28.12.04

A pena é livre mas o papel tem dono.


Samuel Wainer



26.12.04

Alberto Blanco

A porta é estreita/ o caminho é estreito/ a noite é interminável

Alberto Blanco, México



O fim das etiquetas

A mosca se levanta da mesa
e domina os quartos até o teto,
atravessa pontualmente o corredor
que comunica o mar com o espelho.

Penetrante na luz é o seu zumbido
Uma bolha a mais dentro da água...
navegando descobre entre os botes
a borda iluminada da toalha.

O fundo é sujo, o que ela vê, claro:
esta vida que flutua vacilante
com ar de papel, branco de luz,
já não lembra nada das palavras.

(trad. Maira Parula)

--------------

Poema visto no ventilador de um hotel

Faz um calor dos diabos.
Ligo o ventilador
e começam a girar as pás...
Logo se espalha um suave vento
e as cortinas começam a dançar.
O centro do ventilador
é um espelho convexo,
um olho de peixe,
um capacete de ouro.

Ali vibram os reflexos
com o zumbido da máquina,
mas não saem do seu lugar.

Aumento a velocidade e as pás giram
até virar quase invisíveis
-- sobre uma gaze alvacenta --
mas os reflexos no centro
continuam sendo os mesmos.

Assim tem que ser com tudo -- digo para mim --
as superfícies se movem a grande velocidade
mas as formas que refletem não.

Passam os indivíduos de uma espécie,
mas a espécie continua a mesma.

Passam os homens de um povo,
mas o povo permanece.

Passam todos os poetas,
mas fica a poesia.

Passam nossos pensamentos,
mas alguma coisa, ou alguém,
está observando.
Segue observando.


(trad. Rodolfo Mata)
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20.12.04

Machado de Assis





COGNAC


VEM, MEU COGNAC, meu licor d'amores!...
É longo o sono teu dentro do frasco;
Do teu ardor a inspiração brotando
O cérebro incendeia!...

Da vida a insipidez gostoso adoças;
Mais val um trago teu que mil grandezas;
Suave distração - da vida esmalte,
Quem há que te não ame?

Tomado com o café em fresca tarde
Derramas tanto ardor pelas entranhas,
Que o já provecto renascer-lhe sente
Da mocidade o fogo!
Cognac! - inspirador de ledos sonhos,
Excitante licor - de amor ardente!
Uma tua garrafa e o Dom Quixote,
É passatempo amável!

Que poeta que sou com teu auxílio!
Somente um trago teu m'inspira um verso;
O copo cheio o mais sonoro canto;
Todo o frasco um poema!


Machado de Assis, 1856.






18.12.04

O Meu Pipi




Crítica de fodas

A foda que dei ontem devia estar preservada no Museu de História Natural. Será considerada a gambozina das fodas, uma vez que já muitos a quiseram dar, mas nunca antes tinha sido vista. Falo da pinocada que dei em crica virgem de 72 anos. Uma virgem de 72 anos, Pipi?? Pergunta o efeminado leitor, enquanto rapa os pêlos das pernas. É facto, rabichos. Tratava-se de uma anciã que, por espartana educação religiosa (se bem que, evidentemente, longe de padres), acasos da vida e um problema grave de sudação que repelia os mais temerários, mantinha intacta a cabaça com que Deus -- por chiste, não duvido -- marca todas as mulheres. Aliás, minto. A cabaça não estava intacta. Estava reforçada. Décadas de falta de uso alteraram a génese da membrana virginal que, de simples selo, garante de novidade, passou a lacre de chumbo, intransponível Cérbero que em vez de guardar o Hades, guardava o hás-de: da maneira como aquilo estava, era o "não hás-de foder nunca". Quem encostasse o ouvido àquela rata avoenga, lograria ouvir os latidos do cabrão do bicho tricéfalo, tal como num búzio se sente o mar.O hímen da velha não estava difícil, meus amigos, estava calcinado. Um homem normal precisaria de estar ano e meio sem foder, para ter o pau mais feito de sempre, 20 centímetros de força bruta, necessária para furar o contraplacado de sangue e crosta e muco vaginal que unia as paredes musculadas da greta. Felizmente, para o Pipi, bastou não bater punhetas nesse dia para ter madeiro suficiente para a perfuração. A broca entrou às 19h45. Às 19h48 estava a perfuração concluída. Em vez do tradicional sangue, saiu uma mistela verde. Digo eu: "Vamos lá a ver se não tem já a pachacha estragada, minha senhora. Isto devia ter começado a ser consumido por volta de 1945." E ela: "Como diz?" E eu: "NÃO SEI SE O PITO AINDA ESTARÁ BOM!" E ela: "Como diz?" E eu: "O PITO, O PITO! É CAPAZ DE JÁ ESTAR PASSADO!" E ela: "Escarranche-me mas é isso, jovem." Escarranchei. A velha sorria infantilmente. Digo infantilmente por duas razões: primeiro, porque era um sorriso germinal, novo, de descoberta; segunda, porque a velha não tinha dentes, e por isso ria como os bebés. No final, confessou-me que não se lembrava de ter tido uma sensação tão forte na vida -- tirando a trombose. É para momentos como este que nós, que andamos metidos nisto das cricas e do chavascal, trabalhamos. Vou só actualizar o meu curriculum e já venho.

/


Para quem não sabe, O Meu Pipi era um blog português que chegava a receber 4.500 acessos/dia. O Prosa Caótica foi um dos primeiros blogs, senão o primeiro, a mencionar O Meu Pipi no Brasil. Transformado em livro em 2003, foi um dos maiores sucessos da literatura portuguesa na época. Seu autor continua anônimo. 




10.12.04

Hilda Hilst




Araras versáteis. Prato de anêmonas.
O efebo passou entre as meninas trêfegas.
O rombudo bastão luzia na mornura das calças e do dia.
Ela abriu as coxas de esmalte, louça e umedecida laca
E vergastou a cona com minúsculo açoite.
O moço ajoelhou-se esfuçando-lhe os meios
E uma língua de agulha, de fogo, de molusco
Empapou-se de mel nos refolhos robustos.
Ela gritava um êxtase de gosmas e de lírios
Quando no instante alguém
Numa manobra ágil de jovem marinheiro
Arrancou do efebo as luzidias calças
Suspendeu-lhe o traseiro e aaaaaiiiiiiii...
E gozaram os três entre os pios dos pássaros
Das araras versáteis e das meninas trêfegas.

9.12.04

Torquato Neto l Não é o meu país



não é o meu país
é uma sombra que pende
concreta
do meu nariz
em linha reta
não é minha cidade
é um sistema que invento
me transforma
e que acrescento
à minha idade
nem é o nosso amor
é a memória que suja
a história
que enferruja
o que passou




5.12.04

João Cabral -- Os três mal-amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo-morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.



João Cabral de Melo Neto, em fragmento de "Os três mal-amados", 1943.


