Bem me lembro dos meus cinco, seis anos. O vizinho era, então, todo o meu horizonte humano. Ainda vejo as pessoas que moravam ao nosso lado, ou em frente, ou na esquina. Os sujeitos se cumprimentavam assim: "Bom dia, vizinho. Como vai, vizinho?" E a simples palavra tinha uma tensão, um frêmito, uma magia. Era como se o "vizinho" fosse um enfático nome wagneriano, uma espécie de Lohengrin prodigioso.
O mundo era aquela meia dúzia de vizinhos. E justamente a Lili veio morar duas ou três casas adiante da minha. Hoje ninguém se chama Lili. Lili é um nome nostálgico, obsoleto, espectral. Naquele tempo, não. Em cada rua havia uma Lili, ou duas, ou até três. Havia um pó-de-arroz que se chamava Lili. Minto. Não era Lili, era Lady. Também havia Odetes por toda parte. Ao passo que, hoje, somos um povo de poucas Odetes.
Lili. Conheci o nome antes da pessoa. Um dia, eu estava na mesa, tomando café com macaxeira. E então alguém falou em Lili. Achei o nome lindo. Lili. Aquilo ficou gorjeando em mim. Faço, porém, a ressalva: aos cinco, seis anos, não se faz nenhuma seleção auditiva. Para mim, qualquer nome era bonito. Morava na rua Dona Maria um "seu" Sepúlveda. Era capitão da Guarda Nacional e tinha bigodões. Sepúlveda, ou qualquer outro nome, vem com um halo de mistério, de graça e de espanto. Que vontade tive de me chamar Sepúlveda!
E Lili foi, exatamente, a minha primeira paixão de menino. Antes de vê-la, eu a amei. Amei o puro nome, o puro som. Era a primeira Lili da minha infância. Cinco anos tinha eu. Ou seis. Vá lá, seis. Sentia que aquele nome insinuava um mistério ou, mais do que isso, um destino. Fui varado por um sentimento de pena e de medo. Como se Lili fosse alguém que já morreu e que só aparece, por um momento, na memória dos espelhos.
Até que, uma manhã, ou tarde, sei lá, eu a vi. E de repente Lili deixou de ser apenas um som. Passava a ter um olhar, um perfil, um gesto. E era gorda. Hoje ninguém vê uma gorda sem lhe acrescentar um ponto de exclamação. Vivemos uma época tão sem busto, tão sem quadris, que ninguém entenderia a Lili de 1918. Os homens eram magros, tinham a face e o peito cavos. Mas a mulher podia ser gorda, ou, melhor, devia ser gorda. A partir dos catorze anos, os quadris e os bustos explodiam. Simples adolescentes tinham os flancos tão pesados que precisavam se pôr de perfil para atravessar as portas. Lili era a gorda em flor...
-- Nelson Rodrigues, em "Um menino de paixões de ópera", 1967.