sabedora do meu infortúnio, sentou-se na sua linda poltrona de cetim perolado, abriu suas magníficas coxas rosadas e, colocando um cacho de uvas purpúreas nos seus meios sagrados, disse-me: chupe-as, até encontrar o paraíso. Foi o que fiz. Foram semanas felizes. Passeávamos entre as alamandas as begônias as sempre-vivas, as araucárias (estas já mais altas) os carvalhos (estes altíssimos), ela descalça, a saia florida, a blusa entreaberta e aqueles seios espoucavam do decote meia-lua, linda Ma (eu chamava-a de Ma), ela chamava-me de Júnior, nome que na verdade não quer dizer nada. Depois de três semanas descobri que Ma tinha tendências lésbicas. Vi-a beliscando o bico do peito de Armanda, nossa prima. Fiquei cego de fúria. Bem, nem tanto. Disse-lhe: Ma, você não pode fazer isso comigo. Ela: o quê? Eu: isso de bolinar mulher. Sentou-se naquela mesma poltrona de cetim perolado e agora muito séria e de coxas fechadas disse-me: todos os chamados sentimentos intensos são dolorosos. E é muitíssimo normal o que ocorre com você neste momento. Entendo tudo, Júnior, mas detesto cenas. E se você se aborrece porque além de filhos gosto um nadinha de mulheres, acho demais, será preciso uma terapia de apoio. Concordei. Apoio era com ela mesma. Abriu novamente suas magníficas coxas (desta vez sem uvas) e suspirou gemendo: aqui mais em cima, meu amor, aqui Júnior, e empurrava docemente minha cabeça de cachos dourados na direção adequada. Foram semanas felizes. Ma andava nua pelos prados, saltava pequeninos riachos, na boca hastezinhas de capim, guirlandas de diminutas margaridas à volta de seu pescoço (eu sempre levava uma caixa com agulhas e linhas para fazer estes mimos à Ma). Comíamos pitangas araçás amoras jaboticabas, depois deitávamos nas gramíneas e líamos Childe Harold. Ela amava Byron. Eu dizia-lhe: mas foi um homem abominável, tudo o que fez para a pobrezinha da Clara!
ah, tem paciência, Júnior, ela não saía da cola dele!
mas Ma e tantas mulheres que ele fez sofrer!
aquelas... fartou-se e amou a Fornarina muito tempo.
uma grossa, Ma, uma padeira.
Byron era um gênio, podia amar padeiras.
eu gosto incomparavelmente mais de Shelley.
tão frágil...
ah, por favor, Ma... fino, raro, generoso, brilhante.
ninguém lia Shelley.
claro, muito mais importante, muito mais sério.
Byron foi um dos nossos, querido, amava a própria irmã.

Como resistir a tudo que dizia aquela perfeitíssima mulher que era mamã?


-- Hilda Hilst, em "Contos D'Escárnio".

7.10.03

Feijoada com cocaína


Como alguns devem saber, no ano de 1924 o escritor francês de origem suíça Blaise Cendrars visitou o Brasil, onde conheceu o grupo modernista de São Paulo. Nesse mesmo ano, ele seguiria com uma caravana paulista para Minas Gerais juntamente com Mario de Andrade. Lá, Cendrars teve a oportunidade de conhecer, entre outros escritores mineiros, o então jovem estudante de medicina, aprendiz de poeta e desenhista Pedro Nava. Deste primeiro encontro com Cendrars, no entanto, Nava não guardaria muito boas recordações, como relatou em seu livro de memórias Beira-Mar.

Entusiasmado com os desenhos que vinha fazendo, Nava quis mostrá-los ao poeta "estrangeiro". Segundo o mineiro, eram desenhos de "formas alucinadas e de uma magreza desvairada". O que ele não pôde imaginar é que, após examiná-los atentamente, Cendrars se saísse com esta: "Dites-moi, mon ami. Comment est-ce que vous poudrez votre feijoada? À la farine? ou bien à la cocaïne?"

5.10.03

Fui ao mar buscar sardinhas
Para dar ao meu amor
Perdi-me nas janelinhas
Que espreitavam do vapor

A espreitar lá do vapor
Vi a cara dum francês
E seja lá como for
Eu vou ao mar outra vez

Eu fui ao mar outra vez
Lá o vapor de abalada
Já lá não vi o francês
Vim de lá toda molhada

Saltou de mim toda a esperança
Saltou do mar a sardinha
Salta a pulga da balança
Não faz mal não era minha

Vou ao mar buscar sardinha
Já me esqueci do francês
A idéia não e minha
Nem minha nem de vocês

Coisas que eu tenho na idéia
Depois de ter ido ao mar
Será que me entrou areia
Onde não devia de entrar?

Pode não fazer sentido
Pode o verso não caber
Mas o que eu tenho rido
Nem vocês queiram saber

Não é para adivinhar
Que eu não gosto de adivinhas
Já sabem que fui ao mar
E fui lá buscar sardinhas

Sardinha que anda no mar
Deve andar consoladinha
Tem água sabe nadar
Quem me dera ser sardinha


-- Amália Rodrigues

1.10.03

Pizarnik



explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco que me levava




Antes

bosque musical

os pássaros desenhavam em meus olhos
pequenas gaiolas



Estranho desacostumar-me
da hora em que nasci
Estranho não exercer mais
o ofício de recém-chegada.


-- Alejandra Pizarnik

30.9.03

Baudelaire desnudado



- Deus é o único ser que, para reinar, não precisa sequer existir.