26.11.04

William Carlos Williams



O direito de passagem

Transitando com a idéia posta
em nada deste mundo

a não ser o direito de passagem
eu desfruto a estrada por

efeito de lei --
vi

um homem de idade
que sorriu e desviou o olhar

para o norte, além de uma casa --
uma mulher de azul

que estava rindo e se
inclinando para a frente

a fim de olhar o rosto meio
voltado do homem

e um menino de uns oito anos que
olhava para o meio da

barriga do homem
para uma corrente de relógio --

A suprema importância
deste inominado espetáculo

fez com que eu acelerasse
ao passar por eles sem palavra --

Por que me importaria o rumo?
e lá fui rodando sobre as

quatro rodas do meu carro
pela estrada molhada até

que vi uma moça com uma perna sobre
o parapeito de um balcão




23.11.04

Guilherme Mandaro



meu amigo de infância continua emagrecendo
fala depressa
diz que a vida tá difícil
que mário continua exagerando
que ele vai à praia ali mesmo
enquanto a cerveja sobra no copo
alguma coisa sobra no papo
a noite apenas começa




22.11.04

16.11.04

ALEA I -- VARIAÇÕES SEMÂNTICAS
(uma epicomédia de bolso)

Haroldo de Campos
1962/63


O ADMIRÁVEL o louvável o notável o adorável
o grandioso o fabuloso o fenomenal o colossal
o formidável o assombroso o miraculoso o maravilhoso
o generoso o excelso o portentoso o espaventoso
o espetacular o suntuário o feerífico o feérico
o meritíssimo o venerando o sacratíssimo o sereníssimo
o impoluto o incorrupto o intemerato o intimorato

O ADMERDÁVEL o loucrável o nojável o adourável
o ganglioso o flatuloso o fedormenal o culossádico
o fornicaldo o ascumbroso o iragulosso o matravisgoso
o degeneroso o incéstuo o pusdentoso o espasmventroso
o espertacular o supurário o feezífero o pestifério
o merdentíssimo o venalando o cacratíssimo o sifelíssimo
o empaluto o encornupto o entumurado o intumorato

N E R U M
D I V O L
I V R E M
L U N D O
U N D O L
M I V R E
VO L U M
N E R I D
M E R U N
V I L O D
D O M U N
V R E L I
L U D O N
R I M E V
M O D U L
V E R I N
LO D U M
V R E N I
I D O L V
R U E N M
R E V I N
D O L U M
M I N D O
L U V R E
M U N D O
L I V R E


programa o leitor-operador é
convidado a extrair outras
variantes combinatórias
dentro do parâmetro semântico
dado
as possibilidades de permutação
entre dez letras diferentes
duas palavras de cinco letras cada
ascendem a 3.628.800



Haroldo de Campos


11.11.04

Rimbaud & Verlaine: Do roteiro de "Total Eclipse", 1995




Verlaine: O que você acha de minha esposa?
Rimbaud: Não sei. O que você acha dela?
Verlaine: Ela ainda é muito criança.
Rimbaud: Eu também.

(pausa)
Verlaine: (para o garçom) Dois absintos...
Rimbaud: Esse seu último livro...
Verlaine: Sim...
Rimbaud: ...não é lá essas coisas.
Verlaine: Não está falando sério.
Rimbaud: Puro lixo pré-matrimonial.
Verlaine: Não. São poemas de amor. Muita gente gostou.
Rimbaud: Não passam de uma mentira.
Verlaine: Não são uma mentira, eu amo minha mulher.
Rimbaud: Amor...
Verlaine: Sim.
Rimbaud: Isso não existe.
Verlaine: O que quer dizer?
Rimbaud: O que une as famílias e os casais, isto não é amor. É burrice, egoísmo, ou medo. O amor não existe.
Verlaine: Você está enganado.
Rimbaud: O interesse próprio existe, a união para proveitos pessoais existe, a complacência existe. Não o amor. O amor tem de ser reinventado.
Verlaine: Eu amo o corpo dela.
Rimbaud: Há outros corpos.
Verlaine: Não. Eu amo o corpo de Matilde.
Rimbaud: E a alma não?
Verlaine: Acho mais importante amar o corpo do que amar a alma, afinal a alma pode ser imortal. Terei muito tempo para a alma, enquanto a carne...
Rimbaud: (bufando)
Verlaine: O que foi? É o meu amor pela carne que me mantém fiel.
Rimbaud: Fiel. O que quer dizer com isso?
Verlaine: Sou fiel a todos a quem amei. Se amei um dia, amarei para sempre...e quando estou sozinho à noite ou pela manhã, posso fechar meus olhos e celebrar a todos.
Rimbaud: Isto não é fidelidade. É nostalgia. Não espere fidelidade de mim.
Verlaine: Aaah... por que está tão azedo comigo?
Rimbaud: Porque você precisa disso.
Verlaine: Já não basta saber que amo você mais do que ninguém? E que sempre amarei?
Rimbaud: Ah, cale essa boca, seu bêbado choramingas.
Verlaine: Diga que me ama.
Rimbaud: Ah, pelo amor de Deus.
Verlaine: Por favor, é importante para mim, diga...
Rimbaud: Você sabe que gosto de você.
Verlaine: Fiz umas compras hoje de manhã. Comprei um revólver.
Rimbaud: E pra quê?
Verlaine: Para você, para mim, para todos.
Rimbaud: Espero que tenha comprado munição suficiente pra todo mundo.



(trad. Maira Parula)


8.11.04

Salvador Dalí, visto por Buñuel


Durante a Guerra Civil Espanhola, Dalí por várias vezes manifestou sua simpatia pelos fascistas. Propôs até à Falange um monumento comemorativo bastante extravagante. Tratava-se de fundir, misturadas, as ossadas de todos os mortos da guerra. Em seguida, a cada quilômetro, entre Madri e El Escorial, erguer-se-iam uns cinquenta soclos sobre os quais seriam colocados esqueletos feitos com as ossadas verdadeiras. Esses esqueletos iriam aumentando de tamanho. O último, chegando em El Escorial, atingiria 3 ou 4 metros. Como se pode imaginar, o projeto foi recusado. Em seu livro, A vida secreta de Salvador Dalí, ele se referiu a mim como um ateu. De certa maneira isto era mais grave do que uma acusação de comunismo. Um tal de Prendergast, representante dos interesses católicos em Washington, começou, na mesma época, a usar sua influência junto aos meios governamentais para que eu fosse despedido do Museu [de Arte Moderna de Nova York]. (...) Depois de minha demissão, um dia marquei um encontro com Dalí no bar do hotel Sherry Netherland. Ele chega, muito pontual, e pede champanhe. Furioso, em vias de agredi-lo, digo-lhe que é um canalha, que estou no olho da rua por sua culpa. Ele me responde com esta frase que jamais esquecerei: "Escrevi esse livro para erigir um pedestal para mim. Não para você." Recolhi minha bofetada. Com a ajuda do champanhe -- e das reminiscências, do sentimentalismo -- nos separamos quase amigos. Mas a ruptura era profunda. Eu só tornaria a vê-lo uma vez mais. (...) Um dia, em Montmartre, vou vê-lo em seu hotel, encontro-o de peito nu com um curativo nas costas. Pensando sentir um "percevejo" ou qualquer outro bichinho -- na verdade era uma espinha ou verruga -- ele cortara as costas com uma lâmina de barbear e sangrara abundantemente. Ele então contou muitas mentiras, embora fosse incapaz de mentir. Quando, por exemplo, para escandalizar o público americano, escreveu que um dia, visitando um museu de história natural, sentiu-se violentamente excitado pelos esqueletos de dinossauros a ponto de se ver obrigado a "sodomizar" Gala [sua mulher] num corredor, isso era evidentemente falso. Mas ele é de tal modo fascinado por si mesmo que tudo o que diz o toca com a força cega da verdade. (...) Quando de sua ida a Nova York pela primeira vez, no início dos anos 1930, foi apresentado aos milionários, de quem já gostava muito, e convidado para um baile de máscaras. A América inteira estava na época traumatizada pelo sequestro do bebê Lindbergh, o filho do famoso aviador. A esse baile Gala compareceu com uma roupa de criança, o rosto, o pescoço e os ombros manchados de sangue. Dalí dizia apresentando-a: "Ela está fantasiada de bebê Lindbergh assassinado." Isso repercutiu muito mal. Tratava-se de um personagem quase sagrado, de uma história em que não se podia tocar sob pretexto algum. Dalí, censurado por seu marchand, rapidamente recuou e contou aos jornais, numa linguagem hermético-psicanalítica, que a fantasia de Gala inspirava-se, na realidade, no complexo X. Era um travesti freudiano. (...) Quando penso nele, apesar das recordações de nossa juventude, apesar da admiração que ainda me inspira atualmente uma parte de sua obra, me é impossível perdoar-lhe seu exibicionismo ferozmente egocêntrico, sua adesão cínica ao franquismo e sobretudo seu ódio declarado pela amizade. Numa entrevista, há alguns anos, declarei que ainda assim gostaria bastante de tomar uma taça de champanhe com ele antes de morrer. Ele leu essa entrevista e disse: "Eu também, mas já não bebo."


