Propõe-nos Toledo um encontro de culturas díspares -- a cristã, a judia, a mourisca -- bem como a superposição de camadas do tempo. Mas outros dados poderão excitar o hóspede: também o caráter duro da sua posição natural, as rochas, a presença do Tejo de águas severas; suspenso na altura o casario cor de sangue coagulado, as pontes tão próximas, tão distantes; a mole da catedral e do castelo de San Servando, os restos da arquitetura árabe.
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Na Idade Média Toledo foi centro de alquimistas, de iniciados em ciências esotéricas, artes mágicas, inclusive na arte do demônio, cultivando-se também a cabala, ritos ocultos. Para isso teria contribuído a influência israelita.
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Isabel a Católica costumava dizer: "Sólo mi siento necia en Toledo." Aludia em particular à mordacidade do espírito das toledanas, o que é confirmado por Azorin: "estas toledanitas son terribles".
Procuro pelas ruas moças e mulheres que se assemelhem a outras, pintadas por El Greco. Através das grades daquele convento de freiras atingem-me ecos dum canto com algo de oriental ou não. Sinos ouvem-se de todas as partes, conforme a cantiga popular colhida por Dámaso Alonso: "campanillas de Toledo,/ óigoos y no vos veo". Descubro uma loja onde me forneço de mazapán, estupendo doce árabe a base de amêndoas. É dia de Corpus Christi: as casas acham-se pavesadas, e as ruas atapetadas de folhagem. Sai a procissão percorrendo o centro; o cardeal primaz levanta no ar a pesada custódia do século XVI, invenção de Juan de Arfe; distinguem-se hábitos escuros ou variopintados de membros de ordens religiosas que eu julgava extintas de há muito. Decora externamente a catedral uma série de tapeçarias antigas: vestiram a pedra para a festa. Os turistas que contavam regressar a Madrid no ônibus da tarde impacientam-se: a corrida só terminará de noite. Festa de Corpus Christi e tourada no mesmo dia, quase na mesma hora: somente na Espanha isto sucede, indicando aspectos contrastantes do seu gênio. Mas eu não volto hoje a Madrid: como de outras vezes dormirei em Toledo; aqui a noite ainda consegue dispor de filtros mágicos; ajuda a funcionar o motor da história toledana, áspera.
Murilo Mendes, em "Espaço Espanhol, 1966-1969".