27.12.09

Matsuo Bashô




Os anos se passam
Uma máscara de macaco
Veste o macaco.


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22.12.09






Ivan Santos, escultura

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29.11.09

Poemas comunes




I

Sospecho que el viento fuerte podría derribar
aquel arbolito recién plantado por la municipalidad
no es que se valla a romper en mil partes por la caída
pero a ninguna forma amable le sienta bien un golpe.


II

La suerte renuncia al señor un día cualquiera
alguien lo atropella con un auto le pasa por arriba
queda tirado en la calle y le roban sus pertenencias
más tarde una ambulancia lo recoge y es llevado
a una cama brillante que hay en el hospital de la zona.
Las sábanas limpias acarician una pila de huesos rotos.


III

El agua de lluvia empalma las veredas
el charco cubre la extensión de la calle
para cruzar la gente arremanga sus pantalones
o camina una cuadra hasta llegar
al puente gris recientemente inaugurado.


IV

Hace varios días murió un perro en la autopista
fue aplastado por un camión que hizo una mala maniobra
los pelos y los huesos siguen pegados en el asfalto
parecen una alfombra marrón que la mujer estándar
compraría para decorar algún rincón del living-comedor.


V

Adentro de la habitación había una sombra
sin embargo me deshice de la imagen tan pronto como pude
la dejé moverse como un fantasma delante del cuerpo
la abandoné como un verso que renuncia la cadencia
o como se abandonan las mascotas en verano
con ese dolor que pronto es compensado
por el mar y la brisa de la playa.


VI

Transito por la calle escuchando la radio
en el camino voy dejando algunos paquetes
hasta los objetos más preciados pueden abandonarse
con un gesto torpe en un tiempo muerto.


Mariana Suozzo

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26.11.09








Joaquim Namorado, extraído do Quartos Escuros.

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21.11.09

Paulo Leminski - "A literatura é a classe dominante dos signos"





Tem dois tipos de poesia. A que contraria expectativas. E a que satisfaz uma demanda. Exemplo da primeira: poesia concreta. Exemplo da segunda: Thiago de Melo, Ferreira Gullar, Carlos Nejar etc.

Quero deixar claro que desejo o mesmo tipo de sociedade que Thiago de Melo deseja. Pelo menos na organização econômica. No terreno estético, porém, a esquerda brasileira, os artistas engajados e alinhados com a transformação da sociedade são o fim da picada.

Jdanovistas, naturalistas (e não realistas, como pensam ser), sectários, populistas, correspondem àquilo que, na URSS, chamou-se proletcult. Em contraposição ao grupo LEF, liderado por Maiakovski, e que defendia a vanguarda como nova arte do proletariado triunfante, a proletcult defendia uma literatura velha, só que com temas operários e populares. Essa literatura velha era o bom romance burguês do século 19, suas formas e técnicas. O poemão e a versalhada.

O problema dos proletcultistas brasileiros (nacional-populistas) é que eles não chegam ao povo, no duro. Como? O povo é analfabeto ou vê TV. Então eles fantasiam tudo na cabeça deles. A presença do povo, a atuação do escritor. Até a revolução. Mas é tudo imaginário. No duro, o que eles querem é vender livros, aparecer, trabalhar na rede Globo e -- last but not the Franz Liszt! -- GANHAR PODER. A arte que eles fazem fica dentro da intelectualidade pequeno-burguesa mesmo, em noites de autógrafos.

Versinhos participantes ingênuos são hoje a classe dominante da poesia brasileira. Com esse país que taí, realmente a raiva é tanta que tudo que a gente puder jogar contra esse sistema a gente joga: até sonetos! A merda é que esses versinhos participantes, como linguagem, já foram feitos, estão consagrados e fazem parte do Panteão burguês: é o Drummond da Rosa do Povo de 1940. Agradam, não agridem. Aquela poesia do Drummond só era nova para os padrões brasileiros. Na realidade, no mundo inteiro, estavam fazendo aquele tipo de poesia: Neruda, Éluard etc. Aliás, até o nome do livro "Rosa do Povo" vem de fora. Bem antes, Éluard publicara um livro de poemas: "La Rose Publique".

Essa poesia participante de hoje é a diluição intensiva da poesia antifascista da época da Segunda Guerra e da Resistência. Quer dizer, os "revolucionários" estão com o relógio poético atrasado quase cinquenta anos!