Luis Buñuel, em seu livro de memórias Meu último suspiro, 1982.


28.10.04

Juvenilidades Auriverdes



"Pessoalmente acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Acho o Brasil infecto. Devo imenso a Anatole France que me ensinou a duvidar, a sorrir e a não ser exigente com a vida." Foi o que disse o poeta Drummond em carta enviada a Mário de Andrade no final do ano de 1924. Mário e Drummond mantiveram uma correspondência habitual ao longo de décadas, jamais conviveram assiduamente, exceto por cartas, mesmo na época em que ambos moravam no Rio de Janeiro, no final dos anos 1930. A este "desabafo escandaloso", segundo o mineiro, Mário responderia com o seu cinismo filosófico prático:

"Mas meu caro Drummond, pois você não vê que é esse todo o mal que aquela peste amaldiçoada fez a você! Anatole ainda ensinou outra coisa de que você se esqueceu: ensinou a gente a ter vergonha das atitudes francas, práticas, vitais. Anatole é uma decadência, é o fim duma civilização que morreu por lei fatal e histórica. Não podia ir mais pra diante. Tem tudo que é decadência nele. Perfeição formal. Pessimismo diletante. Bondade fingida porque é desprezo, desdém ou indiferença. Dúvida passiva, porque não é aquela dúvida que engendra a curiosidade e a pesquisa, mas a que pergunta: será? irônica e cruza os braços. E o que não é menos pior: é literato puro. Fez literatura e nada mais. E agiu dessa maneira com que você mesmo se confessa atingido: escangalhou os pobres moços fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem coragem, duvidando se vale a pena qualquer coisa, duvidando da felicidade, duvidando do amor, duvidando da fé, duvidando da esperança, sem esperança nenhuma, amargos, inadaptados, horrorosos. Isso é que esse filho-da-puta fez. Foi grande? Foi. Foi talvez mesmo genial nalgumas páginas. Pouquinhas, graças a Deus. Foi elegante, fino, sutil? Foi, foi, foi. Mas também foi filho-da-puta, porque as grandezas que engendrou não bastam pra pagar um só dos males que fez. Você diz que ele ensinou você a não ser exigente com a vida... Como isso! se você se confessa um inadaptado e tem um errado desprezo pelo Brasil e os brasileiros. O mal que esse homem fez a você foi torná-lo cheio de literatices, cheio de inteligentices, abstrações em letra de fôrma, sabedoria de papel, filosofia escrita: nada prático, nada relativo ao mundo, à vida, à natureza, ao homem. Representou a sua época. Não foi um passadista. Mas a nossa época, a sua época, Drummond, não é a época dele, e foi e é outros gatunos da laia dele que roubaram a você as riquezas da felicidade, que só pode existir nesta terra pela adaptação, pela correspondência, pelo equilíbrio. Ele não é um passadista, mas se você tiver as idéias dele, será um horroroso, ridículo passadista. Mas tudo passa, Drummond, você vai ver. Um pouco de paciência, um pouco de raciocínio, um pouco mais de farra vital, muito menos literatura, mudar um hábito antigo e então você me dirá se foi injusto ou se ficou muito aquém de toda a maldade e insulto que esse homem merecia de você... Tudo isso são caraminholas metidas na cabeça de você pelas letras do sr. France et caterva... Você faça um esforcinho pra abrasileirar-se. Depois se acostuma, não repara mais nisso e é brasileiro sem querer. "


(A íntegra desta carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade e da correspondência entre os dois foi publicada em A Lição do Amigo, 1982.)

17.10.04

Joan Airas de Santiago



Todalas cousas eu vejo partir
Todalas cousas eu vejo partir
do mund' en como soian seer,
e vej' as gentes partir de fazer
ben que soian, ¡tal tempo vos ven!,
mais non se pod' o coraçon partir
do meu amigo de mi querer ben.

Pero que ome part' o coraçon
das cousas que ama, per bõa fe,
e parte-s' ome da terra ond' é,
e parte-s' ome d' u gran[de] prol ten,
non se pode partilo coraçon
do meu amigo de mi [querer ben].

Todalas cousas eu vejo mudar,
mudan-s' os tempos e muda-s' o al,
muda-s' a gente en fazer ben ou mal,
mudan-s' os ventos e tod' outra ren,
mais non se pod' o coraçon mudar
do meu amigo de mi querer ben.


Joan Airas de Santiago, cantiga de amigo da literatura galega medieval.


16.10.04

A mulher na poesia barroca portuguesa



Mortal doença

Na febre do amor-próprio estou ardendo,
No frio da tibieza tiritando,
No fastio ao bem desfalecendo,
Na sezão do meu mal delirando,
Na fraqueza do ser, vou falecendo,
Na inchação da soberba arrebentado,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.

Na dureza do peito atormentada,
Na sede dos alívios consumida,
No sono da preguiça amadornada,
No desmaio à razão amortecida,
Nos temores da morte trespassada,
No soluço do pranto esmorecida,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.

Na dor de ver-me assim, vou desfazendo,
Nos sintomas do mal descoroçoando,
Na sezão de meu dano estou tremendo,
No ris como da doença imaginando,
No fervor de querer-me enardecendo,
Na tristeza de ver-me sufocando,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.

Vou ao pasmo do mal emudecendo,
À sombra da vontade vou cegando,
Aos gritos do delito emouquecendo,
No tempo sobre tempo caducando,
Nos erros do caminho entorpecendo,
Na maligna da culpa agonizando,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.


Soror Maria do Céu, freira também autora de autos e comédias de fundo moral para uso didático nos conventos.

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Que suspensão, que enleio, que cuidado
É este meu, tirano deus Cupido?
Pois tirando-me enfim todo o sentido
Me deixa o sentimento duplicado.

Absorta no rigor de um duro fado,
Tanto de meus sentidos me divido,
Que tenho só de vida o bem sentido
E tenho já de morte o mal logrado.

Enlevo-me no dano que me ofende,
Suspendo-me na causa de meu pranto
Mas meu mal (ai de mim!) não se suspende.

Ó cesse, cesse, amor, tão raro encanto
Que para quem de ti não se defende
Basta menos rigor, não rigor tanto.



Vozes de uma dama desvanecida
de dentro de uma sepultura que fala
a outra dama que presumida entrou em
uma igreja com os cuidados de ser vista
e louvada de todos; e se assentou junto
a um túmulo que tinha este epitáfio
que leu curiosamente

Ó tu, que com enganos divertida
Vives do que hás-de ser tão descuidada,
Aprende aqui lições de escarmentada,
Ostentarás acções de prevenida.

