Não foram só estas duas cartas que me trouxeram novas excelentes da Bruzundanga. Muitas outras me chegaram às mãos; a mais curiosa, porém, é a que me narra a nomeação de um papagaio para um cargo público, feita pelo poder executivo, sem que houvesse lei regular que a permitisse.
Um ministro de lá muito jeitoso, que andava fabricando em vida, ele mesmo, as peças de sua estátua, julgou que fazendo uma tal nomeação... tinha já em bronze o baixo-relevo do monumento futuro à sua glória. Consultou um dos seus empregados que estudava leis e a interpretação delas em Bugâncio, sabia a casuística jesuítica, além de conhecer as sutilezas da Escolástica, a ponto de ser capaz de provar com a mesma solidez a tese e a antítese, desde que os interessados em uma e na outra o retribuíssem bem.
Dizia a lei fundamental da Bruzundanga:
"Todos os cargos públicos são acessíveis aos bruzundanguenses, mediante as provas de capacidade que a lei exigir".
O exegeta ministerial, depois de verificar que o papagaio tinha nascido na Bruzundanga, e era, portanto, bruzundanguense, concluiu, muito logicamente, que ele podia e lhe assistia todo o direito de ser provido em um cargo público de seu país. Argumentou mais com Augusto Comte que incorporava à Humanidade certos animais; com o "artemismo", crença de determinados povos primitivos que se julgam descendentes ou parentes de tal ou qual animal, para mostrar que o anelo íntimo dos homens é elevar esses seus semelhantes e companheiros de sofrimentos na terra. Emancipá-los. A Arte, dizia ele, foi sempre por eles. Citava as esculturas assírias, egípcias, gregas, góticas que, embora idealizados ou estilizados, denunciavam um culto pelos animais que, injustamente, chamamos inferiores. Na arte escrita, para demonstrar o que o sábio consultor vinha asseverando, lembrava La Fontaine, com as suas fábulas, e modernamente, Jules Renard, com as suas interessantes "Histoires Naturelles". Nas modernas artes plásticas, nem se falava, continuava ele. A representação artística de animais, por meio delas, já constituía uma especialidade.
Foi por aí...
E, de resto, dizia ele quase no fim, quem não se lembra do papagaio de Robinson Crusoé? Devemos, portanto, exalçar o papagaio, que é um animal que fala, rematou afinal.
O ministro gostou muito do parecer; julgou dispensável pedir uma lei ao corpo legislativo que, na Bruzundanga, é composto de duas câmaras: a dos vulgares e dos doutores; não julgou também necessário avisar os outros papagaios da sua resolução para que concorressem e nomeou o do seu amigo Fagundes...
E foi assim, segundo me conta a missiva que recebi, que um "louro" bem-falante foi nomeado arauto d'armas da Secretaria de Estado de Mesuras e Salamaleques da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
Lima Barreto, em Os bruzundangas