Eu não acredito nos revolucionarismos de contistas realistas. Os homens de letras engajados que se vê por aí são oportunistas. Eles jogam numa dupla: se a revolução ocorrer, eles estarão muito bem, nos empregos e nos compêndios. Se ela demorar, sempre tem uma vaga de roteirista na TV Globo ou uma cadeira dando sopa na Academia Brasileira de Letras.

A revolução que esses caras querem é bem pequenininha.

Eu quero uma grande. A grande. A total.

O Satori Coletivo.

O homem de Guevara, além de todas as alienações.

Das literárias, inclusive.

Tudo pode ser recuperado via moda. Revival. Nostalgia. Nosso tempo é o tempo da recuperação da informação. A multiplicação das técnicas de reprodução e o progresso das técnicas de registro tornam todas as épocas contemporâneas, no terreno intelectual, cultural e artístico. A crise da poesia é o momento em que a poesia é atingida pelo impacto dos outros códigos (visuais, musicais, gestuais etc.). E seu campo de possibilidades se multiplica pelo número de códigos com os quais pode cruzar. A rua manda na página. A rua com seus poderes múltiplos. A maré das ruas bate na porta das casas, cerca a página. Na página, o passado se defende. A página é a casa. A memória. O sentido. Os significados. Na rua, nascem sempre os novos significados.

Dever do poeta é manter acesa a chama e a ideia de poesia. A noção de uma atividade radical, crítica e utópica. Na linguagem. Não apenas conteúdos edificantes e pios temas veiculados através de um discurso convencional e recebido passivamente. Um poeta deve, sobretudo, agenciar os meios para poder continuar sendo poeta. Até os 21 anos, todo mundo é poeta. O foda é depois. Daí você tem de provar. Poucos resistem. Noventa e nove por cento dos que fazem poesia hoje, dentro de dez anos estarão fazendo outra coisa. Poesia não é brincadeira. É loucura mesmo. É nadar contra a corrente. Produzir o antidiscurso. E, principalmente, evitar coisas como o sucesso e a consagração. Aquilo que o sistema canoniza como boa poesia é apenas a poesia que ele consegue vender. Edições bem-sucedidas não fazem a boa poesia. Tem que segurar a barra sem parar. Senão acaba desfrutável como Drummond. Ou acadêmico como João Cabral.

Toda poesia que é poesia mesmo é experimental. Poesia de invenção. Todo poeta tem estes momentos. Você os encontra em Bandeira. Em Drummond. Nos músicos poetas, Gil, Caetano, Chico. São eles, esses momentos, que valem. O resto é moldura. O recheio de prosa sem o que não se vive.

Os poetas das mais novas gerações são às vezes naturalmente "experimentais". Experimental é a atitude que contesta e questiona as formas do passado, a poesia desautomatizada, a que pratica a subversão de nos despertar da hipnose das formas tradicionais, que a burguesia mima, promove em suas universidades, premia em seus Concursos porque FORMAS TRADICIONAIS VENDEM. A ordem literária exprime a mesma ordem que reprime e explora o operário. E os versinhos que se dizem a favor dos operários vendem que nem pão: um fenômeno mercantil, como qualquer outro. O poemão e a versalhada trazem na pele a marca de suas origens burguesas. E até latifundiárias... Com temas populistas, são caridade cristã. Alívio da consciência pesada do intelectual da classe média.

Não há dúvida: quanto mais poético, mais político. E o experimental é a poesia mais antiprosa. Experimental é o risco. Não concebo poesia sem risco.

O maior inimigo da poesia é a literatura. A literatura é a legalidade poética. Ora, a poesia -- se tem um sentido -- é ser uma atividade ilegal, marginal, criminosa, em termos de linguagem. Então, viva a poesia! Abaixo a literatura!

A poesia se manifesta em experiências falhas. Discutíveis. Inclassificáveis. O discurso automatizado que se pratica por aí, com o nome pomposo de P-p-p-oesia, só é bom para as editoras e academias, o aparato repressivo do texto.

Poesia é lógica e linguagem insurretas.

Poesia é extremismo.

Poesia média é prosa. Empilhada em versinhos. Ou acondicionada em estrofes. O sistema insiste em dizer que sabe o que é poesia.

Mentira.

Pergunte aos poetas.

Ninguém sabe o que é poesia.

