4.2.14

O interminável processo sobre os inéditos de Kafka



Até sua morte em 1924, aos 40 anos, Frank Kafka publicou apenas algumas das grandes obras pelas quais é lembrado e seu falecimento praticamente não foi notado. Havia certo número de contos, incluindo um fino volume contendo Um artista da fome e A metamorfose, mas os grandes romances pelos quais é reverenciado não haviam sido publicados, pela simples razão de que ele não queria que fossem. Ele deixou instruções explícitas a seu querido amigo (e também advogado) Max Brod sobre o que fazer com o material: “Caro Max, meu último pedido é que tudo que deixo para trás [...] na forma de diários, manuscritos, cartas (minhas e de outros), rascunhos etc., seja queimado sem ser lido.” Na verdade, perto do fim da vida, o próprio Kafka queimou alguns de seus trabalhos, e podemos apenas especular por que deixou a maior parte a cargo de Brod quando poderia tê-los destruído por si mesmo.
Era um inequívoco pedido final e Brod, para seu grande crédito e talvez intuindo a ambivalência de Kafka em relação ao assunto, decidiu ignorá-lo. Durante os dez anos seguintes, ele preparou os manuscritos para publicação, com O processo (1925), O castelo (1926) e Amerika (1927) – provavelmente as obras pelas quais o autor é mais conhecido e das quais derivou apropriadamente o adjetivo “kafkiano” – surgindo em edições alemãs (o idioma em que foram escritos).
[...] temos de retornar a 1939, quando, com os nazistas marchando em direção a Praga, Max Brod partiu apressadamente para a Palestina, levando consigo tudo o que mais prezava. Ao chegar, continuou sua prolífica carreira como escritor, envolveu-se com o teatro e se estabeleceu em uma vida aparentemente segura e tranquila. Tanto quanto se pôde averiguar, ninguém fora de seu círculo imediato sabia que ele trouxera consigo duas valises cheias de material inédito de Franz Kafka.
O que havia nas valises? Por que ele escolheu não revelar seu conteúdo? Quão importantes eram os documentos? Brod não deixou respostas a essas perguntas. Deixou, contudo, o próprio conteúdo das valises, que, após sua morte em 1968 (com sua esposa o tendo precedido), tornou-se propriedade de Esther Hoffe, amiga de longa data, secretária e (como muitos presumiam) amante. Ainda não se sabe exatamente quais eram os desejos de Brod na questão: se Hoffe deveria manter a guarda dos documentos antes de entregá-los a uma biblioteca apropriada (embora não esteja claro por que ele escolheria um procedimento tão complicado) ou se deveria simplesmente tomar posse deles, nos termos do testamento. Há vários e contraditórios relatos sobre o que ocorreu desde então, a maioria publicada por jornais e agências de notícias e diferindo em detalhes cruciais.
A cronologia e a narrativa que se seguem são as mais prováveis. Esther Hoffe, nos anos após tomar posse do material de Kafka, comportou-se como se fosse inequivocamente sua proprietária e tivesse todo o direito de decidir se, como e quando seria vendido. Em 1974, uma série de cartas e cartões-postais de Kafka a Brod foi vendida em caráter privado a um comprador ou compradores na Alemanha. O fato não passou despercebido em Israel e Hoffe foi vista como fonte mais provável do material. Alguém claramente a observava, pois quando, no ano seguinte, ela tentou embarcar em um voo de Israel para a Alemanha, foi parada na alfândega e revistada. Descobriu-se que escondera certo material de Kafka (ninguém revelou exatamente qual era) que, como lhe foi informado, precisava ser fotocopiado na Biblioteca Nacional como condição para a exportação. Eles não a impediram – e tampouco está inteiramente claro por que o fariam – de vender o manuscrito de O processo na Sotheby’s de Londres em 1998, por pouco menos de 2 milhões, o mais alto valor conseguido até então por um manuscrito literário do século XX. Ele foi comprado pelo Museu de Literatura Moderna de Marbach, na Alemanha, que possui a maior coleção de material manuscrito de Kafka e continua a afirmar que Max Brod desejava que todo o material lhe fosse destinado. 
Presumivelmente, esse manuscrito não precisava de uma licença de exportação formal (talvez tivesse sido mantido no exterior), mas, para os israelenses, precisava ao menos de uma licença moral. De acordo com um porta-voz da Biblioteca Nacional de Israel, o testamento de Brod aparentemente estipulava que o material deixado a cargo de Hoffe fosse depositado na biblioteca quando ela morresse. Mas os advogados de Hoffe citaram uma sentença de 1974, em um tribunal distrital israelense, que determinou que Brod a presenteara com a coleção e, assim, ela tinha o direito de doá-la ou vendê-la a qualquer instituição de sua escolha, em Israel ou no exterior.
Retornar o manuscrito de O processo a Israel teria “corrigido uma injustiça histórica corrente”, como disse ao jornal Haaretz o diretor da Biblioteca Nacional de Israel, Shmuel Har Noy. A frase é tanto obscura quanto polêmica e muitos anos se passaram antes que seus argumentos e suposições implícitas fossem tornados públicos e explicados. Já estava claro, observando-se o que se sabe sobre essas transações, que havia algum problema com a posse dos documentos por Frau Hoffe, mas ninguém sabia dizer exatamente qual era o problema. Tampouco se sabia quem era “ninguém”. Não havia nenhuma declaração em relação à questão por parte do que podemos apenas chamar de As Autoridades, que claramente a observavam com atenção e supunham algum desvio.
Enquanto isso, Frau Hoffe continuava a morar em seu apartamento em Jerusalém com (na maioria das versões) alguns manuscritos de Kafka – aparentemente, o restante fora depositado em cofres em Tel Aviv e Zurique – e muitos gatos. De acordo com vários relatos, o ambiente era muito insalubre (a menos que você fosse um gato) e visitas, à exceção das de suas filhas, não eram bem-vindas. Acadêmicos pediam desesperadamente para ter acesso ao material e eram rudemente dispensados. Não se tem registro de As Autoridades tentarem obter acesso à propriedade e, se o fizeram, não se conhece o resultado.
Esther Hoffe morreu em 2007, aos 101 anos, e deixou o material, ainda sob a firme impressão de ser a proprietária de direito, para as filhas, que não tiveram dúvidas sobre sua posse ou seu destino. Ele seria vendido, anunciaram mediante um advogado, como se fosse um saco de laranjas:

Se chegarmos a um acordo, o material será oferecido para venda como entidade única, em apenas um pacote. Ele será vendido por peso [...]. O leiloeiro dirá: “Há um quilo de papel aqui e o comprador que fizer a oferta mais alta poderá se aproximar e conferir o conteúdo.” A Biblioteca Nacional [de Israel] também pode participar e fazer uma oferta.

Por si só, esse bizarro e inaudito procedimento indica o quanto as herdeiras e seus advogados ignoravam a importância do material e a maneira adequada de avaliar seu valor. De fato, mesmo um comprador de laranjas gosta de inspecioná-las antes da compra. O valor do material é exatamente correlato a sua importância: ele já foi publicado? Quão significativo é o conteúdo, em termos biográficos ou literários? Em resumo: o que se pode aprender com ele? O manuscrito de O processo não pesava muito, mas é um dos romances icônicos do século XX e sem dúvida teria recebido uma oferta muito mais alta que material menos importante com o dobro do peso. O anúncio não melhora nossa confiança nos advogados. A menos que ele estivesse brincando – boa piada! –, embora advogados israelenses com senso de humor sejam uma espécie em extinção.
Ninguém fora do círculo imediato daqueles que aconselhavam e argumentavam a respeito dos procedimentos fora informado sobre o conteúdo das caixas. Assim como havia problemas em relação ao direito de propriedade de Hoffe – ela não seria apenas uma guardiã? –, também não estava claro se ela tinha o direito legal de transferir a posse para as filhas. O advogado da Biblioteca Nacional de Israel ficou indignado como só um advogado é capaz de ficar: “Enquanto Esther Hoffe estava viva, ela era responsável e podia dizer que cuidava do material. [...] A sra. Hoffe não fez o que o sr. Brod lhe pediu, depositar os documentos na Biblioteca Nacional [...]. O testamento não foi honrado, ele foi profanado.” Novamente, O processo é um guia perfeito para o absurdo da situação: “Desnecessário dizer que os documentos significariam uma quantidade quase infinita de trabalho. Era fácil acreditar, e não apenas para os de disposição ansiosa, que seria impossível terminá-lo.”
Mas havia uma questão muito mais complexa em jogo, baseada na desconcertante alegação de que os documentos de Kafka eram essenciais ao legado judeu e, consequentemente, propriedade natural do Estado. De acordo com David Blumberg, presidente do conselho de diretores da Biblioteca Nacional, “a biblioteca não pretende abrir mão de bens culturais que pertencem ao povo judeu [...]. Como não se trata de uma instituição comercial e os itens nela mantidos estão acessíveis para todos sem nenhum custo, a biblioteca continuará seus esforços para obter a transferência dos manuscritos encontrados”. As implicações dessa notável declaração, de acordo com Judith Butler, que escreveu um dos mais cuidadosos tratados sobre assunto, são de tirar o fôlego:

O entendimento implícito é de que todos [...] os bens culturais judeus – o que quer que isso possa significar – que se encontram fora de Israel pertencem, ao fim e devidamente, a Israel. [...] se a Biblioteca Nacional reivindica o legado de Kafka para o Estado judeu, ela e instituições como ela em Israel podem reivindicar praticamente qualquer sinagoga, obra de arte, manuscrito ou objeto ritual de valor do pré-Holocausto, em qualquer lugar da Europa.