Considera que em terra convertida
Jaz aqui a beleza mais louvada,
E que tudo o da vida é pó, é nada,
E que menos que nada a tua vida.

Considera que a morte rigorosa
Não respeita beleza nem juízo
E que, sendo tão certa, é duvidosa.

Admite deste túmulo o aviso
E vive do teu fim mais cuidadosa,
Pois sabes que o teu fim é tão preciso.


Soror Violante do Céu, freira dominicana e um dos expoentes máximos da poesia barroca portuguesa, séc. 17.



12.10.04

A q u i
J a z



aquele cujo nome traçaram os vagalumes
cujo perfil formaram as pétalas caídas
antes do dia
e do vento



Mário Faustino, 1948


14.9.04

Há, no Bairro Francês, vários bares gays, tão repletos todas as noites que os viados transbordam pras calçadas. Um ambiente cheio de viados me enche de pavor. Eles se sacodem que nem marionetes movidas por fios invisíveis, galvanizados por uma agitação hedionda que é a própria negação de tudo que é vivo e espontâneo. A vida genuína se mudou desses corpos há muito tempo. E algo se infiltrou lá dentro, quando o locatário original foi embora. Viados são bonecos de ventríloquos que tomaram de assalto a alma do mestre. O boneco senta no balcão, ninando sua cerveja e tagarelando sem parar. Nada é capaz de alterar a rigidez de seus traços inumanos.

De vez em quando a gente encontra personalidades intactas num bar gay, mas são as bonecas que estabelecem o padrão nestas bibocas, e eu sempre fico deprimido quando entro numa delas. Com o tempo, a depressão só faz aumentar. Depois de uma semana numa cidade nova, já esgotei todas as possibilidades desses bares; só me resta fuçar noutros cantos, em geral nos bares da boca do lixo e imediações.

Mas, vez por outra, eu tenho umas recaídas. Certa noite, no Frank's, fiquei descerebrado de tanto beber e fui a um bar gay. Devo ter bebido mais lá, pois fui acometido de um lapso temporal. Já estava clareando lá fora quando se abriu no bar um desses súbitos bolsões de silêncio. Silêncio é algo que não ocorre com frequência num bar gay. Acho que a maioria dos viados já tinha ido embora. Eu estava debruçado no balcão diante de uma cerveja que eu não queria. O barulho se dissipou feito fumaça e notei que um garoto ruivo me olhava fixamente, a um metro de distância.

Como ele não veio com viadagens pra cima de mim, me animei a dizer, "Como vão indo as coisas?", ou algo assim.

-- Cê quer ir pra cama comigo? -- ele disse.

-- Tudo bem, vamos nessa -- eu disse.

Quando íamos saindo do bar, ele apanhou minha garrafa de cerveja no balcão e escondeu-a sob o casaco. Lá fora já era dia. O sol despontava. Atravessamos trôpegos o Bairro Francês, passando a garrafa um pro outro. Ele ia me levando ao seu hotel, pelo menos foi o que me disse. Sentia meu estômago crispar, como se estivesse prestes a tomar um pico depois de muito tempo sem droga. Eu devia ficar mais atento, sem dúvida, mas nunca consegui misturar sexo e vigilância. O tempo todo eu ouvia sua voz sexy, cujo sotaque sulista não era de Nova Orleans. Mesmo à luz do dia, ele ainda me parecia apetecível.

Chegamos no hotel e ele veio com um papo de que tinha de entrar primeiro. Tirei umas notas do meu bolso. Ele deu uma olhada e disse: "Melhor me dar uma de dez." Dei a ele. Entrou no hotel e logo saiu.

-- Lotado -- disse ele. -- Vamos tentar o Savoy.

O Savoy ficava logo ali, do outro lado da rua.

-- Espere aqui -- ele disse.

Fiquei uma hora esperando. De repente me bateu o que havia de errado com o primeiro hotel. Não devia ter porta dos fundos ou lateral por onde ele pudesse escapar. Voltei ao meu apartamento e peguei meu revólver. Fiquei esperando perto do Savoy. Depois dei uma volta pelo Bairro Francês, à cata do garoto. Já devia ser meio-dia quando me bateu a fome. Tracei um prato de ostras e uma cerveja. Ao sair do restaurante, senti um cansaço repentino de dobrar as pernas, como se me aplicassem golpes de karatê nas junções atrás dos joelhos.

Peguei um táxi até em casa e me joguei atravessado na cama, sem tirar os sapatos. Acordei por volta das seis da tarde e fui ao Frank's. Três cervejas mais tarde, eu já me sentia melhor.


William Burroughs, em Junky, 1953.


13.9.04

José Régio


Fantasia erótica

A mulher que eu amo, que impressão me faz!
De cabelos rasos, parece um rapaz.
Mas os olhos dela, sem ela o querer,
É que dizem coisas que só de mulher.
As suas narinas vibram, a chamar
Os turvos eflúvios vagabundos no ar;
E os seus dentes, frios no sorriso moço,
Sinto-os, só de vê-los, contra o meu pescoço.
A mulher que eu amo, que impressão me faz!
Seu sorriso é triste, seu perfil minaz.
Os seus seios hirtos, pequeninos, túmidos,
Bastam a que os olhos se me façam húmidos.
Suas mãos felinas, logo que me tocam,
Meus nervos agudos todos se deslocam.
Suas ancas -- taças do prazer -- transbordam
De ópios que adormentam... mas que logo acordam.
Suas pernas magras de desenho fino
São como suspensos arcos de violino.
Quando as beijo cego-me! e esse beijo, corre
Como a onda solta que só longe morre.
Com seu riso aéreo nos lábios vermelhos,
Ela, então, recebe-me, entre os nus joelhos,
Sobre o longo corpo inteiramente franco...
E os seus olhos mortos boiam só em branco.


José Régio, 1961.


10.9.04

Peire Vidal

Poesia trovadoresca, c. 1200


Et ab jio li er mos treus
Entre gel e vent e neus.
La Loba ditz que seus so,
Et a.n be dreg e razo,
Que, per ma fe, melhs sui seus
Que no sui d'autri ni meus.

Procuro-a com alegria
Pelo vento neve granizo.
A Loba diz que sou dela
E meu Deus ela está certa:
Sou todo dela
E de ninguém mais, nem de mim.


Peire Vidal, em tradução livre do occitano. A Loba do poema era Etiennette de Pennautier, a dama mais bela e cortejada de sua época no Languedoc, região da antiga França que foi berço dos heréticos, do amor cortês e da poesia trovadoresca. Isso até aparecerem os soldados de Cristo, os cruzados, e estragarem tudo.


5.9.04




3.9.04


Morro de saudades. Acordo de madrugada e fico vagando pela casa, tomando café e fumando com aquele sentimento esquisito de lack of rabanadas. Recebi tua carta hoje de manhã, agora mesmo, às nove horas, e faz um dia lindo. Aquele frio lá fora, o céu azul transparente mostra que a poluição diminuiu bastante... Para mim seis degraus centígrados é frio à beça. Corro para dentro e ligo o heat na toda, no clima supertropical de Ipanamo. Mas o ar fica seco, racha-violão. Só mesmo no banheiro, com o chuveiro quente ligado, nu, de camisa de meia, na umidade das nuvens de vapor quente, fazendo uma infinita barba, com aparelho, pincel e muita espuma e respuma, gilete nova, desligado, num mundo sem problemas, só fico assim mais como Ipanerma, Ipanoma, Ipaderma, Ipanonha, Aipinina, Ipatonha... Ipanhonha?