Ainda bem.



(Paulo Leminski, em artigo escrito para a revista Gandaia, n.6, abril de 1980.)




14.11.09






Raptado do Marbles.

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31.10.09

Bibliocleptomania





nome: Eliza Humphries
idade: 10 anos
profissão: bordadeira
crime: roubar um livro
sentença: 2 semanas de trabalhos forçados
e 3 anos de reformatório
época: final do século 19, Inglaterra.

--

27.10.09



nem feliz
nem infeliz: à espera
de tudo
e de nada





versos de Pedro da Silveira

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13.10.09


Nunca le tomes
la palabra
a la noche.
Es palabra de agua
y tú conoces las mareas






POÉTICA


Escucho los ladridos, distintamente,
pero nada sé de ese perro que arde
ni del dibujo de su huella por la tierra abrasada.


Reconozco a los que lo han mirado
frente a frente. Escucho sus historias.
He pasado varias veces la mano
ante sus ojos blancos desde entonces
y he sentido uma llama calentarme los dedos.


Pero yo sólo escucho los ladridos.
Incluso cuando salen de mi boca.
Nada sé de poesia.



Vanesa Pérez-Sauquillo

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30.7.09

Wislawa Szymborska




Alguns gostam de poesia


Alguns —
quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve
e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.


Gostam —
mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
gosta-se de fazer festas a um cão.


De poesia —
mas o que é a poesia?
Algumas respostas vagas
já foram dadas,
mas eu não sei e não sei, e a isto me agarro
como a um corrimão providencial.

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28.7.09

Kaváfis




Terá, quando muito, vinte e dois anos.
E no entanto estou certo de que, há quase tantos
anos passados, esse mesmo corpo eu desfrutei.

Não é, de modo algum, uma ilusão erótica.
E somente há pouco foi que entrei no cassino,
nem tive tempo de beber demais.
O mesmo corpo eu desfrutei.
Se não me lembro onde - não quer dizer que seja
esquecimento.

Ah, agora sim, que se sentou ali, na mesa ao lado,
reconheço cada movimento seu - e, para além das roupas,
eu os revejo, nus, os membros tão amados.



Kaváfis, "A mesa ao lado". Imagem: Martin Fuchs.
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25.7.09

Blas de Otero




LO FATAL

Entre enfermedades y catástrofes
entre torres turbias y sangre entre los labios
así te veo así te encuentro
mi pequeña paloma desguarnecida
entre embarcaciones con los párpados entornados
entre nieve y relámpago
con tus brazos de muñeca y tus muslos de maleza
entre diputaciones y farmacias
irradiando besos de la frente
con tu pequeña voz envuelta en un pañuelo
con tu vientre de hostia transparente
entre esquinas y anuncios depresivos
entre obispos
con tus rodillas de amapola pálida
así te encuentro y te reconozco
entre todas las catástrofes y escuelas
asiéndome el borde del alma con tus dedos de humo
acompañando mis desastres incorruptibles
paloma desguarnecida
juventud cabalgando entre las ramas
entre embarcaciones y muelles desolados
última juventud del mundo
telegrama planchado por la aurora
por los siglos de los siglos
así te veo así te encuentro
y pierdo cada noche caída entre alambradas
irradiando aviones en el radar de tu corazón
campana azul del cielo
desolación del atardecer
así cedes el paso a las muchedumbres
única como una estrella entre cristales
entre enfermedades y catástrofes
así te encuentro en mitad de la muerte
vestida de violeta y pájaro entrevisto
con tu distraído pie
descendiendo las gradas de mis versos.

-

12.7.09

Matsunaga Teitoku




hana yori mo
dango ya arite
kaeru kari


melhor do que flores
é comer bolinhos -
partem os gansos selvagens



Matsunaga Teitoku (1571-1653)-

7.7.09

Rodrigo de Souza Leão (1965-2009)




Fisicamente
a noite
é só um segundo




Eu sou um museu
Tenho uma filha com nome de furacão
Uma mulher com nome de vulcão
Uma farmácia particular
Um corpo pra me distrair
E dois copos de vidro
Um eu quebro
E brindo com o outro
Dentro do meu museu há um zoológico
Há um parque de diversão
Um cidadão jogando paciência
E um cientista se fingindo de importante
Há vários covardes como eu
Alguém bebe leite quente
Palavras se devoram dentro da boca
Há um homem vestido de burro
Um burro vestido de homem
Mandei tudo a merda
Mas um pouco de mim foi junto