- A qualquer pessoa, desde que saiba entreter os outros, é dado o direito de falar de si.

- Gostar de mulheres inteligentes é um prazer de pederasta.

- O que me entedia na França é que todo mundo se parece com Voltaire.

- Não podendo suprimir o amor, a Igreja quis pelo menos desinfetá-lo -- por isso inventou o casamento.

- Quanto mais um indivíduo cultiva as artes, menos trepa.

- A fila de pequenos literatos que se pode ver nos enterros, distribuindo cumprimentos a torto e a direito e procurando fazer-se lembrados dos fazedores de jornais.

- O homem de espírito, aquele que nunca estará de acordo com os outros, deve esforçar-se em apreciar a conversa dos imbecis ou a leitura de livros ruins. Disso extrairá amargas alegrias que compensarão sua fadiga.

- É por não ser ambicioso que não tenho convicções, como as entendem as pessoas do meu século.

- Quando Jesus Cristo disse "Bem-aventurados os que têm fome porque eles serão saciados", limitava-se a fazer um cálculo de probabilidades.

- O amor pode provir de um sentimento generoso -- o gosto de prostituir-se -- mas é logo corrompido pelo gosto da propriedade.

- Para uma natureza tímida, a portaria de um teatro assemelha-se um pouco ao Juízo Final.

- O que há de atraente no mau gosto é o prazer aristocrático que sentimos em chocar os outros.

- A glória pessoal não é mais do que o resultado da acomodação de um espírito à imbecilidade de um povo.

- Cultivei minha histeria com prazer e terror. Ainda continuo a sentir a vertigem e hoje, 23 de janeiro de 1862, tive um estranho pressentimento: senti a fria asa da imbecilidade passar sobre mim.

29.9.03

Viver



Viver é como cavalgar um tigre,
não se pode descer de suas costas.



-- provérbio chinês



27.9.03

As coisas


A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a desvanecida
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Servem-nos, como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que partimos em um momento.


-- Jorge Luis Borges

26.9.03

Dicionário do diabo


J/ K/ L


Julgamento -- inquérito formal criado para provar e registrar a inocência de juízes, advogados e jurados.

Justiça -- uma decisão a nosso favor.

Kilt -- saiote que os escoceses usam na América e os americanos usam na Escócia.

Ladrão -- político.

Legado -- presente de alguém que está deixando este vale de lágrimas.

Lexicógrafo -- sujeito pernicioso que, com a justificativa de estar registrando determinado estágio do desenvolvimento de uma língua, faz o possível para interromper o seu crescimento, emperrar a sua flexibilidade e mecanizar os seus métodos.

Liberdade -- um dos bens mais preciosos da imaginação.

Lícito -- compatível com a vontade do juiz.

Língua -- órgão sexual que alguns degenerados usam para falar.

Linguagem -- música com a qual encantamos as serpentes que guardam o tesouro alheio.

Litigante -- pessoa que abre mão da própria pele na esperança de conservar os ossos.

Litígio -- máquina na qual entramos como porco e saímos como salsicha.

Lógica -- arte de pensar e deduzir rigorosamente de acordo com os limites e incapacidades do entendimento humano.

Longevidade -- medo da morte de duração incomum.

Loquacidade -- distúrbio que acomete um indivíduo tornando-o incapaz de refrear a própria língua sempre que nós queremos falar.

Lord -- na sociedade americana, diz-se de todo turista inglês com status superior a um verdureiro. Já os ingleses de nível inferior são chamados de "Sir".

Louco -- pessoa dotada de um alto grau de independência intelectual.

Luminar -- diz-se daquele que lança luz sobre algum tema sobre o qual um editor não quis escrever.


-- Ambrose Bierce

16.9.03

(O adeus de) Teresa


A primeira vez que eu vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna.

Quando vi Teresa de novo
Achei os olhos mais velhos do que
o resto do corpo.
(Os olhos nasceram e ficaram um
ano esperando que o resto do
corpo nascesse).

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se
mover sobre a face das águas.


-- Manuel Bandeira, em brincadeira poética com os versos de "O Adeus de Teresa", poema de Castro Alves. A intenção era fazer uma "tradução para o moderno", 1925.

12.9.03

Giórgios Makrópoulos

quartos de solteiro


Quando você aluga quartos no andar de baixo da sua casa, isso quer dizer que é domador de pássaros ou se tornou oleiro. Porque, o mais das vezes, existe um mistério no caso. Em certos momentos do dia -- precisamente os mesmos -- você ouve ruídos muito discretos de arrastar de pratos ou xícaras, ou um indefinido tic-tac de prego na parede. A armadilha, porém, não está aí. Deixe que o inquilino lhe devolva a chave e se mude, para então você descer ao andar de baixo com um olho bem alerta, disposto a resolver o mistério. Aí é que está a armadilha. Será mister você ter servido no exército como apanhador de torpedos para poder levar adiante o trabalho, agora. Porque os inquilinos costumam largar pelo chão camisas velhas, uma cédula de identidade plastificada, alguma fotografia antiga, tirada ao lado de uma estátua ou em companhia dos pais diante de um transatlântico, no balneário de Kaiáfa, ou então cartas não postadas contendo frases do tipo "Quando eu era criança, queria ser músico. Hoje sou empregado de escritório", "Não precisa me esperar no porto". Sem suspeitar de nada, você as apanha com a natural sofreguidão dos solitários. A bomba portátil explode, você sofre apenas ferimentos leves, mas eis que surgem ambulâncias de sirenes abertas, anjos de avental branco e expressão severa te carregam de maca. Você lhes grita que não é nada disso que estão pensando. Eles são surdos. Começa a juntar gente. Metem você na ambulância, que parte incontinenti. Você sempre gritando, eles sempre surdos. O espetáculo termina, o ajuntamento se dissolve, e você lá dentro da ambulância. Sempre gritando. Cuida agora de acertar as coisas com os carniceiros. De lhes falar de quartos de solteiro, enquanto eles correm agitados pela enfermaria perguntando a você acerca do infortunado boletim e do histórico da amputação. Sempre a correr, eles, e você a falar a surdos-mudos.

