No trem que o conduzia ao norte, Mersault conservava o olhar posto nas mãos. O céu anunciava tempestade e o correr do trem arrastava um rebanho de nuvens pardas, baixas, pesadas. Mersault ia sozinho no vagão. O aquecimento era demasiado. Tinha partido apressadamente, no meio da noite, e agora que se encontrava sozinho naquele amanhecer sombrio, recebia toda a suavidade daquela paisagem da Boêmia, onde a iminência da chuva sobre os grandes plátanos sedosos e as chaminés distantes das fábricas provocavam uma indizível tristeza. Olhou para a placa branca onde se lia: Nicht hinauslehenen, E pericoloso sporgersi, Il est dangereux de se pencher au-dehors. E voltou a olhar para as mãos, animais vivos e ferozes, sobre os joelhos, que atraíam toda a sua atenção. A mão esquerda era sensivelmente mais comprida e mais fina, a direita, nodosa e cheia de veias. Conhecia-as. Sabia até que ponto elas eram diferentes uma da outra e capazes de agir sem que a sua vontade interviesse. Uma delas veio encostar-se à testa, para tentar estancar as pulsações febris que o invadiam. A outra escorregou ao longo do casaco, para ir buscar um cigarro no bolso, mas repeliu-o instantaneamente, ao sentir de novo aquela vontade de vomitar que o deixava sem forças. Voltando a pousá-las sobre os joelhos, as mãos abandonavam-se-lhe, e as palmas encurvadas ofereciam a Mersault a imagem da sua vida, que regressava à indiferença e se daria à primeira coisa que a solicitasse.(...) Gostava daquelas longas noites durante as quais o trem vibra sobre os trilhos polidos, desaba como um furacão sobre as pequenas estações, onde só o relógio se encontra iluminado, trava de súbito à vista do ninho confuso de luzes e de sinais das grandes gares, para ser engolido pela luz, pelo calor, para ser invadido por um ouro pulverizado em todos os vagões.(...) A sós consigo, na noite interminável, tinha todo o tempo para prever os mínimos gestos da sua vida futura, para lutar com paciência com a ideia que foge ao passar uma nova estação, se deixa novamente perseguir e apanhar, encontra as suas consequências, para se escapar mais uma vez na dança de fios luminosos da chuva e das luzes dos povoados. Mersault procurava a palavra, a frase que pudessem abrir de novo o seu coração à esperança e acabassem com a sua inquietação. No estado de fraqueza em que se encontrava, precisava achar uma fórmula. O dia sucedia à noite naquele combate teimoso com o verbo, com a imagem que daria, dali em diante, uma nova cor ao seu olhar sobre a vida, o sonho enternecido ou melancólico que seria o seu futuro. Fechava os olhos: é preciso tempo para viver. Como todas as obras de arte, a vida exige tempo e reflexão. Mersault pensava na sua vida e passeava a sua consciência inerte e o seu desejo de felicidade por aquele vagão que, através da Europa, constituía uma espécie de cela de meditação onde o homem aprende a conhecer-se através de tudo o que o ultrapassa.
Albert Camus, em A morte feliz, 1938. Romance que só seria publicado postumamente, A morte feliz é uma prefiguração de O estrangeiro, que começaria a ser escrito por volta de 1939. Segundo André Gide, A morte feliz foi a crisálida onde se formou a larva de O estrangeiro.