S. Paulo 19-VII-28
Carlos Drummond
Pegue na pena e me mande num papel qualquer, imediatamente, a direção exata da sua casa. É pra mandar e não se perder um trabalho de tricô que mandei fazer prá filhinha de você, pela famosa Dona Ana Francisca, da qual você ouvirá falar no Macunaíma. Você não entende dessas coisas porque jamais não se preocupou com artes aplicadas, mas se convença sob minha palavra-de-honra, que a lã trabalhada por Dona Ana Francisca fica uma obra-prima de boniteza e bom-gosto.
Quanto ao caso do Diário da Noite daqui, não sei o que aconselhar você. Aceitar como experiência me parece incontestável que você deve. O jornal é mais ou menos neutro e já pertence ao Chatô. Nessa neutralidade um pouco dúbia talvez seja possível pra você não fazer muitos sacrifícios. Por outro lado quem sabe se o contato com uma cidade de trabalho, no meio nosso dum trabalho cotidianizado e corajoso, você tem coragem pra uma organização e abandona essa solução a que Macunaíma chegou só depois de muito gesto heróico e muita façanha: a de viver o brilho inútil das estrelas do céu. Você caiu num estado de religiosidade extática lamentável. Você está vivendo depressa por demais, Carlos Drummond de Andrade, e assim não serve. Você já chegou na decrepitude final sem ter vivido. A história de você é chocha. Uma precariedade lamentável de gestos esboçados, de vontades incondensadas. A isso no geral os abúlicos inteligentes chamam de "vida interior". Desculpe, mas botei nessa frase uma ironia feroz. Vida interior todos têm. Não é a inação exterior que dá vida interior mais intensa, não.
Pois venha tentar S. Paulo, meu Carlos. Não garanto nada. Não aconselho nada. Venha por você, se tiver coragem. Reflita que você tem uma imundície de responsabilidades que vai assumindo sem organização pra dar conta delas. Tirou uma mulher da casa dos pais, está com uma filha em casa, estudou. São três responsabilidades bem claras e só falo nelas porque não posso me alongar mais. Tome um dia e faça retiro espiritual. Repare que o que você está fazendo, um homem que deseja ter caráter não faz. Venha pois tentar dois meses sozinho. Talvez que uma intimidade mais objetiva com minha felicidade possa organizar você. Hei de achar jeito pra conversarmos bastante. Você aqui não está sozinho. Você entra e sai na minha casa a hora que quer. Se eu estiver trabalhando não deixo o trabalho por causa de você. Você fica mexendo no que quiser. Se quiser dormir durma. Se quiser ir à merda, eu não deixo. Se vier com desconfiança e cerimônias, te dou um bruto dum soco e dois insultos de inhapa. E tenho um coração de ouro, com muita paciência e todos os perdões pra você.
Abraço os três.
Mário