28.4.04


A linguagem do cabelo

No Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, descubro e me especializo na linguagem do cabelo. Obra de referência indispensável para quem estuda literatura folclórica ou simplesmente gosta de saber de histórias, lendas, fábulas, mitos e crendices que o Brasil herdou d'África e de Portugal, o Dicionário registra lá que, no início do século XX, a forma de arranjar a cabeleira feminina possuía um vocabulário próprio cuja significação amorosa o homem(namorado) entendia perfeitamente. Vejamos alguns significados dessa linguagem cifrada: 1) cabelo aparado na testa, com franja: "Estou feliz de te ver." 2) coque para trás: "Está perdendo seu tempo comigo." 3) coque no alto da cabeça: "Não consigo te tirar do pensamento." 4) cabelo dividido à esquerda: "Não." 5) cabelo dividido à direita: "Sim." 6) cabelo dividido no meio: "Sou tua", ou "Confio em ti". 7) com as orelhas descobertas: "Espero cartas, notícias, quero falar-te." 8) com a testa descoberta: "Não te quero", ou "Tenho outro alguém". 9) todo o cabelo puxado para trás: "Não tenho compromisso." 10) muitas tranças: "Há obstáculos demais ao nosso amor." Há muitas outras tradições referentes ao cabelo. Mulheres solteiras costumavam usar cabelos soltos e compridos. As casadas, cabelos presos. As viúvas, em geral a cabeça coberta com uma touca. Já os cabelos cortados curtos significavam para a mulher renúncia completa à vaidade, como a das freiras e monjas. Isso sem falar na punição de mulheres acusadas de "vida dissoluta" e que consistia em rapar-lhes a cabeça. Uma punição também aplicada aos homens acusados de felonia, falsidade e covardia. No caso dos homens, ter cabelos no peito era sinônimo de valentia. E para quem exercia a bruxaria, os cabelos eram material precioso para a realização de feitiços. Por exemplo, uma porção de cabelo da cabeça seria usada para enlouquecer ou matar o desafeto. Um punhadinho de pelos púbicos, anularia a virilidade do alvo. Crenças, cada época com as suas. 



24.4.04

Diatribe


Dois zoilos mui completos deste mundo,
Dois zoilos há terríveis e zelosos,
Que estando sem fazer, mui ociosos
Só tratam dum falar nauseabundo.

Eu sei mui bem seus nomes -- não confundo
Com esses bem sensatos, talentosos,
Com esses lidadores mui briosos
Que têm estudo imenso e bem profundo!

Mas ah! pra que tempo hei-de gastar
Com quem só vive imerso na caligem
D’inveja torpe e vil a esbravejar!

Isto, meus amigos, é impigem
Que quanto se procura mais coçar
Tanto e tanto mais só dá prurigem!



Escravocratas


Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados -- bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar -- formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos a espinha -- enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário --
Da branca consciência -- o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido -- audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro -- ouvindo-vos urrar!


Cruz e Sousa


19.4.04

Hans Magnus Enzensberger



Giovanni de' Dondi, de Pádua,
gastou uma vida
para construir um relógio.

Um relógio sem igual, insuperado
durante quatrocentos anos.
Mecanismo múltiplo,
rodas dentadas elípticas;
ligadas por engrenagens articuladas,
e o primeiro escapo fusiforme:
uma construção inaudita.

Sete mostradores
indicam a situação do firmamento
e as revoluções silenciosas
de todos os planetas.
Um oitavo mostrador,
o mais discreto de todos,
marcava a hora, o dia e o ano:
A.D. 1346.

Trabalhado à mão pelo próprio:
uma máquina celestial,
sem finalidade e plena de sentido, como os Trionfi,
um relógio de palavras
construído por Francesco Petrarca.

Mas por que perdeis tempo
com o meu manuscrito,
se não sois capazes
de me imitar?

Duração do dia solar,
nós da órbita da Lua,
festas móveis.

Uma máquina de calcular e ao mesmo tempo
uma reprodução do céu.
Em latão, em latão.
Nós continuamos a viver sob esse céu.