Tom Jobim, de Los Angeles, 1965, em carta a Vinícius de Morais.



31.8.04

Parece-me por vezes que ouço dizer o vinho (ele fala com a sua alma, com essa voz dos espíritos que só pelos espíritos é ouvida) : " -- Homem, meu bem-amado, quero lançar para ti, apesar da minha prisão de vidro e dos meus ferrolhos de cortiça, um canto cheio de alegria e de esperança. Não sou ingrato; sei que te devo a vida. Sei o que te custou de trabalho e de sol nas costas. Tu deste-me a vida, eu te recompensarei. Pagar-te-ei largamente a minha dívida; porque eu sinto uma alegria extraordinária quando caio no fundo de uma garganta sedenta pelo trabalho. O peito de um bom homem é uma morada que me agrada muito mais do que estas caves melancólicas e insensíveis. É um alegre túmulo onde cumpro o meu destino com entusiasmo. Faço no estômago do trabalhador um grande reboliço, e dali, por escadas invisíveis, subo-lhe ao cérebro onde executo a minha dança suprema.

"Ouves tu agitarem-se em mim as poderosas canções dos tempos antigos, os cantos do amor e da glória? Sou a alma da pátria, meio galante, meio militar. Sou a esperança dos domingos. O trabalho faz os dias prósperos, o vinho faz os domingos felizes. Com os cotovelos assentes na mesa de família e as mangas arregaçadas, tu me glorificarás altivamente e estarás verdadeiramente contente.

"Iluminarei os olhos da tua velha mulher, a velha companheira dos teus desgostos cotidianos e das tuas velhas esperanças. Enternecerei o seu olhar e porei no fundo das suas pupilas o fogo da juventude. E ao teu filho, palidozinho, esse pobre burrico atrelado à mesma fadiga que o cavalo da charrua, dar-lhe-ei de volta as belas cores do seu berço, e serei para esse novo atleta da vida o óleo que reforça os músculos dos antigos lutadores.

"Cairei no fundo do teu peito como uma ambrosia vegetal. Serei o grão que fertiliza o sulco dolorosamente lavrado. A nossa íntima reunião criará a poesia. Nós dois faremos um Deus e voaremos para o infinito, como os pássaros, as borboletas, os fios da Virgem, os perfumes e todas as coisas aladas."

Eis o que o vinho canta na sua linguagem misteriosa. Ai daquele cujo coração egoísta e fechado às dores dos seus irmãos nunca ouviu esta canção.


Charles Baudelaire, em "Do Vinho e do Haxixe, Comparados como Meios de Multiplicação da Individualidade", 1851.


28.8.04

Carvalho Júnior



Antropofagia

Mulher! ao ver-te nua, as formas opulentas
Indecisas luzindo à noite, sobre o leito,
Como um bando voraz de lúbricas jumentas,
Instintos canibais refervem-me no peito.

Como a besta feroz a dilatar as ventas
Mede por dar-lhe o bote ajeito,
Do meu fúlgido olhar às chispas odientas
Envolvo-te, e, convulso, ao seio meu t'estreito:

E ao longo de teu corpo elástico, onduloso,
Corpo de cascavel, elétrico, escamoso,
Em toda essa extensão pululam meus desejos,

-- Os átomos sutis -- os vermes sensuais,
Cevando a seu talante as fomes bestiais
Nessas carnes febris -- esplêndidos sobejos!




25.8.04

John Lennon - Um atrapalho no trabalho



Jesus El Pifco era um estrangeiro e sabia disso. Ele tinha imigratificado de seu pequeno barraco branco em Barcelônia uns bons dezenoivos anos atrás tendo antes o cuidado de garantir um emprego como cocheiro na Escócega. O emprego era na casa do Simsenhor de MacAnus, um típico muito qualacterístico que tinha um castelo nas Highlands. A primeira coisa que Jesus El Pifco notou nos primaveiros dias foi que o Simsenhor não parecia ter nada que se assemelhasse à descrição de um coche ou mesmo uma cocheira você sabe, para seu suprêmio desgasto. Mas -- e uso a palavra em vão -- o Simsenhor parece que tinha alguns cavalos, cada um exibindo um belo par de pernas. Jesus se apaixonou por eles à primeira vista, como eles por ele, o que era muita sorte, porque os aposentos de El Pifco eram realmente no estábulo lado a lado com seus quatro nobres amigos cavalares.

Logo longo a gente dava pra ver Jesus quase todo dia, pageando os cavalos do seu patrão, penteando suas crinas e obturando seus dentes, assobiando um velho refrão espanhol sonhando com suas úteras amadas lá na terrinha em suas bastardas e brancas cabaninhas fascistas.

-- Turminha legal de cavalos, eu diria, ele observava à pequena Spastic Sporran, a camareira escorregadiça, quem ele bem não tiritava o olho desdentão Hogmanose.

-- Dá pro gasto, ela respondiva com seu lixeiro sotictac de Aberdeen-martin. Vosmecê passa mais tempo co'esses cavalos do que mecê passa comigo, com uma dessas ela se precipirulitava para suas obrigações, amarrando bem firme seu jacinto de castidade na epidorme.

Bom católico que era, Jesus limpava o cuspo da cara e oferecia a outra alface -- mas ela já tinha ido emborbas deixando ele mais uma vez numa ágata Christi.

-- Um dilha ela vai passar da conta, e eu seixo ela, ele disse ao seu cavalo Favo o Ríctus. Claro que o cavalo não responsou, porque vocês sabem eles não falam, e vê lá se iam falar logo com um comedor de alho, fedorento, baixinho, covarde, seboso, um bastardo fascista católico espanhol. Logo fizeram as aspásias e Jesus e a tal Spastic estavam de nojo unidos naquele amor sem dolores.

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(Fragmento de Um atrapalho no trabalho (1984), tradução particularíssima de Paulo Leminski ao texto A Spaniard in the Works (1965), de John Lennon. Por sua prosa pop, um mix de flash-contos, esboços de peças, poemas nonsense e desenhos, os livros de Lennon (Lennon On His Own Write e A Spaniard in the Works) têm um lugar especial na criação literária do século 20. Apesar de seus textos lembrarem o estilo de James Joyce, Lennon confessou que sua maior influência foi Lewis Carroll -- a fonte onde bebeu Joyce. Nem preciso dizer que essa tradução é na verdade uma transcriação, difícil saber onde acaba Lennon e começa Leminski.)


11.8.04

Junqueira Freire



Martírio
Beijar-te a fronte linda
Beijar-te o aspecto altivo
Beijar-te a tez morena
Beijar-te o rir lascivo

Beijar o ar que aspiras
Beijar o pó que pisas
Beijar a voz que soltas
Beijar a luz que visas

Sentir teus modos frios,
Sentir tua apatia,
Sentir até repúdio,
Sentir essa ironia,

Sentir que me resguardas,
Sentir que me arreceias,
Sentir que me repugnas,
Sentir que até me odeias,

Eis a descrença e a crença,
Eis o absinto e a flor,
Eis o amor e o ódio,
Eis o prazer e a dor!

Eis o estertor de morte,
Eis o martírio eterno,
Eis o ranger dos dentes,
Eis o penar do inferno!


Junqueira Freire, monge beneditino e poeta baiano, séc. 19.


8.8.04

Explicação de poesia sem ninguém pedir


Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.