Eu alugo quartos. Sou um cidadão tranqüilo, escrevia poemas e não incomodava ninguém. Pois quem foi que me amputou a mão?


-- Em "Pirotécnicos", 1979.

11.9.03

De súbito, um quarto com sua lâmpada surgiu diante de mim, quase palpável em mim. Nele eu já era canto, mas os postigos me perceberam e tornaram a fechar-se.


-- Rilke, fragmento de "Ma vie sans moi", trad. francesa.

10.9.03

Federico Garcia Lorca

dois marinheiros à margem




Trouxe no seu coração
um peixe do Mar da China.

Que às vezes se vê cruzar
diminuto por seus olhos.

Esquece sendo marítimo
os bares e as laranjas.

Olha a água.




Tinha a língua de sabão.
Lavou suas palavras e calou-se.

Mundo plano, mar riçado,
cem estrelas e seu barco.

Do Papa viu os balcões
e os peitos dourados das cubanas.

Olha a água.


8.9.03

Dicionário do diabo


I


Idiota -- membro de uma grande e poderosa tribo de preponderante influência nos assuntos humanos. A atividade do idiota não se restringe a uma área específica do pensamento ou da ação, ela está em tudo. O idiota detém a última palavra em tudo, sua decisão é inapelável. Ele dita as modas, os gostos, as opiniões e estabelece os limites do discurso e do comportamento.

Ignorante -- pessoa que desconhece coisas que já sabemos e que sabe de outras que desconhecemos.

Imbecilidade -- espécie de inspiração divina que acomete os críticos severos deste dicionário.

Imigrante -- pessoa não esclarecida que acha que um país é melhor do que outro.

Imodesto -- pessoa dotada de forte concepção de seus próprios méritos e de uma frágil noção do valor dos outros.

Imoral -- inconveniente. Tudo aquilo que o ser humano acha inconveniente a determinados propósitos é rotulado de errado, doentio e imoral.

Impaciência -- esperar com pressa.

Imparcial -- incapaz de perceber uma vantagem pessoal na adoção de um dos lados de uma controvérsia ou de adotar uma de duas opiniões conflitantes.

Impiedade -- a sua irreverência à minha divindade.

Imposição -- ato de abençoar ou consagrar por meio da colocação das mãos. Cerimônia comum em muitos sistemas eclesiásticos, porém realizada com mais sinceridade por uma seita conhecida como os Ladrões.

Imposto -- preço que pagamos para poder criticar o governo.

Impostor -- aspirante rival às honras públicas.

Improvidência -- prover as necessidades de hoje com os rendimentos de amanhã.

Imprudente -- insensível ao valor de nossos conselhos.

Impunidade -- riqueza.

Incompatibilidade -- no casamento, diz-se da semelhança de desejos, particularmente o desejo de mandar.

Incorruptível -- diz-se daquele que cobra um preço alto demais.

Influência -- na política, um visionário quo que é dado em troca de um substancial quid.

Intelectual -- indivíduo capaz de pensar por mais de duas horas em algo que não seja sexo.

Intérprete -- alguém que possibilita que dois indivíduos de línguas diferentes se comuniquem mediante a repetição a cada um daquilo que o intérprete julga conveniente que seja dito de um para o outro.

Intimidade -- relação para a qual dois idiotas são arrastados para se autodestruírem.

Inventor -- sujeito que cria uma combinação de rodas, alavancas e molas e chama a isso de civilização.


-- Ambrose Bierce

4.9.03

Emil Staiger


Ao poeta lírico, propriamente, não importa se um leitor também vibra, se ele discute a verdade de um estado lírico. O poeta lírico é solitário, não se interessa pelo público; cria para si mesmo. Porém tal afirmação exige esclarecimentos. Composições líricas também são publicadas. A colheita de anos e anos é reunida e entregue a um público. Correto. Mas já aqui, num volume de poesias, "o balbucio apaixonado em linguagem escrita apresenta-se deveras estranho", como disse Goethe. E colecionar folhas soltas não parece apenas a Goethe um contra-senso. Quando o livro está pronto, o que é que o povo faz com ele? Pode-se declamar poesias líricas, mas apenas como também se pode ler um drama teatral. Recitado, um poema lírico não pode ser apreciado como merece. Um declamador a recitar, diante de uma sala cheia, poesias exclusivamente líricas transmite quase sempre uma impressão penosa. Mais plausível é um recital para um círculo pequeno, para pessoas a cuja sensibilidade possamos abandonar-nos. Mas um trecho lírico só desabrocha inteiramente na quietude de uma vida solitária. E mesmo este desabrochar não é sorte que seja dada todos os dias ao leitor. Folheamos uma coletânea de canções. Nada nos comove. Os versos nos soam vazios e surpreendemo-nos com o poeta vaidoso que se deu ao trabalho de escrever tais coisas, catalogá-las e entregá-las a seus contemporâneos e à posteridade. Subitamente, porém, numa hora especial, uma estrofe ou toda uma poesia comove-nos. A esta juntam-se outras, e chegamos quase a reconhecer que é um grande poeta que nos fala. É o efeito de uma arte que nem nos retém como a épica, nem excita e causa tensão, como a dramática. O lírico nos é incutido. Para a insinuação ser eficaz o leitor precisa estar indefeso, receptivo. Isso acontece quando sua alma está afinada com a do autor. Portanto, a poesia lírica manifesta-se como arte da solidão, que em estado puro é receptada apenas por pessoas que interiorizam essa solidão.


