20.12.05

o português da estrada etc. etc.



(foto lá de Goianá -- MG)


15.12.05

Roberto Schwarz

Depois do telejornal


Pela terceira vez explico a manobra legal usada contra os pretos ativistas à velha tia surda que visito em Nova York. Seus olhos cansados postos em mim, também as mãos, são da irmã que envelhece noutro continente. Está aqui desde 42. Fugiu aos nazistas em 39, foi internada em 40 num campo francês, em 41 passou para um quartel em Casablanca, perdeu a mãe em Buchenwald e costurou seis dias por semana, 25 anos, numa fábrica de roupas no Bronx. Sem entender acena ao sobrinho do Brasil -- onde as coisas vão mal -- a cabeça que não pacienta mais com as lutas infindáveis do planeta. -- Sei que você vai dizer que explico fatos sociais como se fossem naturais, e vai pensar que sou uma velha. Mas às vezes acredito nalgum defeito genético do homem. Senão por que este gosto de brigar? É tudo muito, muito triste, e eles enquanto isto, os donos da vida como dizem os outros, os donos dos meios de produção -- a lepra do mundo, me entenda bem! a lepra do mundo -- nos acabam de trabalho, desemprego, guerra ou loucura.

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Divagações no cais


Há fuga de capitais
devido às medidas policiais
nesta não acredito mais
onde estais
que não nos achacais
meus sentimentos nacionais
diluem-se mais e mais
estranha essa paz
o que será que preparais

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Vejo num globo terrestre
de portaria de hotel
a familiar cara larga
e torta do Brasil
simpática, geografia
não é história




- Em Corações veteranos, 1974.

13.12.05




E a primeira, e a primeira, e a primeira memória, memória que tenho, que tenho de meu pai é dele me colocando no refrigerador. Ele tinha o hábito de tirar toda a roupa do meu corpo de cinco anos de idade e eu ficava sentada nua naquela prateleira prateada da geladeira. ... Então ele se abaixava em direção à gaveta dos legumes, abria a gaveta e tirava as cenouras, o aipo, a abobrinha, os pepinos. E aí ele começava a trabalhar o meu buraquinho, meu pequeno buraquinho, meu pequeno pequeno buraquinho. Meu buraquinho de menina. Me mostrando "como é ser como a mamãe", ele diz. Me mostrando "como é ser uma mulher, ser amada. Essa é uma tarefa para o papai", ele me diz. Trabalhando meu buraquinho. ... Então ouço minha mãe chegar em casa. E ela começa a gritar a plenos pulmões. "O que aconteceu com os legumes do jantar de hoje? Você andou brincando com sua comida de novo, menina? Eu ia fazer a receita favorita do seu pai." Eu apenas quero gritar, mas não posso, claro, "Mamãe, abra seus olhos! VOCÊ NÃO SABE QUE EU SOU A FAVORITA DO PAPAI?"



Karen Finley, no monólogo do "Refrigerador", San Francisco, 1990. Na foto, a polêmica autora e performer atuando em George and Martha, 2004.


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7.12.05

Oswald de Andrade



Fatigado
Das minhas viagens pela terra
De camelo e táxi
Te procuro
Caminho de casa
Nas estrelas
Costas atmosféricas do Brasil
Costas sexuais
Para vos fornicar
Como um pai bigodudo de Portugal
Nos azuis do clina
Ao solem nostrum
Entre raios, tiros e jabuticabas.



Oswald de Andrade, "Fim de Serafim", 1929.


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6.12.05

Poesia africana

Poesia africana -- 2 momentos



Ser tigre


O tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo,
infra-sémen.

Não tem forma,
é quase nada, parece morto.

Porém existe,
por isso espera.

Epopéia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,

Ele será
quando for tempo disso.


(Arménio Vieira, Cabo Verde, 1999.)

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Em teus dentes


Em teus dentes
o sol
é diamante de fantasia
a lua
caco-de-garrafa
e
a mentira
verdade vagabunda
errando de cágado
em torno da lagoa dos olhos da noite
na treva aveludada
de tua pele
os dedos curiosos
são estrelas de marfim
à busca
de um dia caprichoso
despontando de miragem
por detrás das corcundas de elefantes adormecidos


(Arlindo Barbeitos, Angola)



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2.12.05

Gregório de Matos


QUANTA ADMIRAÇÃO QUE LHE CAUSARAM AS MUDANÇAS DO SÍTIO.


Ou o sítio se acabou,
ou o mudaram daqui,
ou eu às cegas o vi,
e a cegueira me cagou:
quando o sítio me logrou,
ou eu o sítio lograva,
o sítio me enfeitiçava,
pelo sítio me morria,
pelas fêmeas, que ali via,
pelas saídas, que achava.

Havia umas fermosuras
mui ledas, e mui louçãs
para qualquer sim mui chãs
para qualquer não mui duras:
hoje há quatro más figuras
mui presumidas, e inchadas,
querem-se muito adoradas,
porém com pretexto errado,
e é que ao fazer do pecado
são fidalgas estiradas.

Outras putinhas malsins
me têm cercado de sorte,
que por ver-me em mãos da morte
não me dão descarga aos rins:
mas como nestes confins
tenho tanta parentela,
dando uma vista a Castela
me deparou logo Amor
na terra uma linda flor,
no céu uma rica estrela.

Fretei-a a pouco trabalho,
e mui pouco me custou,
porque era do ferro, ou
porque era amiga do alho:
veio buscar-me sem falho,
inda durava o luar,
não veio para ficar,
mas eu contudo finquei-o:
com que se a ficar não veio,
contudo veio a fincar.

Como tenho já segura
a carne no garavato,
me rio, que o sítio ingrato
tenha, ou não tenha fartura:
porque em sendo conjuntura,
que é lá pela noite alta,
nunca a Mulatinha falta,
e dêem-me outra Parda forra
em que tudo isto concorra,
geme, gosta, atura, e salta.



Gregório de Matos


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29.11.05

Montale




sempre più addentro, sempre più nel cuore




20.11.05




O único problema
do haicai é que você
mal começa e aí



Roger McGough



4.11.05

Guimarães Rosa



Dizem que o Rosa é regionalista... Eu me divirto muito com isso, porque dizem que eu fiz uma paisagem, um crepúsculo mineiro, e não é nada de crepúsculo mineiro, é um crepúsculo que eu vi na Holanda, misturei com umas coisas que eu vi em Hamburgo, com coisas de Minas, misturei tudo aquilo e joguei lá -- e as pessoas dizem que estou fazendo uma cena do interior de Minas, eu estou fazendo é um omelete ecumênico. O Rosa é como uma ostra: projeta o estômago para fora, pega tudo, de todas as fontes possíveis e introjeta de novo no estômago, mastiga tudo aquilo e produz o texto.


Guimarães Rosa, em conversa com Haroldo de Campos relatada no documentário Os nomes do Rosa, 1996.