Adélia Prado

5.8.04

Citações



Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação ou agradecimento.
(Machado de Assis)

Uma galinha é a maneira de um ovo produzir outro ovo.
(Samuel Buttler)

Nasci para satisfazer a grande necessidade que eu tinha de mim mesmo.
(Sartre)

O otimista acha tudo bom exceto o pessimista. O pessimista acha tudo ruim exceto a si mesmo.
(Chesterton)

Quando o populacho se mete a raciocinar, tudo está perdido.
(Voltaire)

Tenho tentado viver numa torre de marfim, mas sempre uma maré de merda lhe bate nas paredes para fazê-la desabar.
(Flaubert)

Os velhos repetem-se e os jovens nada têm para dizer. O tédio é recíproco.
(Jacques Bainville)

Dize às vezes a verdade para que te creiam quando mentires.
(Jules Renard)

Um idiota pobre é um idiota. Um idiota rico é um rico.
(Paul Laffitte)

O imigrante é um indivíduo mal informado que pensa que um país é melhor que outro.
(Ambrose Bierce)

É agradável ver o nosso nome impresso. Um livro é um livro, ainda que não contenha nada.
(Byron)

Nunca viajo sem o meu diário. Precisamos sempre ter alguma coisa sensacional para ler no trem.
(Oscar Wilde)

Se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la.
(Balzac)

Que homem Balzac teria sido se soubesse escrever!
(Flaubert)

Não gosto de Deus porque não o conheço, nem do próximo, porque o conheço.
(Montesquieu)

O homem só inventou Deus para poder viver sem matar-se.
(Dostoiévski)

O autodidata é o ignorante por conta própria.
(Mário Quintana)

Quando o apocalipse vier, Senhor, que eu tenha pelo menos escovado os dentes!
(Eno Teodoro Wanke)

Detesto citações.
(Emerson)



4.8.04

Agustín Garcia Calvo




Maletas
Bagagem
Bagaxe
Bagaje
Bagatge

En una equipaje caben todos los diccionarios.


De vuelta

Saber el nombre de los pueblos
por los que va pasando el tren
gracias al nombre de las estaciones
por las que va pasando el tren.


Recelos justificados

Prescindir de lo propio
no por propio o por impropio,
sino por enteramente ajeno.
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"La cultura es una fantasía que está a expensas del poder. "
"El artista es un estorbo para su obra."
"El cultivo del prestigio de los autores clásicos y contemporáneos es un juego de vanidades y engaños." Saiba mais do poeta e filólogo em uma entrevista de 2003 publicada no site Babab.


3.8.04



O maior poeta possível -- é o sistema nervoso.
O inventor do todo -- mas antes o único poeta.


Paul Valéry

1.8.04

O livro do desassossego

Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reincarnar, reincarnei sem mim, sem ter eu reincarnado. Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar. Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direcção infinítupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo ? vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo. E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda. E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrónico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.
Poder saber pensar! Poder saber sentir!
Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...


Bernardo Soares (Fernando Pessoa), em O livro do desassossego.


28.7.04

Memórias de uma forca


Memórias de uma forca
(fragmento)

Sou duma antiga família de carvalhos, raça austera e forte --  que já na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota tenebrosa das Índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas para os tetos simples e perfumados que abrigaram Savanarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições sonoras e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana. Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os deveres da história. Era uma árvore materialista. Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetação. Não tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a religião do Sol, da seiva e da água. Era o grande libertino da floresta pensativa. No verão, enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo-se ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boêmios, cuspia a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite, enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral.  Quando vinha o inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassível ironia do azul, os seus braços magros e suplicantes!

Por isso nós, os seus filhos, não fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços; ramo contemplativo e romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, áspero solitário da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre nós para ir ser tábua de esquife! -- Eu, o mais lastimável, vim a ser forca!

 
Eça de Queiroz, em "Prosas Bárbaras".

 

22.7.04

William Carlos Williams




O carrinho de mão vermelho



tanta coisa depende
de um

carrinho de mão
vermelho

reluzente de água de
chuva

ao lado das galinhas
brancas

 


 

16.7.04

Edgar Alan Poe - "Sombra"



Sombra
 
 
Vós que me ledes por certo estais entre os vivos, mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Porque de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão, antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estilete de ferro. 

O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na terra. Pois muitos prodígios e sinais se haviam produzido e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano de 794 em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se, não somente no orbe físico da terra, mas nas almas, imaginações e meditações da humanidade.
   
Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas do rubro vinho de Quios, entre as paredes de nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de bronze, de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o pressentimento e a lembrança do Flagelo não podiam ser assim excluídos. Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar precisa conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade e, sobretudo, aquele terrível estado de existência, que as pessoas nervosas experimentam, quando os sentidos estão vivos e despertos e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimiam nossos ombros os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas as coisas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava, sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo, que era histérico. E cantávamos as canções de Anacreonte, que são doidas, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido ao comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria, salvo seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão e, mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Telos.  Mas, pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvaecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções , se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu e se assemelha ao vulto de um homem: mas não era a sombra de um homem, nem a sombra de um Deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E tremendo, um instante, entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente, sobre a superfície da porta de ébano.  Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de Deus, de deus da Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável . Os pés do jovem Zoilo amortalhado encontravam-se, se bem me lembro, na porta na qual a sombra repousava.  Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra, no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e seu lugar de nascimento. E a sombra respondeu: 
   
"Eu sou a sombra e minha morada fica perto das Catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte."

E então todos os sete erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era o de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando nas suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos, que a morte ceifara. 
 


Edgar Allan Poe
 
 


15.7.04

Fim do mundo
 
 
Eis em que deram as coisas neste mundo
As vacas sentadas nos postes telegráficos jogando xadrez
A cacatua debaixo das saias da dançarina espanhola
Canta tão triste quanto uma corneta de quartel e os canhões
                                                                 [lamentam o dia inteiro
Isso é a paisagem de lavanda de que falava Herr Mayer
quando perdeu o olho
Somente o corpo de bombeiros pode expulsar o pesadelo da
                                                                                             [sala de
visitas mas todas as mangueiras estão quebradas
Ah sim Sonya todos consideram a boneca de celulóide uma
                                                                               [criança-trocada
e gritam: God save the king
O Clube Monista em peso se reuniu no barco a vapor
                                                                                       [Meyerbeer
Mas só o piloto tem alguma idéia do que seja um dó maior
Arranco o atlas anatômico de meu tornozelo
começa um estudo sério
Você viu os peixes que têm estado de pé defronte da
ópera de gala
estes últimos dois dias e duas noites...?
Ah ah vós grandes diabos -- ah ah vós apicultores e
                                                                                  [comandantes
Como um bau au au com um bô ô ô quem hoje em dia não
                                                                                                 [sabe
o que nosso Pai Homero escreveu
Guardo a guerra e a paz em minha toga mas tomarei um
                                                                     [milk-shake de cereja
Hoje ninguém sabe se foi amanhã
Batem o compasso com uma tampa de esquife
Se ao menos alguém tivesse a coragem de arrancar as penas
                                                                                           [do rabo
do bonde é uma grande época
Os professores de zoologia reúnem-se nos prados
o grande mágico arruma os tomates na testa
Mais uma vez oh tu castelo mal-assombrado com tuas terras
O cabrito montês assobia o garanhão dá um pulo
(E é assim que é o mundo eis tudo o que vem depois de nós)
 
 
Richard Huelsenbeck, no que é considerado o primeiro poema dadaísta, 1916.
 