-- Em "Conceitos Fundamentais da Poética".

27.8.03

Nancy Morejón


la cena


ha llegado el tío Juan con su sombrero opaco
sentándose y contando los golpes
que el mar y los pesados sacos han propagado
por su cuerpo robusto

yo entro de nuevo a la familia
dando las buenas tardes
y claveteando sobre cualquier objeto viejo

sigo sin mirar fijamente
tomando el animal entre mis manos
distraída
pidiendo con urgencia los ojos de mi madre
como el agua de todos los días

papá llega más tarde
con sus brazos oscuros y sus manos callosas
enjuagando el sudor en la camisa simple
que amenaza dulzona con destrozar mis hombros
ahí está el padre
acurrucado casi
para que yo encontrara vida
y pudiera existir allí donde no estuvo
me detengo ante la gran puerta
y pienso
en la guerra que podría estallar súbitamente
pero veo a un hombre que construye
otro que pasa cuaderno bajo el brazo

y nadie
y nadie podrá con todo esto

ahora
vamos todos temblorosos y amables
a la mesa
nos miramos más tarde
permanecemos en silencio
reconocemos que un intrépido astro
desprende
de las servilletas las tazas de los cucharones
del olor a cebolla
de todo ese mirar atento y triste de mi madre
que rompe el pan inaugurando la noche



-- Em " Richard trajo su flauta y otros argumentos".

25.8.03

Haikai amétrico


Conheço um japonês
grande inimigo
dos versos que escrevo
porque tem cada estrofe mais de três


-- Joan Alcover

22.8.03

Dicionário do Diabo


H


Habeas corpus -- ação judicial mediante a qual pode-se retirar da cadeia um homem preso pelo crime errado.

Hábito -- grilhões do homem livre.

Herói -- indivíduo que, diferente do resto, não pode sair correndo.

Hipócrita -- pessoa que professa virtudes que não acata com a vantagem de parecer ser o que despreza.

História -- relato quase sempre falso de acontecimentos quase sempre sem importância realizados por políticos quase sempre desonestos e soldados quase sempre idiotas.

Historiador -- fofoqueiro de amplo espectro.

Homem -- ser do sexo masculino que durante os primeiros nove meses de sua vida deseja ansiosamente sair do útero para passar o resto da vida querendo entrar nele de volta.

Homeopatia -- escola da medicina situada entre a alopatia e a ciência cristã. Em relação a essas duas últimas todas as outras escolas são nitidamente inferiores, uma vez que a ciência cristã pelo menos cura doenças imaginárias.

Honesto -- desajustado social.

Hospitalidade -- virtude que nos induz a alojar e alimentar determinadas pessoas que não precisam disso.

Humanidade -- a raça humana como um todo, com exceção dos poetas antropóides.

Humildade -- paciência inusitada para planejar uma vingança que valha a pena.


-- Ambrose Bierce

21.8.03

Que brasileiro não tem uma vizinha gorda e cheia de varizes como uma viúva machadiana? Dirá alguém que a vizinhança forma um elenco abundante e diversificado. Não é bem assim. A vizinha autêntica e universal há de ser obesa. E mais: - é preciso que, na estação cálida, use um colar de brotoejas.
Eis o que eu queria dizer: - uma dessas minhas vizinhas patuscas é uma maníaca de velório. Todo o santo dia, lá vai ela para a capelinha de Real Grandeza, Catumbi ou São Francisco Xavier. E, como a capela possibilita a simultaneidade de velórios, ela passa de um para outro e pranteia os vários defuntos. Ao vê-la assoar-se no lencinho, perguntam: "A senhora é parente?" Não é nada. Não conhece o morto nem de vista, nem de nome, nem de cumprimento.
( E a santa senhora chora, de preferência, o desconhecido absoluto. Tem um inconfesso e irritado preconceito contra o cadáver de suas relações.) Um dia, cruzo com a vizinha machadiana. Dou-lhe um "bom-dia" e ia passar adiante. Ela, porém, crispa no meu braço a sua mão pequena e voraz de gorda. Diga-se de passagem que é a única senhora de minhas relações que preserva o uso inatual e nostálgico do leque.
Era um dia irrespirável. A canícula lavrava por toda a cidade. Ao mesmo tempo que falava comigo ela abanava, sim, refrescava as brotoejas do pescoço. Simplesmente, a vizinha queria dizer-me, com uma convicção forte: - "Não há mais enterros como o do barão do Rio Branco." Ela, que não saía dos cemitérios, falava de cadeira. Eu, grave, concordei. Ficamos um momento, em pé, na calçada. E a vizinha e eu parecíamos achar que, entre outras coisas, um grande enterro é quase uma atração turística, assim como o Pão de Açúcar ou Paquetá.


-- Nelson Rodrigues, em "A Feia Solidão", 1968.

20.8.03

Minima Moralia



já fiz de tudo com as palavras

agora eu quero fazer de nada


-- Haroldo de Campos, em "A Educação dos Cinco Sentidos".

