26.2.05

A morte da crítica literária

Houve um tempo em que a tuberculose era como que a mais horrenda das pestes. Em cada rua da cidade tínhamos dois, três tuberculosos. Agora, o brasileiro não tosse. [...] Mas antigamente como se tossia, como se expectorava. No cinema era espantoso. Bastava apagar a luz. E toda a platéia começava a tossir. Era um coro absurdo de bronquites, asmas e até coqueluches. Outros se assoavam com pavoroso ronco. E o repertório de pigarros era variadíssimo.

Não sei como até agora os especialistas não se lembraram de incluir na história literária a época pulmonar. Época em que, para um poeta, era humilhante não morrer tuberculoso, aos 21 anos. Lembro-me daquele parnasiano que se apaixonou, e note-se: -- a bem-amada era casada, mãe de não sei quantos filhos. Todos os dias o poeta mandava um soneto, que a destinatária devolvia, não sei se depois de ler ou sem ler. Uma tarde, os dois se encontraram. Foi sublime. Com palpitações, falta de ar, disse a santa senhora: "Eu não traio." Tempos depois, o poeta teve uma hemoptise e encheu meio balde de sangue vivo. A heroína soube e correu para o moribundo. Sua virtude resistira a 365 sonetos. Mas não resistiu à hemoptise.


Nelson Rodrigues, em "A morte da crítica literária".

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