22.7.03

Chico Buarque


Torno a me lembrar do meu amigo olhando o horizonte, seus cabelos molhados negros como nunca, e ele agora se penteia com mais vagar que antes. Provavelmente se sentindo lembrado, tira logo proveito da situação. Traga um cigarro, que na lembrança anterior nem existia, e fica se deixando olhar, como um ator de perfil. Que se vira para mim de repente, querendo me surpreender, com um brilho nos olhos que me incomoda de novo. E já vai anoitecer sem que eu tenha conseguido olhar seus pés. Mas mesmo aquilo que a gente não se lembra de ter visto um dia, talvez se possa ver depois por algum viés da lembrança. Talvez dar órbita de hoje aos olhos daquele dia. E é assim que vejo finalmente os pés do meu amigo, pelo rabo do olho da lembrança. Vejo mas não sei como são; são pés refratados dentro da água turva, impossíveis de julgar.
Imagino meu amigo recebendo rapazes no apartamento. Meu amigo no sofá da sala, tomando campári e dizendo poesia para os rapazes. Com os pés descalços no sofá, mas disfarçados entre as almofadas, meu amigo passando os cabelos para trás da orelha, e imagino algum rapaz se irritando com a coisa toda. Meu amigo abrindo o álbum dos poetas franceses, e o rapaz encolhendo-se no sofá. E enchendo-se de ódio, e sofrendo de um outro ódio por não entender que ódio cruzado é aquele que o domina, e que é feito de muita humilhação e que é desprezo ao mesmo tempo. Imagino a poesia sendo interminável e o rapaz enlouquecendo, indo buscar uma corda no varal, ou uma faca na cozinha, mas daí para a frente já não dá para imaginar, porque o meu amigo nunca seria professor de ginástica. Lembro-me mais uma vez dele ao meu lado, olhando o horizonte, os braços apoiados na borda da piscina, e nem bíceps o meu amigo tinha. Lembro-me do instante em que ele ergueu o copo, agitou o copo seco com uma rodela de limão grudada no fundo, e fez menção de se levantar para reforçar a caipirinha. Ameaçou trazer os pés à tona, e eu os veria de muito perto, como vi anos depois os pés do morto. Agora me dá grande aflição a idéia de ter visto os pés do meu amigo, pés que eu olharia tranquilamente no tempo da lembrança. Mas o gesto instintivo deve ser reflexo de uma intenção que está noutro tempo. E naquela tarde eu pus a mão no seu joelho sem saber por que o fazia, e disse "não". Arranquei-lhe o copo e fui preparar a caipirinha dupla.


-- Em "Estorvo", 1991.