O conto democratizou a literatura no Brasil.
É o volkswagen dos gêneros, aquele que pôs a classe média sobre quatro rodas.
Com o triunfo do conto, todos podem pensar em ser escritores, entrar na literatura, ingressar nessa carreira com mais passado que futuro.
A poesia é muito rara, muito difícil, muito sacrificada.
O romance é muito longo, exige capacidade de orquestração, domínio do todo e das partes, fôlego de mergulhador, paciência de beneditino, coisas difíceis de encontrar por aí.
O conto é a solução.
Contar uma história é a maneira mais óbvia de estruturar um texto.
Mas há um infinito de maneiras.
Por que preferir o óbvio ao infinito?
O nascente e crescente público consumidor de textos não-práticos assim o quer.
O tempo anda tão caro e tão escasso, para que complicar a vida das pessoas?
Entendo que muitas coisas estejam se passando sob as espécies de conto: política, conquistas de linguagem, ampliação de mercado.
Mas acredito, com Décio Pignatari, que, no conto, interessa o que não é conto.
Interessa o que é outra coisa: signo, violação, flagrante delito.
A fordiana produção em série de contos obedecendo a uma mesma programação (com variantes insignificantes) que vemos hoje deverá crescer até o processo produzir, por extrema redundância, contradição interna e arrebentar em nova síntese, imediatamente canonizada como a nova ordem.
Fundamental o papel que o conto está desempenhando no sentido de firmar o nome de escritores brasileiros, movimentar o mercado editorial e livreiro.
Nesse sentido, o conto merece o que está acontecendo com ele: está em vias de se transformar em sinônimo de literatura, no Brasil.
Calculo que, para cada vinte novos contistas que surgem, surge um poeta.
Vocações para romancista também são mais raras.
Mas essa nossa emergente prosa de ficção apresenta nível de redundância e banalidade estrutural só comparável ao do soneto no passado.
O conto é o soneto de hoje.
O soneto também foi veículo cômodo e portátil para divulgar e generalizar a prática e o consumo da poesia.
Afora isso, está sendo muito pequeno o contributo do conto para o progresso do texto de imaginação entre nós.
Nossa prosa não aguenta confronto com os latino-americanos, mais atrevidos na concepção e na realização, mais surpreendentes, mais corajosos na inovação.
E a vida, que vocês tanto falam?
Quem escreve como se escrevia há vinte anos atrás sai de livros de literatura, não da vida. Inovar! Aprendam com a vida, que é a mãe inesgotável de processos, formas e estruturas.
Parte da resistência da inteligência letrada ao nosso estado de coisas está se fazendo sob a pele do conto.
Pena que essa resistência se dê, na maior parte, através de conteúdos muito previsíveis, por intermédio de recursos, soluções e efeitos herdados passivamente e não questionados.
Quase não se vê ninguém nas trincheiras da linguagem.
E a cerração da redundância torna mais escura esta noite que sabe Deus quanto tempo ainda temos que sofrer.
-- Paulo Leminski, em depoimento à revista Escrita, 1979.