18.8.03

Alejandra Pizarnik

No quiero ir más que hasta el fondo


Alguien entra en el silencio y me abandona
Ahora la soledad no está sola.
Tu hablas como la noche
Te anuncias como la sed.

- - - - - - - - - - - - - - - - -

de musica la lluvia
de silencio los años
que pasam una noche
mi cuerpo nunca más
podrá recordarse

- - - - - - - - - - - - - -

Anoche tomé agua hasta las tres de la madrugada. Estaba un poco ebria y lloraba. Me pedía agua a mí como si yo fuera mi madre. Yo me daba de beber con asco.

- - - - - - - - - - - - - -

Esta voz aferrada a las consonantes. Este cuidar de que ninguna letra quede sin enunciar. Hablas literalmente. No obstante, se te comprende mal. Es como si la perfecta precisión de tu lenguaje revelara en cada palabra un caos que se vuelve más evidente en la medida en que te esfuerzas por ser comprendida.

- - - - - - - - - - - - - - -

No eres tú la culpable de que tu poema hable de lo que no eres.


(fragmentos da poesia e dos diários de Alejandra Pizarnik. A frase-título estava em meio aos seus papéis ao ser encontrada morta após uma overdose de seconal.)


Isto não é bonito

Isto não é legível

Isto não é para
crianças

Isto não é linguagem
cifrada

Isto não dignifica o
povo

Isto é o lado de
dentro

da tua porta de fora,
isto

deves conhecer: a
tua mão

colada ao trinco...


-- Gerrit Kouwewaar, no Borras de Café.

Eu abro mão dos rompantes
pela inspiração constante
Não falo em hora marcada
Tão pouco em rima cronometrada
Só não quero longos dias inférteis
Cólicas de um estado quase-poético
Se esvaindo inacabado
Como placas de um endométrio

-- Eu e o Poeta, blog extinto.

17.8.03

O sol bate na nuca de minha mãe e seus olhos me queimam de dentro do mar. 
Meu pai, com a cabeça deitada no barco,
parece passar uma fita métrica no céu
enquanto se pergunta onde deixou as chaves do apartamento.
Ao lado do baldinho, o vento sacode minha blusa
e uma onda inesperada os desmancha na areia.


maira parula

15.8.03

Joan Brossa


EL RECITAL

El poeta fa un recital acompanyat per un bateria.
En començar hi ha vint espectadors.
Després, deu.
Després, cinc.
Després, tres.
Després, un, que s'aixeca i diu:
-Vol fer el favor de callar, que no
em deixa sentir la música!

-

Poema do cristão

Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e futuros
não me aturdem, porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas
que eu decomponho e absorvo com os sentidos
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressôo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos mais distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.
Opero transfusões de luz nos seres opacos,
posso mutilar-me e reproduzir meus membros, como as estrelas do mar,
porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo,
e creio na vida eterna, amém!
E, tendo a vida eterna, posso transgredir leis naturais:
a minha passagem é esperada nas estradas;
venho e irei como uma profecia,
sou espontâneo como a intuição e a Fé.
Sou rápido como a resposta do Mestre,
sou inconsútil como a Sua túnica,
sou numeroso como a sua Igreja,
tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada e refeita
todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos cardeais;
e sobre os ombros A conduzo
através de toda a escuridão do mundo, porque tenho a luz eterna nos olhos.
E, tendo a luz eterna nos olhos, sou o maior mágico:
ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e ômega, peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado, tenho mantos de púrpura e de estamenha, sou burríssimo como São Cristóvão e sapientíssimo como Santo Tomás. E sou louco, louco, inteiramente louco, para sempre, para todos os séculos, louco de Deus, amém!
E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida;
sou a balança, a criação, a obediência;
sou o arrependimento, sou a humildade;
sou o autor da paixão e morte de Jesus;
sou a culpa de tudo.
Nada sou.
Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam!


-- Jorge de Lima

14.8.03

Isaac Bábel

Infância. Em casa de vovó


Estude e você conseguirá tudo: riqueza e glória.
Tem que saber tudo.
Todos vão cair e rebaixar-se diante de você.
Todos devem invejar você.
Não acredite nas pessoas.
Não tenha amigos.
Não lhes dê dinheiro.
Não lhes entregue o coração.

