PAISAGEM PARA A QUEDA DE ÍCARO
Sempre olho pela janela do avião e rezo
para que o sol esteja do outro lado.
Não vê-lo é sempre melhor.
Não há nada pior do que a luz solapando as retinas
para escorrer crânio adentro,
a voz solar de D’us: não há mais o que ver, ou por quê.
Sempre olho pela janela do avião e rezo
para que o sol esteja do lado de dentro.
Não ver é sempre melhor.
Não há nada pior do que a luz desajustando as coisas lá embaixo
enquanto escorro para longe delas,
a voz arranhada do piloto: à esquerda dos senhores, o mar.
Sempre olho pela janela do avião e rezo
para que o mar tome conta do resto
e nos alcance lá em cima.
27.2.14
22.2.14
Pedro Homem de Mello
Resgate
Não sou isto nem aquilo
É o meu modo de viver
É, às vezes, tão tranquilo
Que nem chega a dar prazer...
Todavia, onde apareço,
Logo a paz desaparece
E a guerra que não mereço
Dá princípio à minha prece.
És alegre? Vês-me triste?
Por que não te vais embora?
Quem é triste é porque é triste.
E quem chora é porque chora.
Tenho tudo o que não tens
Tenho a névoa por remate.
Sou da raça desses cães
Em que toda a gente bate.
Só a idade com o tempo
Há-de vir tornar-me forte.
A uns, basta-lhes o vento...
Aos Poetas, basta a morte.
É o meu modo de viver
É, às vezes, tão tranquilo
Que nem chega a dar prazer...
Todavia, onde apareço,
Logo a paz desaparece
E a guerra que não mereço
Dá princípio à minha prece.
És alegre? Vês-me triste?
Por que não te vais embora?
Quem é triste é porque é triste.
E quem chora é porque chora.
Tenho tudo o que não tens
Tenho a névoa por remate.
Sou da raça desses cães
Em que toda a gente bate.
Só a idade com o tempo
Há-de vir tornar-me forte.
A uns, basta-lhes o vento...
Aos Poetas, basta a morte.
Prece
Talvez que eu morra na praia,
Cercado, em pérfido banho,
Por toda a espuma da praia,
Como um pastor que desmaia
No meio do seu rebanho…
Talvez que eu morra na rua
E dê por mim de repente –
Em noite fria, sem lua,
Irmão das pedras da rua
Pisadas por toda a gente!
Talvez que eu morra entre grades,
No meio duma prisão
E que o mundo, além das grades,
Venha esquecer as saudades
Que roem o meu coração.
Talvez que eu morra dum tiro,
Castigo de algum desejo.
E que, à mercê desse tiro,
O meu último suspiro
Seja o meu primeiro beijo…
Talvez que eu morra no leito,
Onde a morte é natural,
As mãos em cruz sobre o peito…
Das mãos de Deus tudo aceito.
- Mas que eu morra em Portugal!
Talvez que eu morra na praia,
Cercado, em pérfido banho,
Por toda a espuma da praia,
Como um pastor que desmaia
No meio do seu rebanho…
Talvez que eu morra na rua
E dê por mim de repente –
Em noite fria, sem lua,
Irmão das pedras da rua
Pisadas por toda a gente!
Talvez que eu morra entre grades,
No meio duma prisão
E que o mundo, além das grades,
Venha esquecer as saudades
Que roem o meu coração.
Talvez que eu morra dum tiro,
Castigo de algum desejo.
E que, à mercê desse tiro,
O meu último suspiro
Seja o meu primeiro beijo…
Talvez que eu morra no leito,
Onde a morte é natural,
As mãos em cruz sobre o peito…
Das mãos de Deus tudo aceito.
- Mas que eu morra em Portugal!
19.2.14
William Faulkner
Portrait
Raise your hand between us, to your face,
And draw the opaque curtains on your eyes.
Let us walk here, softly checked with shadow,
And talk of careful trivialities.
Let us lightly speak at random; tonight's movie,
Repeat a broken conversation, word for word;
Of friends, and happiness. The darkness scurries,
And we hear again a music both have heard
Singing blood to blood between our palms.
Come, lift your eyes, your tiny scrap of mouth
So lightly mobile on your dim white face;
Aloofly talk of life, profound in youth
And simple also. Young and white and strange
You walk beside me down this shadowed street,
Against my hand your small breast softly lies,
And your laughter breaks the rhythm of our feet.
You are so young. And frankly you believe
This world, this darkened street, this shadowed wall
Are dim with beauty you passionately know
Cannot fade nor cool nor die at all.
Raise your hand, then, to your scarce seen face, And draw the opaque curtains on your eyes; Profoundly speak of life, of simple truths, The while your voice is clear with frank surprise.
(Em Double Dealer, New Orleans, junho de 1922)
13.2.14
Natália Correia
Retrato talvez saudoso da menina insular
Tinha o tamanho da praia
o corpo que era de areia.