3.11.05

Hector Yánover




Poema


Eu quero ser aberto por punhais
e escavado no fundo dos meus ossos.
Quero abrir esta alma que me morde
como se abre uma noz, ver o que encontro.
Quero saber bem claro isto da vida:
que louco insaciável represento,
de que sede, que febre somos feitos.




Hector Yánover







30.10.05

2 poemas de Luiza Neto Jorge



Alguém se me assemelha
e me quer para si



Poema Quase Epitáfio
Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões

- Senhor demónio dos sós
Quando ele morrer
onde o pões?

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As Casas Vieram de Noite


As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas



Luiza Neto Jorge

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28.10.05

Ana Cristina Cesar



Estou jogando na caixa do correio mais uma carta para você que só me escreve alusões, elidindo fatos e fatos. É irritante ao extremo, eu quero saber qual foi o filme, onde foi, com quem foi. É quase indecente essa tarefa de elisão, ainda mais para mim, para mim! É um abandono quase grave, e barato. Você precisava de uma injeção de neorrealismo, na veia.


(Pensando em você não é bem o termo. Você na minha pele, me ocorrendo sem querer, até lembrança de perfume.)



Ana C., em Luvas de pelica, 1980.






26.10.05

Murilo Mendes



Propõe-nos Toledo um encontro de culturas díspares -- a cristã, a judia, a mourisca -- bem como a superposição de camadas do tempo. Mas outros dados poderão excitar o hóspede: também o caráter duro da sua posição natural, as rochas, a presença do Tejo de águas severas; suspenso na altura o casario cor de sangue coagulado, as pontes tão próximas, tão distantes; a mole da catedral e do castelo de San Servando, os restos da arquitetura árabe.

***

Na Idade Média Toledo foi centro de alquimistas, de iniciados em ciências esotéricas, artes mágicas, inclusive na arte do demônio, cultivando-se também a cabala, ritos ocultos. Para isso teria contribuído a influência israelita.

***

Isabel a Católica costumava dizer: "Sólo mi siento necia en Toledo." Aludia em particular à mordacidade do espírito das toledanas, o que é confirmado por Azorin: "estas toledanitas son terribles".

***

Procuro pelas ruas moças e mulheres que se assemelhem a outras, pintadas por El Greco. Através das grades daquele convento de freiras atingem-me ecos dum canto com algo de oriental ou não. Sinos ouvem-se de todas as partes, conforme a cantiga popular colhida por Dámaso Alonso: "campanillas de Toledo,/ óigoos y no vos veo". Descubro uma loja onde me forneço de mazapán, estupendo doce árabe a base de amêndoas. É dia de Corpus Christi: as casas acham-se pavesadas, e as ruas atapetadas de folhagem. Sai a procissão percorrendo o centro; o cardeal primaz levanta no ar a pesada custódia do século XVI, invenção de Juan de Arfe; distinguem-se hábitos escuros ou variopintados de membros de ordens religiosas que eu julgava extintas de há muito. Decora externamente a catedral uma série de tapeçarias antigas: vestiram a pedra para a festa. Os turistas que contavam regressar a Madrid no ônibus da tarde impacientam-se: a corrida só terminará de noite. Festa de Corpus Christi e tourada no mesmo dia, quase na mesma hora: somente na Espanha isto sucede, indicando aspectos contrastantes do seu gênio. Mas eu não volto hoje a Madrid: como de outras vezes dormirei em Toledo; aqui a noite ainda consegue dispor de filtros mágicos; ajuda a funcionar o motor da história toledana, áspera.



Murilo Mendes, em "Espaço Espanhol, 1966-1969".



18.10.05

Christophe Tarkos

poésie impure: "d'une violangue proétique"




Eu atravesso a ponte, a ponte atravessa o Sena, eu atravesso o Sena, caminho ao longo da ponte, eu não paro, quando caminho eu olho o Sena, a água, sigo por uma ponte, caminho sobre a água, a ponte passa sobre a água, a ponte é longa, eu caminho longamente, vou bem junto ao parapeito da ponte, a ponte passa por cima do Sena, olho o Sena, a água, a água cinza, não estou só, o Sena não está só, estou sobre uma ponte, eu caminho olhando para o rio, a água do rio, a água cinza do rio, eu sigo por um dos lados da ponte, a ponte se alonga de uma margem a outra do Sena, eu caminho de cabeça baixa, a ponte deixa o Sena correr, não olho para a correnteza, tenho sob os olhos a água cinza e larga que passa, eu passo, eu caminho, eu sigo meu rumo, sigo a ponte, eu atravesso a ponte, reparando de vez em quando na água cinza do Sena, a ponte larga atravessa toda a largura do Sena, eu apenas caminharei.


Christophe Tarkos




16.10.05

Orides Fontela: Toda palavra é crueldade



Peixe
pescado
descobre o ar:

não volta para
contar.



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14.10.05




A poesia é um jogo em que,
sob uma realidade
aparente, aparece uma
outra de repente.

...............

Depois de escrever o poema,
os limites da página já não estão
onde foi cortado o papel.

...............

Pego a régua,
a caixa de compassos
e começo a riscar
e desenhar.

Passa um pássaro e o poema acaba.

................

São tantas as diferenças que noto
entre o que sinto e o que vejo,
que, se me lembro de tragédias
pessoais, acendo um cigarro
e saio do poema.



Joan Brossa, 4 poemas.


13.10.05

(.) (.)




Dizem que boi preto, em noite preta, entende o cochicho da gente.





Guimarães Rosa







25.9.05



Gosto de bares assim, logo que abrem para a noite. Quando o ar em seu interior ainda está fresco e limpo, tudo brilha e o barman dá uma última olhada em si mesmo no espelho, para ver se a gravata está no lugar e se o cabelo está bem penteado. Gosto das garrafas limpas no fundo do bar e dos belos copos brilhando, dessa expectativa toda. Gosto de ver o barman misturar o primeiro drinque da tarde e colocá-lo no copo com canudo e gelo e um pequeno guardanapo de papel dobrado ao lado. Gosto de apreciar isso tudo bem devagar. O primeiro e tranqüilo drinque da tarde num bar tranqüilo -- é ótimo... Álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo, o terceiro, mera rotina. Depois disso, tira-se a roupa da garota.



Raymond Chandler, em O longo adeus, 1953.


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21.9.05

Dorothy Parker




Uma rosa perfeita


Dele só ganhei até hoje uma flor
E tão terna, com um coração à espreita
Pura, púrpura, tendo do orvalho o odor
Uma rosa perfeita.

Já conheço a linguagem do buquê
"Nestas frágeis folhas, meu coração se estreita"
E imagino perfeitamente em quê:
Numa rosa perfeita.

Por que é que nunca me dão
uma limusine perfeita, acaso você suspeita?
Ah, não, o meu destino é ganhar sempre
Uma rosa perfeita.



Dorothy Parker


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16.9.05




Projecto de Sucessão


Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra.