-

13.8.03

Marquês de Sade


Meu amigo, a religião só impera no espírito dos que nada podem explicar sem ela: é o nec plus ultra da ignorância. Mas a nossos olhos de filósofos, a religião não passa de uma absurda fábula feita unicamente para o nosso desprezo. E que noções, efetivamente, fornece-nos essa religião sublime? Gostaria muito que mo explicassem... Quanto mais a examinamos, mais percebemos que suas quimeras teológicas só são apropriadas a nos embrulhar as idéias: metamorfoseando tudo em mistério, essa religião fantástica nos dá como causa do que não compreendemos alguma coisa que compreendemos menos ainda. Será explicar a natureza atribuir a causa dos fenômenos a agentes desconhecidos, a potências invisíveis, a causas imateriais? Pode o espírito humano se satisfazer quando se lhe diz para tomar como razão do que não entende a idéia mais incompreensível ainda de um Deus que jamais existiu? Pode a natureza divina, da qual nada concebemos, que repugna o bom senso e a razão, fazer conceber a natureza do homem que já achamos tão difícil de se explicar? Indagai a um cristão, quer dizer, a um imbecil, já que só um deles pode ser cristão, qual a origem do mundo: ele responderá que foi Deus quem criou o universo. Perguntai-lhe então o que é Deus: ele não sabe nada a respeito. O que é criar: ele não tem a menor idéia. Qual a causa das pestes, das fomes, das guerras, das secas, das inundações, dos terremotos: dirá que é por causa da cólera de Deus. Indagai-lhe como remediar tantos males: com preces, sacrifícios, procissões, oferendas e cerimônias, responderá. Mas por que o céu está em cólera? É que os homens são maus. Porque sua natureza é corrompida. Qual a causa dessa corrupção? O primeiro homem, seduzido pela primeira mulher, comeu uma maçã que seu Deus lhe proibira de tocar. Quem mandou essa mulher fazer tamanha asneira? O diabo. Mas quem criou o diabo? Foi Deus. Por que Deus criou o diabo, destinado a perverter o gênero humano? Ignora-se... é um mistério escondido no seio da Divindade, ela mesma um mistério. Quereis prosseguir? Perguntai a esse animal qual o princípio escondido das ações e dos movimentos do coração humano? A alma, responderá. E o que é alma? Um espírito. O que é espírito? Uma substância que não tem forma, cor, extensão ou parte. Como uma tal substância pode ser concebida? Como pode movimentar um corpo? Não se sabe, é mistério. Os animais possuem alma? Não. E por que os vemos agir, sentir, pensar absolutamente como os homens? Aí se cala, não sabe o que dizer; a razão disso é simples: se empresta uma alma aos homens, é pelo interesse de fazer disso o que quiser, mediante o poder que se atribui sobre ela; ao passo que não tem o mesmo interesse em relação à dos animais, e que um doutor em teologia seria bastante humilhado pela necessidade que teríamos de comparar sua alma à de um porco. Eis as soluções pueris que somos obrigados a conceber para explicar os problemas do mundo físico e moral! ... Jamais se deve arrancar a venda dos olhos do povo. É necessário que ele se estagne em seus preconceitos, isso é essencial. Onde estariam as vítimas de nossa perversidade se todos os homens fossem criminosos! ... Jamais deixemos de manter o povo sob o jugo do engano e da mentira; apoiemo-nos sem cessar no cetro dos tiranos; protejamos seus tronos: eles por sua vez protegerão a Igreja e o despotismo, fruto dessa união, e manteremos nossos direitos no mundo.

-- Marquês de Sade, séc. 18.

12.8.03

Dicionário do Diabo


G


Genealogia -- importância que um descendente dá ao seu ancestral que, por sua vez, nunca se preocupou muito com isso.

Gentileza -- breve prefácio a dez volumes de cobranças.

Gíria -- discurso do indivíduo dotado de memória auditiva que grunhe com a língua o que ele pensa com os ouvidos; em geral ele muito se orgulha como criador ao conseguir realizar o feito de um papagaio.

Glutão -- pessoa que previne os males da moderação com a prática da dispepsia.

Gnósticos -- seita de filósofos que tentou articular uma aliança entre os primeiros cristãos e os platônicos. A aliança fracassou por falta de representantes cristãos na bancada.

Gota -- nome que os médicos dão ao reumatismo de seus pacientes ricos.

Governo -- organização que sempre leva a culpa de tudo e cujos integrantes são os únicos trabalhadores com direito a decidir sobre o próprio salário.

Gravitação -- força de atração que todos os corpos exercem uns sobre os outros determinada pela quantidade de matéria que contêm; esta quantidade de matéria é determinada pela força da atração mútua exercida. Ilustração louvável e edificante de como a ciência usa A para provar B, e B para provar A.

Guilhotina -- instrumento responsável pelo curioso hábito de dar de ombros dos franceses. Não há registros desse hábito comum antes da Revolução Francesa.

-- Ambrose Bierce, 1911.

11.8.03

Kafka em "Cartas a Milena"



-- Esta manhã tornei a sonhar contigo. Estávamos sentados, juntos, e tu me afastavas, não com maus modos, porém amavelmente. Eu me sentia muito infeliz. Não porque me afastasses, porém por minha culpa, porque te tratava como a uma silenciosa qualquer, e não percebia a voz que falava em ti, que justamente me falava, a mim. Ou talvez não fosse que não a percebesse, porém que não pudesse responder. Mais desconsolado ainda do que no outro sonho, eu me ia.

Ocorre-me à memória algo que uma vez li em alguma parte, mais ou menos assim: "Minha amada é uma coluna de fogo que traslada pela terra. Agora me tem preso. Mas não conduz aqueles que prendeu, porém aos que a vêem."

Teu.

(Agora perco também o nome; cada vez se torna mais breve e chegou a ser somente: Teu.)


9.8.03

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

-- Bernardo Soares, em "Livro do Desassossego". Retirado do Silêncio.

8.8.03

Arte de desamar


Meu amor é disponível,
A qualquer hora ele fecha;
A crise de convicção
É mesmo muito grande.

As pernas do meu amor
Distraem da metafísica,
O corpo do meu amor
Tem a vantagem sublime
De disfarçar o horizonte.

Eu não amo meu amor,
Para que tapeação.
Não amo ninguém no mundo,
Nem eu mesmo, nem me odeio.

Meu amor é uma rede
Onde descanso da vadiação.
Os olhos do meu amor
São bastante distraídos,
Não vêem meu desamor.

Com o porta-seios moderno
Os seios do meu amor
Aparados à la garçonne
Ocupam lugar pequeno
No espaço do seu corpo.