 
 

12.7.04

Tristan Tzara



DE COMO ME TORNEI ENCANTADOR DELICIOSO
E SIMPÁTICO


Durmo muito tarde. Suicido-me 65%. Minha vida é muito barata, para mim só é 30% vida. Minha vida contém 30% de vida. Faltam-lhe braços cordas e alguns botões. 5% são consagrados ao estado de estupor semilúcido acompanhado de arquejos anêmicos. Esses 5% chamam-se dadá. Assim como vocês estão vendo a vida é barata. A morte é um pouco mais cara. Mas a vida é encantadora e a morte é encantadora também.

Alguns dias atrás assisti a uma reunião de imbecis. Havia muita gente. Todo mundo era encantador. Tristan Tzara, indivíduo pequeno, idiota e insignificante, pronunciou uma conferência sobre a arte de tornar-se encantador. E incidentalmente ele era encantador. E espirituoso. Não é delicioso? Incidentalmente, todo mundo é delicioso. 9 abaixo de zero. Não é encantador? Não, não é encantador. Deus não passa. Não está nem no catálogo de telefone. Mas seja como for ele é encantador.

Embaixadores, poetas, condes, príncipes, músicos, jornalistas, atores, escritores, diplomatas, diretores, costureiros, socialistas, princesas e baronesas --- todos encantadores. Todos vocês são encantadores, extremamente sutis, espirituosos e deliciosos.

Tristan Tzara diz a vocês: ele bem que gostaria de fazer qualquer outra coisa, mas prefere continuar sendo um idiota, um palhaço e um falsificador.

Sejam sinceros um momento: o que eu acabo de dizer é encantador ou idiota?

Há pessoas (jornalistas, advogados, diletantes, filósofos) que até mesmo consideram as outras formas -- negócios, casamentos, visitas, guerras, diversos congressos, sociedades anônimas, política, acidentes, salões de dança, crises econômicas, crises emocionais --- como variações de dadá. Como não sou imperialista, não participo da opinião deles --- prefiro acreditar que dadá é apenas uma divindade de segunda ordem, que simplesmente tem de ser posta ao lado de outras formas do novo mecanismo das religiões de interregno.

A simplicidade é simples ou é dadá?

Considero-me bastante encantador


Tristan Tzara, anos 1910.


3.7.04

Sophia de Mello Breyner




Devastada era eu própria como cidade em ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega


Sophia de Mello Breyner, em O Minotauro.

1.7.04

I
Cada inseto
é um neto
de outro inseto


II
e assim num voo reto
de uma lei estabelecida


III
de driblar a morte com a vida
cada neto
de inseto
fica mais forte
tomando inseticida


Jorge Mautner


Gasosa ideológica

Me traga uma gasosa
Goza
Goza
Uma gasosa
Rosa
Rosa
Cor de rosa
Como uma garota gostosa

Uma gasosa
Linda
linda
Bem gelada
Como se fosse cocacola
Nada
Nada
Como uma gasosa

Me traga uma gasosa
Goza
Goza
Bem gostosa
Uma gasosa
Ideológica

Querida
Querida
Querida
Como é bonita
a tua ferida.
Essa cicatriz
te cai tão bem.

Conte
Conte
Conte
como foi
Neném
Alguém?
Ninguém?
Que vida
Querida

Que vida
Como é bonita
Como é
Você não vai
nem vem?


Paulo Leminski


Que é que é mais novo do que o Zen Budismo?
Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo.

Clarice Lispector


Estes textos foram publicados em 1976 no jornal Ta-ta-ta, organizado por Jorge Mautner e uma equipe de colaboradores como Caetano Veloso, Waly Salomão, Gilberto Gil, Luís Melodia, Macalé, Mauro Rasi, Luís Carlos Maciel, Ezequiel Neves, Júlio Barroso entre outros. Segundo Leminski, ta-ta-ta em sânscrito significava "é isso aí". No zen budismo, quer dizer iluminação total, o mergulho no aqui-agora do real do real. Já no ancestral nhem-ga-tu indígena, ta-ta-ta significa simplesmente "fogo", dizia Júlio Bressane. Como todos esperavam que a profecia de Hegel se cumprisse, a de que o Novo viria das Américas, o jornal baseava-se na potencialidade-poética-total e na poesia como porta-estandarte do ser, segundo Heidegger, buscando nesta embolada de culturas, levantar a bandeira do samba e do maracatu, porque "o samba é a tristeza que balança e a tristeza tem sempre uma esperança de não ser mais triste não".

Defendendo a queima de messianismos enrustidos e enrustidores, e da corrente estética da verossimilhança "socialista", Waly Salomão propõe o seu design/desenho estético:

"Vida. Poesia. Amor Amor Amor. Poesia q não fica morgada no papel poesia q não pára morgante no papel poesia q se inscreve no céu da tela de possibilidades impossíveis like a THUNDERFUCK... a visão da ciência EXPERIENCIAL da mente enquanto região sem limites - BIOCOMPUTER BIOCOMPUTER - as pontes PONTES expandidoras dos ESPAÇOS CUCAIS."

Era a era de Aquário.





28.6.04

Era uma vez o Pedro Malasarte



Era uma vez o Pedro Malasarte e foi ter a uma serra aonde havia uma casa de ladrões, e depois ele pediu socorro que era um triste barbeiro que andava a fazer barbas, e depois eles fugiro todos dele, e só ficou um resolvido a gardar o jantar, e depois o Pedro Malasarte dixe assim: -- "Ó meu senhor, trá-la barba tão grande... eu faço-la." O ladrão afastou-se e ele fez-la barba, e depois dixe que ele botasse a língua de fora, e cortou-la e comeu o jantar; depois o ladrão começou a fugir pelo monte abaixo e dizia: "explorai por mim!" porque não podia dizer "esperai!" E os outros cada vez fugio mais. Depois eles foro fazer o jantar para outra serra. O Pedro Malasarte subiu para cima de um pinheiro na serra e levou para lá uma cancela velha, e eles stavo por baixo a fazer o jantar; assim que estava o jantar feito, eles descobriro as panelas e ele mijou por cima delas, e depois dizem eles: "Este molhinho vem do céu, há de ser gostoso"; o Pedro Malasarte fez então a sua vida sobre as panelas, e eles dixero que a marmelada que era boa; depois ele botou-lo a cancela velha pela cabeça abaixo; e eles dixeram ansim: "Ora sempre isto agora foi demais; se vem aí o céu velho, logo vem o novo, vamos a fugir", depois olharo pra cima do pinheiro e dixero: "Ai que ele é o Pedro Malasarte, vamos fugir!" Depois dizem eles: "De que modo nos havemos de vingar?" Foro para a beira de um rio e fizero um homem de visgo[de cera]. Daí a poucos dias, ele passou por lá: "Ora para que estará este home aqui? Deixa-me dar-lhe um pontapé." Deu-le um pontapé e ficou lá com o pé; deu-le oitro pontapé e ficou com oitro pé; deu-le com os braços, ficou lá também; infim ficou lá todo. Depois ficou lá três dias; estava quase morto, passou lá o ladrão que fez o homem de visgo e atirou ao rio o homem de visgo e o Pedro. Adeus, ó Vitória, acabou-se a história!


(Conto popular português, da tradição oral, narrando as aventuras de Pedro Malasarte, registrado em Tradições Populares de Portugal, de J. Leite de Vasconcelos, 1882.)