É difícil ver como tal argumento poderia convencer alguém com um mínimo de bom senso, quem dirá de justiça.
O próprio Kafka tampouco teria concordado com essa fácil descrição de si mesmo como sendo essencialmente judeu e, portanto, naturalmente assimilável à alegação do Estado de que seu trabalho é um de seus bens culturais. Kafka, por temperamento e inclinação, era um outsider e seu maior comprometimento era com suas contraditórias formas de se relacionar com o mundo. Ele estava, como afirmou em uma carta, “excluído de todas as comunidades espirituais em função de meu judaísmo não sionista (admiro o sionismo e fico nauseado com ele) e não praticante”.
Em 2009, a Vara de Família de Tel Aviv exigiu que os documentos fossem examinados antes de decidir sobre a questão de sua propriedade e destinação. Aparentemente, o processo deveria durar várias semanas. Mas levou quase dois anos, durante os quais os dez advogados envolvidos tiveram dificuldades para se espremer na minúscula sala em que o tribunal se reunia.
A ação foi tão complexa e demorada e os procedimentos tão obscuros que é impossível não evocar novamente o grande romance de Kafka.
Foi somente em fevereiro de 2011 que essas obscuras deliberações chegaram a um ponto que permitiu uma grosseira noção sobre os documentos guardados nos cofres. As agências de notícias indicaram a presença dos manuscritos de “Preparativos para um casamento no campo” (já publicado, mas com base em fragmentos incompletos) e alguns outros contos, diários e cartas de Kafka, além dos diários inéditos de Brod. O professor de Alemão de Oxford, Richie Robertson, afirmou que “potencialmente, os itens mais interessantes são os diários de Max Brod [...] utilizados para escrever sua própria biografia de Kafka, com inúmeras passagens a seu respeito”. É difícil seguir seu raciocínio sem ter visto o material, mas me parece que a descoberta de uma versão previamente desconhecida de uma história de Kafka seja mais excitante que qualquer quantidade de diários de seu amigo e amanuense. Talvez o conto não seja muito bom? Contudo, como observa o professor, “pode haver mais” e, até que saibamos exatamente no que consiste, é difícil fazer julgamentos. Levará algum tempo para que possamos avaliar integralmente a natureza e a importância do que, finalmente, for revelado.
Em 14 de outubro de 2012, o caso foi (presumivelmente) encerrado em um superlotado tribunal de Tel Aviv, que decidiu que os papeis pertenciam – espere para ver! – ao Estado de Israel. Presumivelmente, a sentença não foi uma surpresa para ninguém além das filhas de Esther Hoffe, que anunciaram sua intenção de recorrer da decisão.
Mas, de acordo com a juíza Talia Kopelman-Pardo, o caso era bastante claro: o testamento de Brod, datado de 1948, não presenteou Esther Hoffe com dezenas de milhares de páginas, mas, em vez disso, estipulou que elas deveriam “ser entregues à Universidade Hebraica de Jerusalém ou à Biblioteca Municipal de Tel Aviv”. (O fato de que o parágrafo terminava com a frase “ou qualquer outra instituição pública em Israel ou no exterior” certamente teria interessado os arquivistas em Marbach ou Oxford, ambas depositárias de mais material de Kafka do que o existente em Israel.) Mas essas possibilidades estrangeiras não seduziram a juíza. Os documentos estavam em Israel e lá deveriam permanecer. A menos, é claro, que outra intensa e obscura atividade legal em benefício das irmãs conseguisse libertá-los.
Em seu benefício, deve-se dizer que a Universidade Hebraica pretende publicar todo o material online, assim que o caso seja finalmente decidido e os procedimentos necessários possam ser realizados. Isso, de acordo com o professor Robertson, de Oxford, é inequivocamente benéfico, embora ele não saiba quanto material primário importante será revelado. Mas o conceituado romancista inglês Will Self desdenhou todo o assunto: “Brod pretendia canonizar Kafka como santo sionista [!, ponto de exclamação de incredulidade] e o Estado israelense, ao se apossar de seus papéis, assegurou que essa falsificação [!,idem] siga em frente em passo acelerado.”

(Rick Gekoski, em fragmento do seu livro Lost, Stolen or Shredded, 2013, a ser publicado em breve no Brasil pela ed. Record. )