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponhas as mamas de fora
pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitroglicerina
deixar de fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.



António Maria Lisboa

imagem: Laurent Askienazy


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7.9.05



mas quando tu reapareces
sob o hemisfério estrelado
ó brasil
meu coração feito de pedaços
se unifica
e proclama
a independência das lágrimas




-- versos de Oswald de Andrade



24.8.05

Camus descobre a América


Camus descobre a América


"15 grandes cidades apitando, berrando, trabalhando, divertindo-se com uma espécie de desespero mecânico."

"os americanos são cordiais, hospitaleiros e indiferentes, que se satisfazem depressa, e esquecem depressa."

"o segredo de qualquer conversa aqui é falar para não dizer nada: Good morning, Good morning. Do you like America, Mr. Camus?, Ok, I like it very much. Nice country, is it not?, It is. Will you come back again?, Sure. Etc. etc. "

"durante dias passeei por Nova York com os olhos cheios de lágrimas... simplesmente porque o ar da cidade é cheio de ciscos... É desse modo, enfim, que carrego Nova York em mim, como quem leva no olho um corpo estranho, insuportável e delicioso, com lágrimas de enternecimento e fúrias de rejeição a tudo. Talvez seja isso que chamamos de paixão..."

"sim, gosto das manhãs e das noites de Nova York. Gostei de Nova York com aquele amor possante que às vezes nos deixa cheios de incertezas e de ódio, precisando de um exílio."

"minha curiosidade por este país cessou de repente. Como acontece com alguns seres dos quais me afasto sem explicação e sem mais interesse. E certamente enxergo as mil razões que podemos ter para nos interessar por ele, seria capaz de apresentar sua defesa e apologia, posso descrever sua beleza e seu futuro, mas simplesmente meu coração parou de falar."


-- passagens extraídas de sua correspondência particular e de seu diário, por ocasião de sua viagem aos EUA em 1946 para uma série de palestras e o lançamento da edição americana de O estrangeiro. Em terras americanas, Camoose, como era chamado lá, observou com interesse o abuso do uísque entre intelectuais, o luxo e o mau gosto até nas gravatas, o hábito de sucos de frutas pela manhã, de sorvetes deliciosos, das doses de vitaminas, de ovos com bacon, as drásticas variações de temperatura, a Broadway e seus teatros, as luzes de néon, Chinatown, o Bronx, o Harlem, o Brooklyn, o jazz, as boates, os cafés-concertos burlescos e os estranhos costumes funerários dos americanos. Na volta a Paris, após 12 dias de navio, Camus traz na bagagem 80 quilos distribuídos por caixas de açúcar, café, ovos em pó, alimentos para bebês, comidas em conserva, sabonetes e sabão em pó. (in Albert Camus, Une Vie, Olivier Todd, 1996.)


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16.8.05

Gertrude Stein



I like the feeling the everlasting feeling of

sentences as they diagram themselves



As long as the outside does not put a value on you it remains outside but when it does put a value on you then it gets inside or rather if the outside puts a value on you then all your inside gets to be outside.





14.8.05

Cruz e Sousa



Elizirna! Elizirna!

Como faz a gente pensar nos mundos de além, emigrar, boemizar, para a gare azul dos sonhos estrelados de auroras, o teu perfil correto, linha direita de imperatriz da Rússia.

Como essa cintura, mais delicada e galante do que a pétala branca, de leite, da deliciosa magnólia, quando a gente te vê elegantemente espartilhada, jubilosa, parecendo uma alegria do céu, tantaliza e arrebata os bravios leões do desejo.

Elizirna! Elizirna!

E a tua epiderme, macia, jambosa, com a penugem veludínea do pêssego, molar com a suavidade doce do creme, e o frescor perfumoso da malva-maçã; de um róseo queimado, a tua epiderme, flor azul dos luares brancos, impressiona o nervosismo, dá irritabilidades espasmódicas.

E a música do teu laringe, o gargantear cantarolante do cristal, semelhante ao tinido miúdo, claro, sonoro de uma campainha elétrica, vibrada num palácio de vidro, como prostra a alma num êxtase, num êxtase...

Elizirna! Elizirna!

E a curva do teu colo, a abençoada curva do teu colo!

Quantos ideais meus, quantas cismas encharcadas no licor saborosíssimo da ventura que palpita, que ferve, que escalda e esbraseia, não foram flutuar, boiar no maciosíssimo topázio rico do teu colo moreno, como um batalhão triunfal de pássaros vermelhos, nos fluidos da enorme concha de alabastro do firmamento.

Elizirna! Elizirna!...

Pomba doce dos países de ouro.

E a tua boca, cor de pitanga madura, levemente roxa, esse escrínio rútilo dos meus beijos, esse fruto ruborizado, polposo, sempre aromático, infiltrado do sândalo agradável da mocidade, do gosto saudável da beleza pura, castíssima, frescurizada, vegetabilizante, como é consoladora e boa.

Elizirna! Elizirna!

E a tempestade negra dos teus cabelos, cortada pelos fuzis dos meus olhares, por onde o vento absurdo, desabrido, das minhas desgraças, faz ziguezagues e esfuziotes continuados; o mar profundo e vão dessas tranças, por onde o meu destino naufraga desoladoramente, como eu acho terrivelmente deslumbrante, esmagadoramente belo...

Elizirna! Elizirna!...

E os teus olhos, filha, abundantes de cousas celestiais, fartos das bênçãos do gozo, inundados dos equatorianos rosicleres primaverinos, cheios dos pizzicatos, dos acceleratos das paixões, como iluminam e cantam...

Elizirna! Elizirna!...

Parecem dois sóis esplendorosíssimos, os teus olhos, cada qual com um sabiá dentro, abrindo, cristalinizadoramente, em trilhos gorjeadores, a bravuresca garganta lírica...




Cruz e Sousa

3.8.05




Diálogo entre os escritores José Lins do Rego e Graciliano Ramos nos tempos do getulismo:


-- Mestre Graça, se a situação continuar deste jeito, vamos comer merda!

-- Se sobrar pra nós, Zé Lins. Se sobrar...



20.7.05

Luiza Neto Jorge





A cabeça em ambulância

Há feridas cíclicas há violentos vôos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã

ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos

ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta

quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura, de infância

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Venho de dentro, abriu-se a porta...

Venho de dentro, abriu-se a porta:
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.

Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo
de só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra

Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvolução do corpo.




17.6.05

Fazer poético: lição de João Cabral


como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar o poema.


João Cabral de Melo Neto, no poema "Alguns Toureiros", 1954-55.


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12.6.05

Mario Benedetti



Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque viestes a recolher tua imagem
e és melhor do que todas tuas imagens
porque és linda desde o pé até a alma
porque és boa desde a alma a mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça

porque és minha
porque não és minha
porque te vejo e morro
e pior que morro
se não te vejo amor
se não te vejo

porque tu sempre existes onde quer que seja
porém existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que amar-te amor
tenho que amar-te
ainda que esta ferida doa como dois
ainda que te busque e não te encontre
e ainda que
a noite passe e eu te tenha
e não.