*

Sou o melhor que posso
Possuo o melhor que sou

De mim sei não restará nada
Nenhum caroço, nenhuma empada

Às vezes me jogo do sexto andar
Às vezes me jogo do quinto

Mas nunca passo do chão
Do chão onde um fogo extinto

De um mendigo que me acudiu
É aceso toda noite

Toda noite um anjo cai
E um outro abismo cospe labaredas

Talvez o dragão seja hoje
O melhor amigo do fogo

Talvez seja o deus pra quem rogo
O último ateu suicida

*

Tudo ficou dourado. O céu dourado.
O Cristo dourado. A ambulância dourada.
As enfermeiras douradas tocavam-me com suas mãos douradas.
Tudo ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta bic azul, os trogloditas dos enfermeiros. Tudo ficou amarelo. Foi quando vi Rimbaud tentando se enforcar com a gravata de Maiakovski e não deixei.
Pra que isso Rimbaud? Deixa que detestem a gente. Deixa que joguem a gente num pulgueiro. Deixa que a vida entre agora pelos poros. Não se mate irmão. Se você morrer não sei o que será de mim. Penso em você pensando em mim.
Rimbaud tudo vai ficar da cor que quiser.
Aqui não dá pra ver o mar. Mas você vai sair daqui.
Tudo ficou verde da cor dos olhos de meu irmão e da cor do mar. Do mar. Rimbaud ficou feliz e resolveu não se matar.
Tudo ficou Van Gogh. A luz das coisas foi modificada.
Enfim me deram uns óculos.
Mas com os óculos eu só via as pessoas por dentro.

*

QUÍMICA CEREBRAL

Bom dia Lexotan
Bom dia Prozac
Bom dia Diazepan
Bom dia coquetel
Bom dia amplictil
Bom dia fenergan
Bom dia sossega-leão
Bom dia eletrochoque
Bom dia Piportil
Bom dia Lorax
Bom dia Litium
Bom dia Haldol

Boa noite Rodrigo


*

O poeta é um ladrão
Rouba tão descaradamente
Que chega a dizer que é seu
O poema de outro indigente


*

O meu poema burilado
É como um pum molhado


Ele não fede nem cheira
Gosto de Manuel Bandeira


*

LOBOTOMIA

Na
Caixa
Craniana
Não há nada

Só o nada como artefato

Nada
Um peixe
E suas barbatanas

Homens dão viradas olímpicas
Nadam
E o nada continua ali

Vazio
Entre duas mãos
E o bisturi

*

INTERNO RETORNO

Eu ando em círculos e paro:
às vezes na metade do círculo.

O círculo é só um movimento
e o movimento é uma onda.

O círculo. O movimento. A onda.
São todos tão redondos assim

como quase um ovo que nunca
consegui colombar em pé.

Colombo é um nome cheio e redondo.
Desses que circula em círculos.

Desses que o mar traz para descobrir:
o movimento o Círculo a onda.

Tudo que faço é mesmo circular:
um ponto qualquer no infinito.

Um ponto também é um círculo.
Tudo é círculo, onda e mar.

Apenas alguma sarda que tinha
não era totalmente redonda.

Por que um círculo precisa
de um compasso? A Terra

nua no espaço é onda é mar
é círculo: sou eu no meu cubículo.

*

Todo mundo caga
regras também

*


Às vezes eu penso, mas só às vezes.
Quando alguém morre, eu fico triste porque não sei pra onde esta pessoa, objeto ou coisa vai.
O fato de não ter certeza é que me incomoda.
Quando eu morrer, não fique triste só porque não sabe para onde eu vou.
Fique triste porque gosta de mim e sentirá minha falta. Mesmo sendo você alta voltagem. Sentirei sua falta também. Estarei no cemitério do Caju e lá sediado esperarei as flores que sempre quis lhe dar.

*


. o lince corre das listras vestindo meias coloridas.

--
Os textos de Rodrigo foram retirados do seu Lowcura, um blog para se ler de janeiro a dezembro. Poeta, músico e jornalista, Rodrigo e eu ainda tateávamos uma amizade à distância começada neste ano. Sua poesia espontânea, angustiada e ao mesmo tempo lúdica se espalha pela rede, por seus livros, onde ele permanecerá vivo para sempre.

