4.12.05

Tudo começou quando eu tinha 12 anos. E agora vou ter de contar isso por escrito porque meu médico mandou. Não estou com a menor paciência para revelações íntimas a esta altura da vida e ainda por cima domingo à noite. Mas o médico diz que escrever vai me ajudar porque ele acha que eu preciso de ajuda. Diz que tudo que é escritor é maluco e que só não estão trancafiados num hospício porque a sociedade ainda valoriza os livros porque dão um bom dinheiro a quem disfarça bem a maluquice. Ele disse isso, eu fiquei olhando, tentando entender por que o meu caso era motivo de comentários sobre literatura. Eu quero mais é que os escritores se fodam se eles gostam de lavar o rabo em público, mas parece que meu médico não pensa assim quando pensa. Eu quando penso, penso exatamente assim. Eu não gosto de lavar o rabo em público e vou ter que lavar porque tudo começou quando eu tinha 12 anos e um dia acordei gorda e peluda. Pêlos debaixo do braço, nas pernas, na buceta. E a pele inchada. Camadas de gordura se acumulando por baixo, sem que eu tivesse feito qualquer coisa que provocasse isso. Modificaram meu corpo sem a minha autorização. Os médicos disseram que era normal. Ouvi uma conversa de hormônios, tireóide, glândulas disso, glândulas do caralho e todos aqueles polissílabos que hoje qualquer ignorante diplomado ou não aprendeu a repetir na televisão sem entender xongas. Porque gente burra é mercadoria que não falta. E daí eu tinha 12 anos, acordei peluda e gorda e peguei uma gilete e cortei tudo. Pêlos e pele. Eu me furei como se fura um balão de aniversário, pra ver se desinchava. Não desinchou e fui parar no hospital. Fiquei umas duas semanas lá, até passar o risco de infecções. Voltei magra. Precisava ver. Meus pais até passaram a reparar em mim. Não bem em mim, mas na minha tentativa de suicídio, o que me pareceu o novo nome que eles deram pra mim. Tentativa de Suicídio, sexo feminino, branca, 12 anos. Não tive do que reclamar. A rua inteira, o colégio, o pessoal da praia, todos passaram a me ver com novos olhos. Eu me conferira um novo poder. Eu agora tinha poder sobre o meu corpo. Podia modificá-lo quando bem quisesse. Quando o mundo se acostumava com minha aparência, eu mudava tudo. Fazia dietas sucessivas de engorda e emagrecimento. Cabelo curto, cabelo grande. Loura, morena, grisalha, ruiva, verde, roxa. Alta, baixa, banho tomado, suja. Roupa nova e limpa, rasgada e fedorenta. Isso pra falar o mínimo que não estou aqui pra dar detalhe a vagabundo. Hoje em dia ninguém se mete mais. Médicos, especialistas, amigos ou parentes. Eles sabem que isso é coisa minha. Que sou feliz assim. E sempre forneço um espetáculo à parte. Devem se divertir à minha custa, os pobres de espírito. Falam pelas minhas costas, que eu sei. Eles pensam que vivo de costas. Que se fodam. Já foi determinado, é minha lei, ninguém se meta com o prazer que tiro de minhas experiências com o corpo. Quem não se interessa, que se foda também. A quem se interessa posso dizer que já fiquei 3 semanas sem dormir, 3 meses sem comer, 4 meses sem me mexer sentada numa cadeira de frente pra parede, 17 minutos debaixo d'água, 39 horas dentro de uma sauna na temperatura máxima, 4 dias sem roupa num freezer de açougue, troquei de cara 6 vezes, 23 transfusões de sangue, provei tudo que é droga e remédio, posso dizer isto tudo e muito mais mas não quero me exibir. Eu morri? Não morri. Se quisesse contar vantagem tinha aceito a proposta de um primo idiota e ido trabalhar num circo fazendo dupla com a gorila da mãe dele. Não fui. Será que meu médico vai gostar deste relato? Acho que não, médicos já ouviram falar de cada coisa, são todos pervertidos. Se ele soubesse da surpresa que estou preparando pra ele, não ia desfilar por aí com aquela carinha bonita que estou querendo pra mim.

maira parula



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