11.6.05

Conde de Lautréamont




Para construir mecanicamente o miolo de uma história de adormecer, não basta dissecar asneiras e embrutecer poderosamente em doses repetidas a inteligência do leitor, de maneira a tornar paralíticas as suas faculdades para o resto da vida, pela infalível lei do cansaço; é preciso, além disso, com um bom fluido magnético, pô-lo engenhosamente na impossibilidade sonâmbula de se mexer, forçando-o a escurecer os olhos, contra o que lhe é natural, pela fixidez dos nossos. Quero eu dizer, para não me fazer compreender melhor mas apenas para desenvolver o meu pensamento, que ao mesmo tempo interessa e irrita por uma harmonia das mais penetrantes, que não acredito que seja necessário, para atingir o fim que nos propomos, inventar uma poesia inteiramente fora do caminho habitual da natureza, e cujo sopro nocivo pareça transtornar até as verdades absolutas; mas conseguir tal resultado (aliás conforme às regras da estética, se pensarmos bem) não é tão fácil como se pensa: era o que eu queria dizer. É por isso que envidarei todos os meus esforços para o conseguir! Se a morte detiver a magreza fantástica dos dois braços compridos dos meus ombros, utilizados no lúgubre esfarelamento do meu gesso literário, quero pelo menos que o leitor de luto possa dizer consigo mesmo: "Há que lhe fazer justiça. Cretinizou-me muito. Que não teria ele feito se tivesse podido viver mais! É o melhor professor de hipnotismo que conheço!"



Conde de Lautréamont, em Cantos de Maldoror, 1869.



6.6.05

Duas canções do tempo do beco


Primeira canção do beco


Teu corpo dúbio, irresoluto
De intersexual disputadíssima,
Teu corpo, magro não, enxuto,
Lavado, esfregado, batido,
Destilado, asséptico, insípido
E perfeitamente inodoro
É o flagelo de minha vida,
Ó esquizóide! ó leptossômica!

Por ele sofro há bem dez anos
(Anos que mais parecem séculos)
Tamanhas atribulações,
Que às vezes viro lobisomem,
E estraçalhado de desejos
Divago como os cães danados
A horas mortas, por becos sórdidos!

Põe paradeiro a este tormento!
Liberta-me do atroz recalque!
Vem ao meu quarto desolado
Por estas sombras de convento,
E propicia aos meus sentidos
Atônitos, horrorizados
A folha-morta, o parafuso,
O trauma, o estupor, o decúbito!



Segunda canção do beco


Teu corpo moreno
É da cor da praia.
Deve ter o cheiro
Da areia da praia.

Deve ter o cheiro
Que tem ao mormaço
A areia da praia.

Teu corpo moreno
Deve ter o gosto
De fruta de praia.
Deve ter o travo,
Deve ter a cica
Dos cajus da praia.

Não sei, não sei, mas
Uma coisa me diz
Que o teu corpo magro
Nunca foi feliz.



Manuel Bandeira


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29.5.05

A poesia de Glauber Rocha




Não é mais possível esta festa de medalhas,
este feliz aparato de glórias,
esta esperança dourada nos planaltos!
Não é mais possível esta festa de bandeiras
com Guerra e Cristo na mesma posição!

Não é possível a impotência da fé
a ingenuidade da fé...

Vejo campos de agonia,
Velejo mares do Não...
Na ponta da minha espada
Trago os restos da paixão
Que herdei daquelas guerras.
Umas de mais, outras de menos,
Testemunhas silenciosas
Do sangue que nos sustenta.
Convivemos com a morte.
Dentro de nós a morte se converte
Em tempo diário, em derrota
Do quanto empregamos,
Ao passo que vamos, recuamos.

Não anuncio cantos de paz
Nem me interessam as flores do estilo.
Como por dia mil notícias amargas
Que definem o mundo em que vivo.
Não me causam os crepúsculos
A mesma dor da adolescência.
Devolvo à paisagem
Os vômitos da experiência...

Quando a beleza é superada pela realidade,
Quando perdemos nossa pureza nestes jardins de males tropicais,
Quando no meio de tantos anêmicos respiramos
O mesmo bafo de vermes em tantos poros animais,
Ou quando fugimos das ruas e dentro da nossa casa
A miséria nos acompanha em suas coisas mais fatais
Como a comida, o livro, o disco, a roupa, o prato, a pele,
O fígado de raiva arrebentando, a garganta em pânico
E um esquecimento de nós inexplicável,
Sentimos finalmente que a morte aqui converge
Mesmo como forma de vida, agressiva.

Qual o sentido da coerência?
Dizem que é prudente observar a História sem sofrer.
Até que um dia, pela coincidência,
As massas tomem o poder...
Ando nas ruas e vejo o povo fraco, abatido,
Este povo não pode acreditar em nenhum partido.
Este povo cuja tristeza apodreceu o sangue
Precisa da morte mais do que se pode supor.
O sangue que em seu irmão estimula a dor,
O sentimento do nada que faz nascer o amor,
A morte enquanto fé e não como temor.

#

Estou morrendo agora, nesta hora.
Estou morrendo neste tempo.
Estou correndo meu sangue e minhas lágrimas.
Ah, Sara! Todos vão dizer que sempre fui um louco,
um anarquista, que sempre...
Ah, não sei, Sara...
Até quando suportaremos?
Até quando além da fé e da esperança suportaremos?
Até quando além da paciência e do amor suportaremos?
Até quando além da inconsciência?
Até quando? Até quando, Sara?
Sara, foi tudo por amor a você...


-- poemas esparsos do personagem Paulo Martins do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, 1967.


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21.5.05

Wislawa Szymborska



Posso ter sido eu mesma, mas sem que me surpreendesse,
o que havia significado
ser alguém completamente diferente.







20.5.05

Adélia Prado



Cinzas


No dia do meu casamento eu fiquei muito aflita,
Tomamos cerveja quente com empadas de capa grossa.
Tive filhos com dores.
Ontem, imprecisamente às nove e meia da noite,
eu tirava da bolsa um quilo de feijão.
Não luto mais daquele modo histérico,
entendi que tudo é pó que sobre tudo pousa e recobre
e a seu modo pacifica.
As laranjas freudianamente me remetem a uma fatia de sonho.
Meu apetite se aguça, estralo as juntas de boa impaciência.
Quem somos nós entre o laxante e o sonífero?
Haverá sempre uma nesga de poeira sob as camas,
um copo mal lavado. Mas que importa?
Que importam as cinzas,
se há convertidos em sua matéria ingrata,
até olhos que sobre mim estremeceram de amor?
Este vale é de lágrimas.
Se disser de outra forma, mentirei.
Hoje parece maio, um dia esplêndido,
os que vamos morrer iremos aos mercados.
O que há neste exílio que nos move?
Digam-no os legumes sobraçados
e esta elegia.
O que escrevi, escrevi
porque estava alegre.