Se meu amor qualquer dia
Me abandonar, ai de mim!
Eu não me suicidarei...
Escreverei mais poemas.


-- Murilo Mendes, em "O Visionário", 1930-1933.

5.8.03

Patrícia Galvão

instrução publica


Escola Normal do Braz. Reduto pedagogico da pequena burguezia. O estudo não é muito caro. Os paes querem que as filhas sejam professoras, mesmo que isso custe comer feijão, banana e brôa todo dia.

O predio grande, amarelo e sujo. O jardim de formigas do jardineiro José. Eternas serventes. O porteiro bonito que estuda Direito. O secretario anão e poeta. As professoras envelhecendo, secando. Os lentes sem finalidade. O sorveteiro. O amendoim torrado. As meninas entrando, saindo. Bem vestidas. Mal vestidas. As bem vestidas são as filhas dos medicos do Braz e a Matilde, a filha daquela girl do Arruda. Todas acham ela bonita. Tem o sorriso triste. Os olhos muito verdes. As coxas aparecendo sob o jersey curtissimo. Paga sorvete pra todas. Cada lanche! Como corista ganha! Mas ela não conta pra ninguem que já trabalhou na Fabrica.

Linguas maliciosas escorregam nos sorvetes compridos. Peitos propositaes acendem os bicos sexualisados no "sweater" de listas, roçando.
O caixeirinho de calçados morde de longe.
Clelia, a portuguezinha chic, lisa como uma tabôa, sorri na boca enorme para um estudante rico.
-- Fedorzinho! Não se enxerga.
-- Deixa de historia. É o José Mojica em pessôa. Principalmente com a camisa alta.
-- Outro dia encontrei ele em Santana com a Dirce.
-- Ah! Você sabe que o pae encontrou ela numa casa de tolerancia na rua Aurora? Com um homem casado...
-- Quem é que não sabe. Por isso que ela não tem vindo. Diz que ele vae botar ela no Bom Pastor.
-- Por isso é que as normalistas têm fama. Desmoralizam a gente.
-- Ora, vae saindo! Ela foi examinada e é virgem. Ela não faz mais do que você no Recreio Santana e do que eu em Santo Amaro.
-- Mas eu nunca entrei num quarto...
-- Olha lá o decote da Edith. Ela vem assim só pra mostrar os peitos na aula de desenho.
Os bigodinhos estacionam nas esquinas. O diretor não quer estragar o nome da Escola com o escandalo diario dos pares amorosos. Nenhum homem póde parar perto do portão. Mas as saias azues se enroscam nas esquinas.

Eleonora da Normal beija a Matilde que entrou de novo. Como um homem.
O sino pesado chama na mão do porteiro.
-- Bom dia, seu Carlos!
-- Bom dia, Branquinha!
Não trata ninguem de dona. O bando azul e branco caminha pelo roseiral maltratado até a escada grande. As mãos custam a se despregar nos corredores.
-- Entrem... Entrem...
-- Só mais um sorvete, seu Carlos!
Sobem aos grupos, abraçadas.
-- Se você visse que suco o vesperal do Tennis!
-- Eu não tinha vestido, sinão ia ao Teyçandaba.
-- Eu fui ao Politeama.
-- Vá saindo. Com aquela cafagestada!
-- Você viu a Cinearte de hoje? Fala do cinema russo...
-- Escuta! Você sabe o que é o comunismo?
-- Não sei nem quero saber.


-- Em "Parque Industrial", 1933. Reproduzido de edição fac-similar.

31.7.03



Mensagem


Não venhas mais, querida, me encontrar!
Vais pisar, se o fizeres, no salgueiro
que plantei, recordando o alvissareiro
primeiro dia em que vieste, ao luar.

Não poderei mais ver-te. Sou escrava
da vontade inflexível de meus pais,
dos quais, quando lhes disse que te amava,
ouvi palavras ásperas demais.

Não pules outra vez o nosso muro!
quebrarias as hastes delicadas
do sândalo que rego ao claro-escuro
de evocativas, doces madrugadas.

O meu irmão, amor, também não quer
que te veja outra vez, infelizmente
o destino me fez simplesmente mulher
e devo ser humilde e obediente.

Nem arranques, num gesto impaciente,
a sebe junto à qual, um dia, enfim
me abraçaste... fazendo-o, deixarias
sem proteção as flores do jardim
confidentes, nas longas tardes frias,

do meu amor sem fim...


Despedida

O teu lenço de seda, umedecido
de lágrimas, deixaste meigamente
quando subiste ao carro, em minha mão.

Fiquei vendo teu vulto estremecido
que sumia. Meu pranto amargo e quente
molhava a poeira que cobria o chão.

Na tua direção, forte lufada
de vento sopra, agora; então me agarro

à esperança falaz de que a dourada
poeira, por minhas lágrimas molhada,

alcance, ainda, as rodas do teu carro...


-- poesia vietnamita, autor desconhecido.