--

6.7.09

A lição do amigo



S. Paulo 19-VII-28
Carlos Drummond

Pegue na pena e me mande num papel qualquer, imediatamente, a direção exata da sua casa. É pra mandar e não se perder um trabalho de tricô que mandei fazer prá filhinha de você, pela famosa Dona Ana Francisca, da qual você ouvirá falar no Macunaíma. Você não entende dessas coisas porque jamais não se preocupou com artes aplicadas, mas se convença sob minha palavra-de-honra, que a lã trabalhada por Dona Ana Francisca fica uma obra-prima de boniteza e bom-gosto.

Quanto ao caso do Diário da Noite daqui, não sei o que aconselhar você. Aceitar como experiência me parece incontestável que você deve. O jornal é mais ou menos neutro e já pertence ao Chatô. Nessa neutralidade um pouco dúbia talvez seja possível pra você não fazer muitos sacrifícios. Por outro lado quem sabe se o contato com uma cidade de trabalho, no meio nosso dum trabalho cotidianizado e corajoso, você tem coragem pra uma organização e abandona essa solução a que Macunaíma chegou só depois de muito gesto heróico e muita façanha: a de viver o brilho inútil das estrelas do céu. Você caiu num estado de religiosidade extática lamentável. Você está vivendo depressa por demais, Carlos Drummond de Andrade, e assim não serve. Você já chegou na decrepitude final sem ter vivido. A história de você é chocha. Uma precariedade lamentável de gestos esboçados, de vontades incondensadas. A isso no geral os abúlicos inteligentes chamam de "vida interior". Desculpe, mas botei nessa frase uma ironia feroz. Vida interior todos têm. Não é a inação exterior que dá vida interior mais intensa, não.

Pois venha tentar S. Paulo, meu Carlos. Não garanto nada. Não aconselho nada. Venha por você, se tiver coragem. Reflita que você tem uma imundície de responsabilidades que vai assumindo sem organização pra dar conta delas. Tirou uma mulher da casa dos pais, está com uma filha em casa, estudou. São três responsabilidades bem claras e só falo nelas porque não posso me alongar mais. Tome um dia e faça retiro espiritual. Repare que o que você está fazendo, um homem que deseja ter caráter não faz. Venha pois tentar dois meses sozinho. Talvez que uma intimidade mais objetiva com minha felicidade possa organizar você. Hei de achar jeito pra conversarmos bastante. Você aqui não está sozinho. Você entra e sai na minha casa a hora que quer. Se eu estiver trabalhando não deixo o trabalho por causa de você. Você fica mexendo no que quiser. Se quiser dormir durma. Se quiser ir à merda, eu não deixo. Se vier com desconfiança e cerimônias, te dou um bruto dum soco e dois insultos de inhapa. E tenho um coração de ouro, com muita paciência e todos os perdões pra você.

Abraço os três.

Mário


3.7.09

Freud e a hipnose em ação




Olhe nos meus olhos e repita comigo:

Seus sintomas vão desaparecer, você vai comer com apetite
e dormir tranquilamente a noite inteira.

Seus sintomas vão desaparecer, você vai comer com apetite
e dormir tranquilamente a noite inteira.

Seus sintomas vão desaparecer, você vai comer com apetite
e dormir tranquilamente a noite inteira.





21.6.09

Cesare Pavese




Como um leve jantar posto à clara janela.
Já está escuro no quarto e se vê pelo céu.
As estradas tranquilas lá fora conduzem,
em um breve percurso, aos campos abertos.
Como e olho pro céu -- quiçá quantas mulheres
fazem o mesmo a esta hora -- e o meu corpo está calmo;
o trabalho atordoa o meu corpo e as mulheres.

Terminado o jantar, as estrelas virão passear
sobre a vasta planície da terra. As estrelas têm vida,
mas não valem sequer as cerejas que como sozinho.
Vejo o céu, mas sabendo que em meio aos telhados
umas luzes já brilham e, por baixo, começam ruídos.
Com um trago o meu corpo degusta esta vida
das florestas e rios e se sente isolado de tudo.
Basta um curto silêncio e as coisas se assentam
em seu lócus real, como assenta o meu corpo.

