27.2.09



exercícios prepositivos acidentais



de quem eu gosto às paredes confesso

de quem eu gosto ante as paredes confesso

de quem eu gosto após as paredes confesso

de quem eu gosto até às paredes confesso

de quem eu gosto com as paredes confesso

de quem eu gosto contra as paredes confesso

de quem eu gosto das paredes confesso

de quem eu gosto desde as paredes confesso


de quem eu gosto nas paredes confesso

de quem eu gosto entre as paredes confesso

de quem eu gosto para as paredes confesso

de quem eu gosto perante as paredes confesso

de quem eu gosto pelas paredes confesso

de quem eu gosto sem as paredes confesso

de quem eu gosto sob as paredes confesso


de quem eu gosto sobre as paredes confesso

de quem eu gosto por trás das paredes confesso


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21.2.09

A boneca de Kafka


A boneca de Kafka 

  Querida mãe Eu estava debaixo da sua cama o tempo todo. Disso você nunca ficou sabendo enquanto viveu. Mas se tivesse me procurado melhor, tivesse se dignado a colocar os seus joelhos ralados e sujos de menina no chão e olhado embaixo da cama, teria me encontrado lá. Não precisaria ter ficado tão triste, ter soluçado desesperada aquela tarde no parque e chamado a atenção arguta daquele homem doentio que mentiu para você dizendo que a sua querida Puppe -- eu -- não havia sumido, que estava viajando pelo mundo. Agora me diz, se você ainda tem boca para falar, como eu poderia estar viajando se estava parada lá, jogada no chão? Largada como um papel de bala amassado no meio do pó, à vista de baratas e dos insetos mais daninhos. Você havia se debatido a noite toda, soltou a minha mão e eu acabei escorregando pelo vão da parede fria. Você alguma vez já escorregou por uma parede fria, mamãe? Feito uma lesma? Sei que a essa altura nem deveria mais chamá-la de mãe, pois você deve estar morta. Toda carne morre cedo e eu ainda estou viva. Sou de pano e moro em Berlim, nunca saí de Berlim, fiquei aqui esse tempo todo pertinho de você sem que você me visse ou me encontrasse. Que ironia, hoje é você quem se mistura ao pó enquanto eu virei objeto de colecionador sem jamais ter viajado pelo mundo como disse o estranho de Praga nas sucessivas cartas que ele escreveu para você em meu nome. Como pôde acreditar que eu iria embora sem me despedir?, que eu estava cansada das mesmas pessoas se todas as minhas mesmas pessoas eram você? Como pôde acreditar que eu usaria um intermediário, um estranho, para me comunicar com você por carta? Eu nem o conhecia, ninguém conhecia aquele infeliz nesta cidade, o estranho que fugira de Praga para morrer em Berlim. Como pôde confiar num homem com cara de barata? Ele a iludiu para se fazer de bonzinho. Ou se fez de bonzinho para se iludir, como todo escritor costuma fazer. Sabia que ele era escritor? Que usava as palavras como um passatempo mórbido? E você caiu na conversa. Acreditou nas cartas falsas, nas leis da ficção. Por três semanas acreditou nas cartas que ele lia em voz alta para você, vendo em você não a dor da sua perda, mas a própria fragilidade dele. E aos poucos o estranho foi lhe ensinando o comportamento correto da imaginação. Você acreditou quando ele disse que eu cresci, fui para a escola e conheci pessoas novas. Acreditou quando eu disse pela boca do esquisito que alguma coisa me impedia de voltar para o seu lado. E continuou acreditando mais a cada dia e se conformando com o meu desaparecimento, a sua perda. Acreditou tanto que no vigésimo primeiro dia sua imaginação já era um balão cheio de sonhos que não eram seus, eram sonhos da menina que ele tinha na cabeça. No vigésimo primeiro dia, junto com um pedaço de bolo, você, quase feliz, ouviu-o dizer que eu havia casado e morava com o meu marido boneco numa casa de campo! A Puppe casou enfim, a sua bonequinha casou, como se dissesse "Agora você está livre!" Que historinha ridícula, mamãe. Em vez de ajudá-la a me procurar, ele inventou uma nova boneca, uma boneca que não era eu, não usava minhas palavras, não falava pelo meu coração. E as cartas, uma após a outra, eram uma despedida intencionalmente prolongada de você, eram uma espécie de tortura lenta, pois ele sabia, melhor do que ninguém, que toda história precisa ter um fim. Que até as bonecas têm seu fim. Um fim definido por ele. O fato de eu ainda poder estar por perto perdida e esperando por você não significava nada para ele. Como você, ele não sabia que eu estava lá embaixo, mas poderia ter adivinhado. Toda boneca um dia cai da cama. Só que ele queria que você parasse de chorar, queria calar a criança rabugenta, queria que o mundo voltasse ao silêncio dos parques, e não hesitou um só instante em dizer-lhe que eu já estava longe, viajando pelo mundo, "mudando de ares". Ele precisava afastar-me de você, retalhar os meus panos e compor uma boneca nova. Não uma boneca suja e perdida embaixo da cama, mas uma boneca nova com um final feliz. Todo mundo gosta de um final feliz e um grande escritor não é diferente. O diferente é que eles precisam usar a boneca para admitir. Toda menina gosta de bonecas que casam, as sujas é melhor que fiquem esquecidas embaixo da cama. 


 Dora 



13.2.09


sinédoque
metonímia
hipérbole
metáfora e
metalepse


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