Adélia Prado


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18.5.05

Oração a Oxum



Ora iê iê ô Oxum,
Salve dourada senhora
Da pele de ouro!
Benditas são suas águas,
e essas mesmas águas lavam meu ser
e me livram do mal.

Oxum, Divina Rainha, bela orixá,
venha a mim, caminhando na Lua Cheia.
Traga, mãe, em suas mãos,
os lírios do amor e da paz.
Dai-me o néctar da sua doçura.

Mãe do ouro, da beleza e do amor,
Senhora do mais puro Axé,
valei-me hoje e sempre.
Aiê iê ô Oxum!


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3.5.05

Günter Grass

Pontualidade


No andar debaixo
uma jovem mulher
bate no filho
a cada meia hora.
Por isso vendi
o meu relógio
e só me oriento
pela mão severa
do andar debaixo,
os cigarros contados
ao alcance de minha mão.
Tenho o tempo bem medido.


Günter Grass, trad. MP.

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2.5.05



O que há em mim é sobretudo cansaço --
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.
Essas coisas todas --
Essas e o que falta nelas eternamente --;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada --
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...


Álvaro de Campos, 1934.

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27.4.05

José Craveirinha





Aforismo


Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

(1968)




Fábula


Menino gordo comprou um balão
e assoprou
assoprou com força o balão amarelo.

Menino gordo assoprou
assoprou
assoprou
o balão inchou
inchou
e rebentou!

Meninos magros apanharam os restos
e fizeram balõezinhos.



José Craveirinha, considerado o maior poeta da língua portuguesa na África e um dos maiores escritores africanos.

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18.4.05

Argonautas



"Se uma alma
Quer se conhecer
É numa alma que ela deve se olhar":
Foi no espelho que
Vimos o inimigo e o estrangeiro.
Eram rapazes valentes, companheiros, não se queixavam
Nem da sede nem da fadiga nem do frio,
Faziam como as árvores e as ondas
Que aceitam o vento e a chuva,
Aceitam o sol e a noite,
E em meio à mudança, permanecem sem mudar.
Eram rapazes valentes. Dia após dia,
Suando nos remos, os olhos baixos,
Respirando em cadência,
O sangue colorindo-lhes a carne dócil.
Um dia cantaram, de olhos baixos,
Enquanto passávamos pela ilhota deserta das figueiras da
Barbárie
Rumo ao poente, depois do cabo dos cães que ladram.
Se ela quer se conhecer, diziam eles,
É numa alma que deve se olhar,
E os remos braceavam o ouro do mar em meio ao crepúsculo.
Dobramos muito cabos, muitas ilhas, o mar
Que dá em outro mar, gaivotas e focas.
Mulheres lacrimosas lamentavam-se às vezes
E choravam os filhos perdidos,
Outras, em furor, reclamavam Alexandre
E suas glórias submersas nas profundezas da Ásia.
Abordamos plagas cheias de aromas noturnos,
Cantos de aves, fontes que deixavam nas mãos
A lembrança de grande felicidade.
Mas não tinham mais fim aquelas viagens.
A alma dos companheiros confundiu-se com os remos e com
as cavilhas,
Com a austera figura de proa,
A esteira do leme,
A água dispersando seus rostos.
Um após outro, os companheiros morreram,
De olhos baixos. Seus remos
Indicam na praia o lugar onde repousam.

Ninguém se lembra. Justiça.


Georgios Seféris, em "Argonautas", anos 30.


11.4.05

Serguei Iessiênin




Dois poemas

A confissão de um vagabundo

Nem todos sabem cantar,
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.

Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.

Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então, limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.

Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro,
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim.
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.

Pobres, pobres camponeses,
Por certo estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.

Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de noiva.

Amo a terra.
Amo demais minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos dos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?

E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E o mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.

Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.

Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo...
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.

Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Pégaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos.
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.

Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.

(1920)


Iessiênin nasceu em 1895 e foi um dos maiores poetas russos. Aos 30 anos suicidou-se num quarto de hotel em Leningrado cortando os pulsos e se enforcando. Alcoólatra, casou cinco vezes e três de suas esposas foram a atriz Zinaida Raich, a dançarina americana Isadora Duncan e a neta de Tolstoi. Contudo, o que é pouco mencionado foram seus relacionamentos clandestinos com homens. Antes de suicidar-se escreveu com sangue um poema de despedida dedicado ao poeta Anatoli Marienhof, com quem vivia há quatro anos:



Até logo, até logo, meu companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.


 (tradução Augusto de Campos)




30.3.05

Antroponímia - nomes de brasileiros já registrados em cartório



Abrilina Décima Nona Caçapavana Piratininga de Almeida
Alce Barbuda
Barrigudinha Seleida
Cafiaspirina Cruz
Chevrolet da Silva Ford
Cólica de Jesus
Colapso Cardíaco da Silva
Comigo é Nove na Garrucha Trouxada
Dezêncio Feverêncio de Oitenta e Cinco
Éter Sulfúrico Amazonino Rios
Foca Bilota
Gerunda Gerundina Pif Paf
Graciosa Rodela D'Alho
Hepotamedes Maria Good Good
Himeneu Casamentício das Dores Conjugais
Ilegível Inelegível
Inocêncio Coitadinho Sossegado
Janeiro Fevereiro de Março Abril
Joaquim Casou de Calças Curtas
José Marciano Verdinho das Antenas Longas
Jotacá Dois Mil e Um
Kussen Pestana
Letsgo
Magnésia Bisurada do Patrocínio
Maria da Segunda Distração
Maria Panela
Maria Passa Cantando
Maria Tributina Prostituta Cataerva
Naída Navinda Navolta Pereira
Ocricocrides de Albuquerque
Pália Pélia Pília Púlia dos Guimarães Peixoto
Pedrinha Bonitinha da Silva
Placenta Maricórnia da Letra Pi
Restos Mortais de Catarina
Sete Rolos de Arame Farpado
Soraiadite das Duas a Primeira
Última Delícia do Casal Carvalho
Voltaire Rebelado de França



19.3.05

Anna Akhmatova



Poeta


Que grande mistério este trabalho,
esta vida de nenhuma agrura:
espiar qualquer coisa da música
e fazê-la passar por coisa sua.

E intrometer por entre as linhas
um scherzo de outrem bem alegre,
jurando que na luz das pradarias
é teu pobre coração que geme.

Roubar qualquer coisa aos pinheiros
da negra floresta taciturna,
enquanto ergue os seus nevoeiros
a toda a volta a cortina de bruma.

E ir procurar - impudica -,
por onde calha e me aventuro,
alguns pedaços da vida oblíqua
e, ao silêncio da noite, tudo.



Anna Akhmatova, 1959.