30.7.03

Antonin Artaud


Toda escrita é porcaria.
Todos aqueles que saem de um lugar qualquer, para tentar explicar seja lá o que lhes passa no pensamento, são porcos.
Toda gente literária é porca, especialmente essa do nosso tempo.
Todos os que possuem pontos de referência no espírito, quero dizer, de um lado certo da cabeça, sobre lugares bem demarcados do cérebro; todos aqueles que são mestres da língua; todos aqueles para quem as palavras têm sentido; todos aqueles para quem existem elevações da alma e correntes do pensamento, aqueles que são o espírito de sua época e que nomeiam essas correntes do pensamento; penso nas suas mesquinhas atividades precisas e nesse ranger de autômatos vomitado para todos os lados por seu espírito;
-- são porcos.
Aqueles para os quais certas palavras têm sentido e certas maneiras de ser; aqueles que têm tão boas maneiras; aqueles para quem os sentimentos podem ser classificados e que discutem um grau qualquer das suas hilariantes classificações, aqueles que ainda acreditam em "termos"; os que mexem com as ideologias de destaque na época; aqueles cujas mulheres falam tão bem, e suas mulheres também, que falam tão bem, e falam das tendências da sua época; os que ainda acreditam numa orientação do espírito; os que seguem caminhos, que acenam com nomes, que fazem gritar as páginas dos livros;
-- esses são os piores porcos.
Moço, como você está sendo gratuito!
Não; penso nos críticos barbudos.
Já falei: nada de obras, nada de língua, nada de palavras, nada de espírito, nada.
Nada a não ser um belo Pesa-Nervos.
Uma espécie de parada incompreensível e bem levantada no meio de tudo no espírito.
E não esperem que eu nomeie esse tudo, diga em quantas partes se divide, qual é o seu peso, que eu entre nessa, que me ponha a discutir esse todo, e que discutindo me perca e assim comece, sem saber, a PENSAR -- e que se esclareça, que viva, que se atavie com uma multidão de palavras, todas bem untadas de sentido, todas diferentes, capazes de expor todas as atitudes, todas as sutilezas de um pensamento tão sensível e penetrante.
Ah, esses estados nunca nomeados, essas situações eminentes da alma; ah, esses intervalos do espírito; ah, essas minúsculas falhas que são o pão cotidiano das minhas horas; ah, essa formigante população de dados -- são sempre as mesmas palavras que eu uso e na verdade pareço não avançar muito no meu pensamento, mas na realidade avanço muito mais que vocês, burros barbados, porcos pertinentes, mestres do falso verbo, masturbadores com fotografias, folhetinistas, rés-do-chão, engordadores de gado, entomologistas, chaga da minha língua.
Já disse, eu perdi a fala, isso não é motivo para que persistam, para que insistam na fala.
Chega, serei compreendido daqui a dez anos pelas pessoas que então estiverem fazendo o que vocês fazem agora. Então conhecerão meus mananciais de água fervente, verão minhas geleiras, aprenderão a neutralizar meus venenos, entenderão os jogos da minha alma.
Então todos os meus cabelos estarão grudados na cal da vala comum, todas as minhas veias mentais; então enxergarão meu bestiário, e minha mística terá se transformado em bandeira. Então verão as juntas das pedras fumegarem, arborescentes ramalhetes de olhos mentais se cristalizarão em glossários; então verão tombarem aerólitos de pedra; então verão cordas; compreenderão a geometria sem espaço; entenderão a configuração do espírito, e saberão como perdi meu espírito.
Então compreenderão por que meu espírito não está mais aí; verão todas as línguas se paralisarem, todos os espíritos ressecarem, todas as línguas se encarquilharem, os vultos humanos se achatarem e desinflarem como se aspirados por ventosas sugadoras; e esta lubrificante membrana continuará flutuando no ar, esta membrana lubrificante e cáustica, esta membrana com dupla espessura, inúmeros níveis, uma infinidade de fendas, esta melancólica e vítrea membrana, porém tão sensível, tão pertinente, tão capaz de se desdobrar, se multiplicar, de dar voltas com sua reverberação de fendas, sentidos, estupefacientes, irrigações penetrantes e contagiosas;
então acharão que está tudo muito bem,
e não precisarei mais falar.

-- Antonin Artaud, em "O Pesa-Nervos", 1924-27.


29.7.03

Dicionário do Diabo



F


Fácil -- diz-se da mulher que tem a moral sexual de um homem.

Fanático -- indivíduo que defende obstinada e ardorosamente uma opinião diferente da nossa.

-- crer sem evidências em algo que alguém disse sem conhecimento sobre coisas sem fundamento.

Felicidade -- agradável sensação que nasce da observação da desgraça alheia.

Fidelidade -- virtude peculiar daqueles que estão a ponto de serem traídos.

Filantropo -- indivíduo idoso e rico que aprendeu a sorrir enquanto a consciência lhe bate a carteira.

Filisteu -- indivíduo cuja mente é produto do ambiente e da moda, seja no pensamento ou sentimentos. Às vezes ele é culto, em geral próspero, vulgarmente íntegro e sempre solene.

Filosofia -- caminhos de muitos atalhos que levam de lugar nenhum a nada.

Filósofo -- indivíduo cego numa casa escura que procura um chapéu preto que não existe.

Finanças -- a arte ou ciência de administrar rendas ou recursos para auferir vantagens para o administrador.

Fisionomia -- a arte de determinar o caráter de uma pessoa através de semelhanças e diferenças entre o seu rosto e o nosso, considerado padrão de excelência.

Fonógrafo -- brinquedo irritante que dá vida a sons mortos.

Fotografia -- um quadro pintado pela luz, dispensa formação artística.

Fronteira -- em geografia política, uma linha imaginária entre dois países que divide os direitos imaginários de um dos direitos imaginários de outro.

Funeral -- cerimônia em que se prova o respeito pelos mortos engordando o bolso dos agentes funerários.

Futuro -- aquele período do tempo em que nossos negócios prosperam, nossos amigos são verdadeiros e nossa felicidade é garantida.


-- Ambrose Bierce, 1911.