A gente de Pádua
não olhava para o relógio.
As carroças da peste rolavam pelas calçadas.
Os banqueiros
saldavam as suas contas.
A comida escasseava.

A origem daquela máquina
é problemática.
Um computador analógico.
Um menhir. Um astrário.
Trionfi del tempo. Restos.
Sem finalidade e plenos de sentido
como um poema de latão.

Nenhum Guggenheim mandava
cheques a Francesco Petrarca
no primeiro dia do mês.
De' Dondi não tinha contrato
com o Pentágono.

Outros predadores. Outras
palavras e rodas. Mas
o mesmo céu.
Nós continuamos a viver
nessa Idade Média.




17.4.04

Dostoiévski subterrâneo


Sou um homem doente... Um homem despeitado. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo absolutamente nada da minha doença, nem sei ao certo do que sofro. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Além disso, sou supersticioso ao extremo; o suficiente, ao menos, para respeitar a medicina. (Tenho bastante instrução para não ser supersticioso, mas sou.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Mas eu compreendo. Está claro que não vos saberei explicar a quem exatamente estarei prejudicando, nesse caso, com a minha raiva; sei muito bem que aos médicos não causo dano algum por deixar de consultá-los; percebo melhor do que ninguém que, com tudo isto, o único a sair perdendo sou eu. Mas, seja como for, se não me trato é por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais! (...) Não consegui chegar a ser coisa alguma, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem homem de bem nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias no meu canto, escarnecendo de mim mesmo com o inútil e despeitado consolo de que um homem inteligente não pode vir a ser nada de sério e de que só o idiota o consegue. Sim, um homem inteligente do século XIX precisa e está moralmente obrigado a ser, em essência, uma criatura sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, é fundamentalmente uma criatura limitada. Esta é a convicção dos meus quarenta anos. Tenho agora quarenta anos, e quarenta anos são toda uma vida, são a mais irremediável velhice. Viver mais de quarenta anos é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? -- respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-vos quem: os idiotas e os inúteis. Vou dizer isto na cara de todos esses velhos respeitáveis de cabeleiras prateadas e perfumadas! Vou dizê-lo na cara de todo mundo! Tenho direito de falar assim, porque eu mesmo viverei até os sessenta. Até os setenta! Até os oitenta!... Um momento! Deixai-me tomar fôlego...


Dostoiévski, em Zapíski iz podpólia (Memórias do Subterrâneo, Notas do Subterrâneo ou Memórias do Subsolo), 1864.

14.4.04

escrevendo

Larguei a mania de escolher palavras. Qualquer uma serve para precipitar o pensamento. O que vale não é o pensamento? Aquilo que se desprega do mais íntimo e revoluciona as sensações e se expande como uma bolha elástica e se funde com o silêncio e, por fim, denuncia a miséria de estar vivendo? Vou escrever umas bolhas. Você não pode mais me impedir.


Jorge Pieiro

7.4.04

Maria Gabriela Llansol



a letra com sangue entra



É a minha própria casa
mas creio que vim fazer
uma visita a alguém.

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Sentada
no adro, vejo a igreja de São Martinho aberta
mas tão aberta
que a Física explode.

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De hoje em diante já não consigo separar
a leitura da escrita. Se pudesse olhar
o texto a produzir-se,
voltaria de novo a ler.

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Só depois de escrito percebemos
que tudo se passou no futuro.
O que eu vivi, tão imperfeitamente,
virá mais perfeitamente ao coração legente,
eis porque lhes escrevo.




6.4.04



End


I opened the window of my hotel room and the
December wind
got sucked across the floor
under the door to the
hallway.
It made an eerie sound.
Creepy and slow.

On the TV, they advertised
GI Junkie and GI Judas,
complete with
backstabbing action. I'm
living to see the destruction
of
everything holy, everything
hopeful, everything bearded
and
everything that ever meant
anything.

Christmas has become a
media event without
consequences. Our
children will suffer long after
the snow covered ground
covers us all.


Michael Madsen