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10.3.05

Waly Salomão

A memória é uma ilha de edição -- um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo
não ser levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades
esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?



A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos,
divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?

Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido o que traz
a marca d'água d'hoje.


Fragmento de "Carta Aberta a John Ashbery", 1995.

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26.2.05

A morte da crítica literária

Houve um tempo em que a tuberculose era como que a mais horrenda das pestes. Em cada rua da cidade tínhamos dois, três tuberculosos. Agora, o brasileiro não tosse. [...] Mas antigamente como se tossia, como se expectorava. No cinema era espantoso. Bastava apagar a luz. E toda a platéia começava a tossir. Era um coro absurdo de bronquites, asmas e até coqueluches. Outros se assoavam com pavoroso ronco. E o repertório de pigarros era variadíssimo.

Não sei como até agora os especialistas não se lembraram de incluir na história literária a época pulmonar. Época em que, para um poeta, era humilhante não morrer tuberculoso, aos 21 anos. Lembro-me daquele parnasiano que se apaixonou, e note-se: -- a bem-amada era casada, mãe de não sei quantos filhos. Todos os dias o poeta mandava um soneto, que a destinatária devolvia, não sei se depois de ler ou sem ler. Uma tarde, os dois se encontraram. Foi sublime. Com palpitações, falta de ar, disse a santa senhora: "Eu não traio." Tempos depois, o poeta teve uma hemoptise e encheu meio balde de sangue vivo. A heroína soube e correu para o moribundo. Sua virtude resistira a 365 sonetos. Mas não resistiu à hemoptise.


Nelson Rodrigues, em "A morte da crítica literária".

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25.2.05

Cruz e Sousa



Braços nervosos, brancas opulências,
Brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.

As fascinantes, mórbidas dormências
Dos teus abraços de letais flexuras,
Produzem sensações de agres torturas,
Dos desejos as mornas florescências.

Braços nervosos, tentadoras serpes
Que prendem, tetanizam como os herpes,
Dos delírios na trêmula coorte...

Pompa de carnes tépidas e flóreas,
Braços de estranhas correções marmóreas,
Abertos para o Amor e para a Morte.


Cruz e Sousa, 1893.

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18.2.05

Lixo as unhas no escuro, escuto, estou encostada à parede no vão da escada, escuto-me a mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra.

Hilda Hilst

16.2.05

Luís Aranha



.....................................................................................
Eu morria de dieta no hospital
Emprestavam-me livros franceses e ingleses
Um dia uma revista
Conheci então Cendrars
Apollinaire
Spire
Vildrac
Duhamel
Todos os literatos modernos
Mas ainda não compreendia o modernismo
Fazia versos parnasianos
Aos livros que me davam preferia viajar com a imaginação
Paris
Bailarinas de café-concerto rodopiando na ponta dos pés
Ou então a casa de um chinês esquecimento da vida
Antro de vícios elegantes
Morfina e cocaína em champanha
Ópio
Haxixe
Maxixe
Todas as danças modernas
Doente perdi um baile numa sociedade americana de S. Paulo
Minha cabeça girava como depois de muito dançar
E o mundo é uma bailarina de vermelho rodopiando na
ponta dos pés no café-concerto universal
Gosto de bailes de matinês
E os jornais trazem anúncios de chás dançantes
La Prensa diz
"A Argentina proibiu exportação de trigo"
Nova lente no observatório de Buenos Aires
Estudo astronomia numa lente polida por Spinoza
Judeu
Uma sinagoga nos Andes
Não sei se a Cordilheira cai a pique sobre o mar
Santiago
E os barcos de minha imaginação nos mares de todo mundo...


Luís Aranha, em fragmento do seu "Poema Giratório".

15.2.05

12.2.05

Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem.


Clarice Lispector

11.2.05

Léon-Paul Fargue



Encontrado entre papéis de família


Tanto sonhei, tanto sonhei que não sou mais
Daqui.
Não me façam perguntas, não me atormentem
Não me acompanhem no meu calvário.

Não me é dado explicar-me as ordens.
Nem mesmo o direito de pensar nelas,
É mais que tempo de levantar-me e ir embora.

Ele consegue uma licença da morte e vem chegando.
Na curva da rua que leva à noite, espero por ele.
O mar já vai voltar a seus últimos terraços.
Uma primeira luz tem sede em meio às trevas.

Um passo na calçada. Sua sombra o precede
Deita-se sobre mim, a cabeça em meu peito.
Ele está aí.

Sempre de chapéu redondo, sempre de pasta na mão,

Tal como era, no dia em que voltou da Itália.
Rolo em sua direção como uma pedra obscura.
Não consigo transpor a sua sombra.

Estão passando bem de saúde? Que fizeram desde então?
Por que não subiram?
Todos os dias eu ia ver e vocês nada de chegar!

Não diz nada disso.
Mas tudo nele diz: Recorda-te.

A noite sobre ele se fechou.


Léon-Paul Fargue

9.2.05

Carta da Mia





Olá. Meu nome, querida, é Bulimia. Mas para nos tornarmos mais íntimas, pode me chamar de "Mia". Eu serei sua amiga de emergência, aquela que nas horas em que o cinto apertar você poderá contar comigo. Quase sempre acompanhada de nossa querida amiga Anna, e assim nós seremos poderosas, nós moderamos você ao nosso gosto, e assim vai conhecer o caminho da perfeição. Às vezes ficarei com ciúme da atenção que você dará à Anna, mas sei que quando a trai é a mim que você recorrerá, após suas terríveis compulsões. Quando comer mais que uma baleia, e sentir-se enorme, sou eu que lhe ajudarei curvando seu corpo à pia, ou ao vaso sanitário, fazendo com muita força; forçando sua garganta para que toda aquela comida nojenta saia descarga abaixo, e assim você se sentirá limpinha, renovada e com um belo estômago de pena. Porque você não pode pôr tudo a perder... Porque Anna e eu controlamos sua mente para que chegues à perfeição. Isso, garota, curve-se perante mim e use seus dedos, sua escova de dente ou até mesmo um pedaço de pau, deixe tudo sair até a última gota, quero sangue saindo de sua garganta e estômago. Não chore, é assim mesmo o caminho da perfeição. É doloroso. Agora levante-se sente-se um pouco, relaxe. Veja como você se sente bem melhor, não é mesmo? Está tudo limpo em você, agora sim, boa garota... Sabia que ia compreender o que se passa. Você está indo no caminho certo. Ainda falta muito e por isso trate de se empenhar... Estou aqui para o que der e vier, qualquer coisa é só me chamar.
Abraços
Mia

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Anna
A woman can never be too rich or too thin.
When you look in the mirror
Who returns your reflection,
Is it a girl who can count her ribs,
See her pelvic bones,
Do you see yourself as beautiful?
I hope you do,
Then you are at peace with your body.
If you see otherwise,
Perhaps you need reassuring
That your tiny frame
Is a thing of rare beauty.
Some men search for the " perfect woman"
Others to wallow in abundant flesh,
This man, gentle, loving, safe,
Tainted with dark sensuality
Was born to glory in
The caress of your skeletal frame.