Meus sentidos isolam as coisas que tocam
e as aceitam impassíveis: rumor de silêncio.
Sou capaz de entender cada coisa no escuro,
como sei que o meu sangue percorre estas veias.
A planície é um grande regato entre a relva,
um repasto de todas as coisas. Imóveis as plantas
e os minérios existem. Escuto o alimento nutrir
minhas veias de tudo o que vive no vale.

Não importa essa noite. O quadrante do céu
me sussurra uma cópia de sons, e uma estrela miúda
se debate no vácuo distante dos pastos
e das casas, discorde. Não basta a si mesma
e precisa de muitas parceiras. No escuro, sozinho,
o meu corpo está calmo e se sente supremo.



Cesare Pavese, "Mania de Solidão".


--

1.5.09

Cristina Peri Rossi



PARA QUÉ SIRVE LA LECTURA


Me llaman de una editorial
y me piden que escriba
cinco folios sobre la necesidad de la lectura

No pagan muy bien
¿quién podría pagar bien por un tema así?
pero de todos modos
necesito el dinero

así que enciendo el ordenador y me pongo a pensar
sobre la necesidad de la lectura
pero no se me ocurre nada

es algo que seguramente sabía cuando era joven
y leía sin parar
leía en la Biblioteca Nacional
y en las bibliotecas públicas

leía en las cafeterías
y en la consulta del dentista

leía en el autobús y en el metro

siempre andaba mirando libros

y me pasaba las tardes en las librerías de usados
hasta quedarme sin un duro en el bolsillo

tenía que volver a pie a casa

por haberme comprado un Saroyan o una Virginia Woolf

Entonces los libros parecían la cosa más importante de la vida

fundamental

y no tenía zapatos nuevos
pero no me faltaba un Faulkner o un Onetti
una Katherine Mansfield o una Juana de Ibarbourou


ahora la gente joven está en las discotecas
no en las bibliotecas

yo me hice una buena colección de libros
ocupaban toda la casa

había libros en todas partes
menos en el retrete

que es el lugar donde están los libros
de la gente que no lee

a veces tenía que seguirle durante mucho tiempo
las huellas a un libro que había salido en México
o en París

una larga pesquisa hasta conseguirlo

No todos valían la pena
es verdad
pero pocas veces me equivoqué
tuve mis Pavese mis Salinger mis Sartre mis Heidegger
mis Saroyan mis Michaux mis Camus mis Baudelaire
mis Neruda mis Vallejo mis Huidobro
para no hablar de los Cortázar o de los Borges

siempre andaba con papelitos en los bolsillos
con los libros que quería leer y no encontraba

por allí andaban los Pedro Salinas y los Ambrose Bierce
la infame turba de Dante

pero ahora no sabía decir para qué maldita cosa
servía haber leído todo eso

más que para saber que la vida es triste

cosa que hubiera podido saber sin necesidad de leerlos


Cuando habían pasado cinco horas yo todavía no había escrito
una sola línea
así que me puse a escribir este poema
Llamé a los de la editorial
y les dije creo que para lo único que sirve
la lectura
es para escribir poemas

no puedo decirles más que eso

entonces me dijeron que un poema no servía,
que necesitaban otra cosa.
-

17.4.09

O bibliófilo aprendiz




























"...em 1902, a Livraria Garnier resolveu publicar uma segunda edição das Poesias completas de Machado de Assis. Nessa época, quase todos os livros dessa editora eram impressos na França e, apesar do cuidado com que era feita a revisão, escapavam erros. Mas nenhum tão grave quanto o que apareceu nesse livro. No prefácio (p. VI), Machado escreveu "...cegara o juízo...". O tipógrafo francês trocou o e por um a! Imagine-se a cara que deve ter feito o pudibundo autor vendo esse erro borrando sua obra! O pior é que só se percebeu o engano quando já estavam vendidos alguns exemplares. No meio da consternação geral, Everardo Lemos, empregado da livraria, propôs raspar com todo o cuidado a fatídica letra a, escrevendo no lugarzinho a letra e com nanquim. Assim foi feito para sossego de todos. Mais tarde, Garnier mandou reimprimir a folha contendo o fatal engano e substituí-la em todos os exemplares.


Existem, portanto, três estados dessa edição das Poesias completas de Machado de Assis. O primeiro com a 'palavra feia', o segundo com a correção feita à mão e o terceiro sem 'palavra feia'. Inútil dizer que os exemplares mais raros e procurados são os que trazem a palavra muito feia."