23.6.04

Sylvia Plath



Aqui estou, um monte de recordações do passado e sonhos futuros reunidos num monte de carne razoavelmente atraente. Lembro-me do que esta carne já passou, sonho com o que passará. Registro aqui a ação dos nervos óticos, das papilas gustativas, da percepção sensorial. E penso: sou apenas uma gota a mais no imenso mar de matéria, definida, com a capacidade de perceber minha existência. Entre os milhões, ao nascer eu também era tudo, potencialmente. Eu também fui cerceada, bloqueada, deformada por meu ambiente, pela manifestação da hereditariedade. Eu também arranjarei um conjunto de crenças, de padrões pelos quais viverei, e no entanto a própria satisfação de encontrá-los será manchada pelo fato de que terei atingido o ápice em matéria de vida superficial, bidimensional -- um conjunto de valores. Esta solidão diminuirá e desvanecerá, sem dúvida, quando amanhã eu mergulhar novamente nos cursos, na necessidade de estudar para os exames. Mas agora este falso objetivo foi suspenso e giro num vácuo temporário. Em casa, descansei e me diverti, aqui onde trabalho a rotina foi momentaneamente suspensa e me perdi. Não há outro ser vivo na terra neste momento além de mim. Poderia percorrer os corredores, por todos os lados os quartos desertos escancarariam as portas para zombarem de mim. Meu Deus, a vida é solidão, apesar de todos os opiáceos, apesar do falso brilho das "festas" alegres sem propósito algum, apesar dos falsos semblantes sorridentes que todos ostentamos. E quando você finalmente encontra uma pessoa com quem sente poder abrir a alma, pára chocada com as palavras pronunciadas -- são tão ásperas, tão feias, tão desprovidas de significado e tão débeis, por terem ficado presas no pequeno quarto escuro dentro da gente durante tanto tempo. Sim, há alegria, realização e companheirismo -- mas a solidão da alma, em sua autoconsciência medonha, é horrível e predominante...


(Sylvia Plath, em seus Diários, 1950.)

18.6.04

Jorge Luis Borges


O Punhal



Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, nos fins do século passado; Luis Melián Lanifur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; em algum momento, Evaristo Carriego teve-o na mão.

Quem o vê tem de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o procuravam; a mão se apressa a apertar a empunhadura que a espera; a lâmina obediente e poderosa encaixa com precisão na bainha.

Outra coisa quer o punhal.

É mais que uma estrutura feita de metais; os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno o punhal que ontem à noite matou um homem em Tacuarembó e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.

Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o empunha, porque o metal se anima, o metal que pressente em cada contato o homicida para quem o criaram os homens.

Às vezes me dá pena. Tanta dureza, tanta fé, tão impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.



16.6.04

Ana Cristina Cesar



Último adeus III

Tenho escrito longamente
sobre esse assunto
Aizita traz o chá
Bebericamos na varanda
Nenhum descontrole na
tarde
Intervalo para as folhas
caindo da árvore em
frente
que nos entra pela janela
Não precisamos nos dizer
nada
O parapeito vaza outra
indicação
seca do presente
Ouvimos:
outra indicação seca do
presente
Aizita vai ver na folhinha
pendurada no prego da
cozinha
Acaba o chá
Acaba a colher de chá
Longamente
Eu também, bem, tenho escrito


Ana Cristina Cesar

13.6.04

W. H. Auden



Não, Platão, Não

Não consigo pensar em nada
que eu desejasse menos ser
que Espírito desencarnado
sem poder comer ou beber
e nem contactar superfícies
ou sentir os cheiros do estio
ou compreender palavra e música
ou olhar para o que está além.
Não, Deus me colocou bem lá
onde eu teria escolhido estar:
bom mesmo é o mundo sublunar,
no qual o Homem é macho ou fêmea
e dá Nomes Próprios às coisas.

Posso, porém, conceber que os
órgãos que Me deu a Natureza
tais minhas glândulas endócrinas,
dando duro vinte e quatro horas
sem demonstrar ressentimento,
para satisfazer-Me, seu Mestre,
e manter-Me sempre em boa forma
(não que eu lhes tenha dado as ordens,
pois não saberia o que gritar),
sonhem com uma outra existência
que não a que até então conhecem:
sim, talvez minha Carne esteja
rezando para que "Ele" morra
e, livre, Ela possa tornar-se
Matéria irresponsável.


As antigas damas japonesas


As antigas damas japonesas
distraidamente
agitam seus leques
no solitário mundo dos biombos

A distração
porém
é uma forma superior de ocultação
e
na enorme aridez
do seu íntimo domado
o rugido da raiva
estava contido
artisticamente comprimido
no extravagante cinto
que traziam
atado nas costas

Tocavam
dançavam
serviam o chá de joelhos
num secular seqüestro

Mas às vezes
num intervalo do desvelo
da hora e do pudor
descobriam
o esquisito sabor
que tem o crime


Ana Hatherly



4.6.04

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Oferece-se desespero
em excelente estado,
e espaçoso beco-sem-saída.
A preços vantajosos.

Vende-se terreno
baldio e fértil
por falta de sorte e disposição.

E tempo
totalmente por utilizar.

Informações: no beco.
Horário: sempre.

..........

Do sonho


O dia acordou.
Levantou-se na ponta dos pés
e viu o mundo
ainda deitado com os sonhos
e incantações da noite.

Subiu aos montes,
deslizou pelas colinas
e escorreu para a cidade
apressado.

Apagou os candeeiros das ruas
esganou
sombras escondidas nos pátios e nas esquinas,
e depois de repartir pelos humanos
angústias e problemas
encarregou-os de o levar até o fim.

Depois deu pela minha ausência
(estava ainda no meio do sonho
a negociar uma felicidade),
abriu a minha janela fechada
e com todo o seu peso caiu sobre mim
interrompendo as negociações.


Kiki Dimoulá

3.6.04

Nelson Rodrigues

De vez em quando entro na redação e vou dizendo, de passagem: "Dura nossa profissão de estilista!" Alguns acham graça e outros amarram a cara. Todavia, se pensarmos bem, veremos que nem uns nem outros têm razão. Pergunto: por que rir ou zangar-se com uma piada que nem piada é? Trata-se de uma verdade, nada mais que verdade. Realmente, vivemos a mais antiliterária das épocas. E mais: não só a época é antiliterária. A própria literatura também o é.

Os idiotas da objetividade hão de rosnar: "Que negócio é esse de literatura antiliterária?" Parece incrível, mas aí está outra verdade límpida, exata, inapelável. Onde encontrar uma Karenina? Uma Bovary? Conhecem algum Cervantes? Um dia, Sartre esteve na África. Na volta, deu uma entrevista. Perguntou um dos rapazes da reportagem: "Que diz o senhor da literatura africana?" Vejam a resposta do moedeiro falso: "Toda a literatura africana não vale a fome de uma criancinha negra."

Vamos imaginar se, em vez de Sartre, fosse Flaubert. Que diria Flaubert? Para Flaubert, mil vezes mais importante do que qualquer mortalidade infantil, ou adulta, é uma frase bem-sucedida. Se perguntassem a Proust: "Entre a humanidade e a literatura, quem deve morrer?" Resposta proustiana: "Que pereça a humanidade e viva a literatura."

Portanto, os estilistas, se é que ainda existem, estão condenados a falar sozinhos. Por outro lado, os escritores, em sua maioria absoluta, estão degradando a inteligência em todos os países, em todos os idiomas. É meio insultante chamar um escritor de escritor. Outro dia, num sarau de escritores, chamaram um romancista de romancista. O ofendido saltou: "Romancista é você!"

Diz o PC russo: "No tempo do czar, Tolstoi era o único escritor de Tula. Hoje, Tula tem para mais de 6 mil escritores." É verdade. Cabe, todavia, um reparo: "É que os 6 mil escritores contemporâneos não são dignos nem de amarrar os sapatos de Tolstoi."


Nelson Rodrigues, em fragmento da crônica "Inteligência Invertebrada", 1972.