-- Estes textos foram retirados de sites pró-anorexia cujas autoras, sempre usando pseudônimos, participam do "movimento pró-anna" [Anna= anorexia, ou anoréxica] ou "pró-mia" [Mia= bulimia]. O poema em inglês foi feito por um rapaz, não identificado, apaixonado por uma das "Annas". Por motivos óbvios não forneci os links. O Prosa Caótica não faz a apologia da anorexia, embora não veja com bons olhos a censura exercida sobre esses sites e sobre qualquer forma de expressão. Nossa intenção, como sempre, é apenas registrar o que se escreve pela rede.



26.1.05



La dernière translation


Quando morre um velho tradutor
Sua alma, anima, soul,
Já livre do cansativo ofício de verter
Vai direta pro céu, in cielo, to the heaven,
au ciel, in caelum, zum himmel,
Ou pro inferno, Holle, dos grandes traditori?
Ou um tradutor será considerado
In the minute hierarquia do divino (himm'lisch)
Nem peixe nem água, ni poisson ni l'eau,
Neither water nor fish, nichts, assolutamente niente?
Que irá descobrir de essencial
Esse mero intermediário da semântica
Corretor da Babel universal?
A comunicação definitiva, sem palavras?
Outra vez o verbo inicial?
Saberá, enfim!, se Ele fala hebraico
Ou latim?
Ou ficará infinitamente no infinito
Até ouvir a Voz, Voix, Voce, Voice, Stimme, Vox,
Do Supremo Mistério partindo do Além
Voando como um pássarobirduccelopájarovogel
Se dirigindo a ele em...
E lhe dando, afinal,
A tradução para o Amén?


Millôr Fernandes

19.1.05

Albert Camus - A Morte Feliz




No trem que o conduzia ao norte, Mersault conservava o olhar posto nas mãos. O céu anunciava tempestade e o correr do trem arrastava um rebanho de nuvens pardas, baixas, pesadas. Mersault ia sozinho no vagão. O aquecimento era demasiado. Tinha partido apressadamente, no meio da noite, e agora que se encontrava sozinho naquele amanhecer sombrio, recebia toda a suavidade daquela paisagem da Boêmia, onde a iminência da chuva sobre os grandes plátanos sedosos e as chaminés distantes das fábricas provocavam uma indizível tristeza. Olhou para a placa branca onde se lia: Nicht hinauslehenen, E pericoloso sporgersi, Il est dangereux de se pencher au-dehors. E voltou a olhar para as mãos, animais vivos e ferozes, sobre os joelhos, que atraíam toda a sua atenção. A mão esquerda era sensivelmente mais comprida e mais fina, a direita, nodosa e cheia de veias. Conhecia-as. Sabia até que ponto elas eram diferentes uma da outra e capazes de agir sem que a sua vontade interviesse. Uma delas veio encostar-se à testa, para tentar estancar as pulsações febris que o invadiam. A outra escorregou ao longo do casaco, para ir buscar um cigarro no bolso, mas repeliu-o instantaneamente, ao sentir de novo aquela vontade de vomitar que o deixava sem forças. Voltando a pousá-las sobre os joelhos, as mãos abandonavam-se-lhe, e as palmas encurvadas ofereciam a Mersault a imagem da sua vida, que regressava à indiferença e se daria à primeira coisa que a solicitasse.(...) Gostava daquelas longas noites durante as quais o trem vibra sobre os trilhos polidos, desaba como um furacão sobre as pequenas estações, onde só o relógio se encontra iluminado, trava de súbito à vista do ninho confuso de luzes e de sinais das grandes gares, para ser engolido pela luz, pelo calor, para ser invadido por um ouro pulverizado em todos os vagões.(...) A sós consigo, na noite interminável, tinha todo o tempo para prever os mínimos gestos da sua vida futura, para lutar com paciência com a ideia que foge ao passar uma nova estação, se deixa novamente perseguir e apanhar, encontra as suas consequências, para se escapar mais uma vez na dança de fios luminosos da chuva e das luzes dos povoados. Mersault procurava a palavra, a frase que pudessem abrir de novo o seu coração à esperança e acabassem com a sua inquietação. No estado de fraqueza em que se encontrava, precisava achar uma fórmula. O dia sucedia à noite naquele combate teimoso com o verbo, com a imagem que daria, dali em diante, uma nova cor ao seu olhar sobre a vida, o sonho enternecido ou melancólico que seria o seu futuro. Fechava os olhos: é preciso tempo para viver. Como todas as obras de arte, a vida exige tempo e reflexão. Mersault pensava na sua vida e passeava a sua consciência inerte e o seu desejo de felicidade por aquele vagão que, através da Europa, constituía uma espécie de cela de meditação onde o homem aprende a conhecer-se através de tudo o que o ultrapassa.


Albert Camus, em A morte feliz, 1938. Romance que só seria publicado postumamente, A morte feliz é uma prefiguração de O estrangeiro, que começaria a ser escrito por volta de 1939. Segundo André Gide, A morte feliz foi a crisálida onde se formou a larva de O estrangeiro.


18.1.05



Há dois tipos de poetas modernos: aqueles, sutis e profundos, que adivinham a essência das coisas e escrevem: "Luzeiro, luz zero, luz Eros, a garganta da luz pare cores coleiras" etcétera, e aqueles que tropeçam em uma pedra e dizem "pedra filha da puta". Os primeiros são os mais afortunados. Sempre encontram um crítico inteligente que escreve um tratado "Sobre as relações ocultas entre o objeto e a palavra e as possibilidades existenciais da metáfora não formulada". Deles é o Olimpo que nestes dias se chama simplesmente o Clube da Fama.


Jaime Sabines, 1972.


13.1.05

Joan Brossa




UM HOMEM ESPIRRA

Um homem espirra.
Passa um carro.
Um comerciante baixa a porta de metal.
Passa uma mulher com uma garrafa
cheia de água.
Vou dormir.
Isso é tudo.






AQUI HÁ UMA PAREDE

Nela há uma porta.
A porta dá na sala de jantar.
No meio há uma mesa.
Sobre a mesa, um paliteiro.

Aqui tens um guarda-chuva.



12.1.05

Drummond



Noturno à janela do apartamento


Silencioso cubo de treva:
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.

Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.

A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.

Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.

Triste farol da Ilha Rasa.


Carlos Drummond de Andrade



2.1.05



Vou sair.
Divirtam-se fazendo amor,
Moscas da minha cabana.


Kobayashi Issa


1.1.05

O dicionário da corte




Jorge Amado: Ganhou o Jabuti de melhor romance. Há muitos anos, como um camelo, rumina e cospe a mesma mistura de sacanagem e violência, sem ao menos o vigor ideológico, o talento primitivo e forte, de um Capitães de areia.