Rubens Borba de Moraes, em O bibliófilo aprendiz, 1965, Companhia Editora Nacional, São Paulo. Louvável a reedição deste livro em 2005 pela Casa da Palavra e Briquet de Lemos Livros, apesar da revisão descuidada e de não registrar a informação de que o livro teve sua primeira edição em 1965.





20.3.09

Diário de Marilyn Monroe




Terça-feira, 8. Ele me deu um presente. Um jogo de xadrez. Um jogo de reis e de bispos. Todas as peças podem matar, prender. A mais forte é a rainha. O rei morre logo no início. Não sei para quem é o meu jogo. Avanço minhas peças no escuro.

Não gosto de escrever. Preciso encontrar outra coisa. Talvez goste demais de ler. Os livros, aqueles de que gosto de verdade, na primeira vez que os leio tenho a impressão de que é como se os relesse, como se os já tivesse lido. Um pouco como quando se conhece certas pessoas, com a certeza de que na verdade as reencontra. Hoje dei com esta frase de Kafka: "O capitalismo não é apenas um estado da sociedade, é um estado de alma." Os livros, não os termino. Não gosto das últimas páginas. Das últimas palavras. Das últimas tomadas. Das últimas sessões.


Marilyn Monroe, 8 de maio de 1962, em um caderno de anotações.

--

29.1.09

Bocage

Epigrama setecentista



Se me lembro, Élia, tiveste
De belos dentes a posse:
Numa tosse dois se foram,
Foram-se dois noutra tosse.

Segura noites, e dias
Podes tossir a fartar;
Podes, que tosse terceira
Já não tem que te levar
-

22.1.09

Blaise Cendrars



SÃO PAULO


Adoro esta cidade
São Paulo está de acordo com meu coração
Nenhuma tradição
Nenhum preconceito
Nem antigo nem moderno
Só conta este apetite furioso esta confiança absoluta este
otimismo esta audácia de trabalho este labor esta
especulação que fazem construir dez casas por hora de
todos os estilos ridículos grotescos belos grandes
pequenos norte sul egípcio ianque cubista
Com a única preocupação de acompanhar as estatísticas
prever o futuro o conforto a utilidade mais valiosa e de
atrair maior imigração
Todos os países
Todos os povos
Gosto disso
As duas ou três velhas casas portuguesas que sobraram são
faianças azuis



Blaise Cendrars

--

21.1.09




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9.1.09

Apollinaire




Estás no jardim de um albergue perto de Praga
Te sentes felicíssimo há uma rosa sobre a mesa
E observas em vez de escrever teu conto em prosa
O inseto que dorme no coração da rosa
Espantado de ver-te desenhado nas ágatas de são Vito
Estavas triste de morte no dia em que lá te viste
Te pareces com Lázaro atordoado pela luz do dia
Os ponteiros do relógio do bairro judeu andam para trás
E também tu recuas na vida lentamente
Ao subir o Hradchin e à noite ao escutar
Nas tabernas cantarem canções tchecas

Eis-te em Marselha no meio das melancias

Eis-te em Coblenz no Hotel do Gigante

Eis-te em Roma sentado à sombra de uma nespereira do Japão

Eis-te em Amsterdam com uma jovem que achas bela e que é feia
E que se vai casar com um estudante de Leyden
Ali se alugam quartos em latim Cubicula locanda
Não me esqueci passei três dias lá e outros tantos em Gouda

Estás em Paris no juiz de instrução
Detém-te como se fosses criminoso
Fizeste viagens dolorosas e alegres
Antes de te dares conta da mentira e da idade
Sofreste a dor do amor aos vinte e aos trinta
Vivi como um louco perdi meu tempo
Não ousas mais olhar as mãos e a cada momento gostaria de soluçar
Sobre ti sobre aquela que amo sobre tudo o que te espantou

Olhas com olhos cheios de lágrimas esses pobres emigrantes
Acreditam em Deus e rezam as mulheres amamentam as crianças
Enchem com seu cheiro o hall da estação de Saint-Lazare
Têm fé em sua estrela como os reis magos
Esperam ganhar dinheiro na Argentina
E voltar para sua terra após terem feito fortuna
Uma família carrega uma colcha vermelha como a gente carrega o coração



(Apollinaire, em fragmento do poema "Zona". Tradução de Mário Faustino.)