Simone de Beauvoir: A falta de humor de Simone era total. Seu livro mais célebre é O segundo sexo, de 1949. Pela primeira vez vi uma mulher que não era acessório, mãe, tia, irmã, complemento do homem ou objeto de desejo sexual. Mas há o mito Simone de Beauvoir. Na verdade, a mulher foi escrava branca de Sartre. Literalmente. Talentosa, talvez tenha escrito, ou ao menos completado, boa parte dos livros de Sartre. Ele passava a ela os manuscritos inacabados para que ela finalizasse. Há a suspeita de que tenha sido ela quem escreveu a obra-prima literário-existencial de Sartre, A náusea, sobre notas dele.

Jorge Luis Borges: É um imitador muito do mixuruca de Kafka. É uma esfinge sem segredos. Encarna tudo que o acadêmico típico acha supimpa: é arcano, irônico, reticente e ambivalente.

Paul Bowles: Obra pequena. Dois romances e um livro de contos. Os romances, pfui. Os contos é que são quentes. Estão reunidos num livro chamado Pages from Cold Point.

Charlotte Brontë: Na literatura inglesa, tem importância comparável à de Balzac no realismo com que trata as diferenças entre as classes sociais. Seu romance Jane Eyre é profundamente subversivo.

Albert Camus: É de um palavrório estático, solene, pomposo, típico do provinciano que aprendeu as cadências majestosas dos clássicos franceses. Tinha grandes idéias. Não era um grande escritor. Seu melhor romance é A queda, porque parodístico, cheio de humor amargo, e humor é mais ameno ao intelecto do que drama, que exige a recriação de sentimentos.

Raymond Chandler: Philip Marlowe, o detetive de Chandler, é o herói existencial do nosso tempo. Os franceses, de Gide a Sartre e Camus, tinham orgasmos com thrillers americanos precisamente por esse motivo, porque esses intelectuais falavam muito de "heróis existenciais", mas não criaram um único memorável, em ficção ou teatro, coisa que autores como Chandler, fracos em teoria literária e filosofia, faziam com a felicidade aparente de quem jorra num mictório.

Eldridge Cleaver: O melhor escritor negro americano, autor de Soul on Ice, livro que tirava faísca.

Joseph Conrad: O problema de Conrad não é o que escreve. O que escreve é paradigmático e profético, de Coração das trevas a Nostromo. Mas me parece traduzido literalmente do polonês.

Euclides da Cunha: É indispensável a leitura de Os sertões. Euclides é o anti-Machado. A prosa nobre na nossa literatura é em geral ilegível e chatíssima, mas Euclides percebeu a tragédia de Canudos e tem a estatura de um Gibbon e a paixão de um Tolstoi. É majestoso e passional ao mesmo tempo.

Emily Dickinson: A maior poeta mulher de todos os tempos.

Dostoievski: A racionalização que Raskolnikof [personagem de Crime e castigo] faz para matar a velha é o texto mais subversivo que já li. É muito mais do que a justificativa de um crime. É a subversão de toda moralidade e convenções que aprendi dos meus antepassados. Todas as "idéias recebidas", que são transmitidas, com alterações, de geração a geração, ruíram por terra. Se depois de ler o que Ivan [personagem de Os irmãos Karamazov] tem a dizer sobre Deus, você mantiver sua fé na benevolência e delineamento da nossa vida por forças sobrenaturais, parabéns, pode se considerar um Kierkegaard.

Marguerite Duras: Ela projeta sentimentos do mais profundo masoquismo feminino, mas com tal veemência que parecem afirmações de independência feminista. Uma boa maneira de enganar as otárias.

T. S. Eliot: Seu coloquialismo, em 1922, ano de publicação de A terra devastada, revolucionou a poesia moderna. Nem Laforgue nem Pound conseguiram essa consistência e expressividade. Não é a erudição, as paráfrases, as citações, a metrificação inovadora, o uso extensivo do coloquial misturado com o obscuro, que nos "pegam" em Eliot. É a musicalidade. Quando li A terra devastada, senti que aquele poeta estava falando comigo, só para mim. Tal qual Shakespeare.

Millôr Fernandes: É como café poussé, não é para todos os gostos. É picante, amargo, requer cabeça para entendê-lo. Se não escrevesse numa língua de periferia, seria considerado um dos melhores humoristas do mundo.

James Joyce: Acho Joyce muito chato. Mas é um grande escritor. Que não recomendo a não ser a quem goste muito de literatura. A beleza de sua linguagem. Joyce é para iniciados. Foi um suplício até eu entender Ulisses. Aí, confesso, valeu, mas detesto as paródias, coisa de pedante.

Franz Kafka: Acho Kafka mais difícil de ler do que Joyce. Com uma linguagem "careta", revolucionou a literatura tanto quanto Joyce. É um mestre da ambivalência.

John Keats: Depois de Shakespeare, nenhum poeta nos deu tanto sobre amor lírico e trágico quanto Keats.

Murilo Mendes: É um de nossos poetas mais inventivos, mas não caiu no abstracionismo e ilegibilidade de alguns hipermodernos. Sua destreza verbal é encantadora.

Clarice Lispector: Seus romances têm lampejos de criatividade, mas não nos mostram um mundo, e sim uma impressão vivida de circunstâncias, temperamentos, com uma preocupação excessiva com a origem e o sentido das palavras e com ontologia.

Sylvia Plath: Apesar da influência de Eliot, inevitável a alguém que aflorou nos anos 60, é inequivocamente uma voz maior, e seu livro Ariel pertence à cabeceira de quem ame poesia. Plath, com Marianne Moore, é a única grande poeta do século 20. Sylvia é a paixão de toda moça desajustada e infeliz que gosta de ler poesia. Harold Bloom diz que ela versifica mal. Fato. Mas tem imagens de gênio em Ariel, seu último livro, de que escreveu um poema por dia. Quando terminou, pôs a cabeça no forno.

Ezra Pound: Está sempre querendo chocar. Sua erudição era fajuta, num certo sentido, o de ir a fundo no que estudava, não ia, mas sabia muito no varejo, ainda que às vezes -- quase sempre -- com atraso. Pode-se pescar pérolas em sua poesia obstinada, mas é difícil amá-la. Não há afeição, amor, em Pound. É um ingrediente poético indispensável.

Virginia Woolf: Sua literatura parece diáfana, inconsistente e anêmica, de um bom gosto excessivo, que sai do terreno literário para o chique.

Paulo Francis por Paulo Francis: Eu sou o que se chama de um radical órfão. Não acredito em nada, nem em socialismo nem em capitalismo. Procuro ser um bom jornalista, cumprir meu dever, ganhar a vida. É um triste destino para quem achava que podia fazer tanto pelo seu país.

-- Fragmentos de Waaal, o dicionário da corte de Paulo Francis, 1996.