E mais que corpo era indício
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.
E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.
Largou o sonho no barco
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.
E quando o corpo se ergueu
voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além
guardada na claridade
do coração que a retém
Verdadeira litania para os tempos da revolução
Mário nós não somos todos burgueses
os gatos e os ratos se quiseres,
os literatos esses são franceses
e todos soletramos malmequeres.
Da vida o verbo intransitivo
não é burguês é ruim;
e eu que nas nuvens vivo
nuvens! O que direi de mim?
Burguês é esse menino extraordinário
que nasce todos os anos em Belém
e a poesia se não diz isto Mário
é burguesa também.
Burguês é o carro funerário.
Os mortos são naturalmente comunistas.
Nós não somos burgueses Mário
o que nós somos todos é sebastianistas.
10.2.14
To B or not to B
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias -
E combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer, dormir;
Só isso. E com o sono - dizem - extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer - dormir -
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem aguentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão porque o terror de alguma coisa após a morte -
O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante - nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar os males que já temos,
A fugirmos pra outros que desconhecemos?
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento.
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho,
Perdem o nome de ação (...)"
7.2.14
80 minutos depois do pôr do sol
Do horizonte de Marte, a Terra é o ponto mais luminoso.
A Lua, um pouco mais abaixo.
De Marte, pode-se ver as duas como estrelas da noite.
A noite é 31 de janeiro de 2014.
Para chegar a esse horizonte são 160 milhões de quilômetros.
80 minutos depois do pôr do sol.
(NASA)
6.2.14
O cardápio do Titanic
Na manhã do dia 14 de abril de 1912, exatamente às 5 horas da manhã, os mais de 60 chefs e assistentes, bem como um turno de 72 homens de cozinha, iniciavam sua jornada diária para preparar as refeições dos 2.228 passageiros e tripulantes (337 na primeira classe, 285 na segunda e 721 na terceira, além de 885 tripulantes) do R.M.S. Titanic, orgulho da indústria naval da época em sua viagem inaugural.
O Titanic era um transatlântico composto por 46.328 toneladas de ferro e aço, equipado com o que havia de mais luxuoso na época, com 9 deques espalhados por 54 metros de altura e 268 metros de comprimento. Suas 29 caldeiras consumiam 825 toneladas de carvão por dia para impulsionar os 2 motores e 4 turbinas do navio. Suas 840 cabines eram divididas em 416 de primeira classe, 162 de segunda e 262 de terceira mais 40 dormitórios coletivos. Construído ao custo de US$ 7,500,000.00, algo como US$ 400,000,000.00 de hoje, o Titanic cobrava entre US$ 4,350.00 (algo como US$ 70 mil de hoje) por uma suíte, passando por US$ 150 (US$ 2,400.00 de hoje) por uma cabine de primeira, US$ 60.00 por uma de segunda e US$ 40.00 por uma de terceira classe. Apenas para referência, um mestre soldador que trabalhou na construção do navio ganhava US$ 10 por mês.
Por este preço, além das 5 refeições diárias, o passageiro encontrava a seu dispor um ginásio com esteiras, bicicletas estacionárias e, novidade da época, um cavalo elétrico! Isso além da primeira piscina aquecida já construída em um navio, banhos turcos e uma quadra de squash. Para completar, 2 salões de barbeiro (um exclusivo para a primeira classe) com os primeiros dispensers automáticos de xampu da época, salas de fumantes exclusivas para os homens (apenas para os passageiros de primeira e segunda classes) e uma biblioteca de 2.000 volumes com respectiva sala de leitura.
O Titanic ainda contava com o Parisian Café (com garçons vindos da França), o Veranda Café (com palmeiras reais em sua decoração), luz elétrica e aquecimento em todas as cabines (o único navio da época a oferecer tal conveniência), 4 elevadores elétricos, os primeiros a serem instalados em um navio (3 para a primeira classe e 1 para a segunda), enfermaria com 2 médicos e 4 enfermeiros (equipada para cirurgias de emergência), central telefônica elétrica para intercomunicação entre cabines (também o primeiro navio a oferecer tal conveniência), restaurante à la carte exclusivo para a primeira classe e com acesso apenas mediante reservas.
Em seu rol de bagagens, registradas como bagagem acompanhada, ou seja, bagagem extraordinária, constava entre outros:
1 Renault 35hp do sr. William Carter
1 Máquina de fabricar geleias da sra. Edwina Trout
1 Quadro de Blondel, “La Circasianne au Bain”, do sr. Hokan Bjrnstron-Steffanson
7 Torot do sr. Hersh L. Sielbald
50 caixas de pastas de dentes de Park & Tilford
1 baú de porcelanas raras da Tiffany
5 pianos de cauda
1 exemplar único do livro Rubáiyát de Omar Khayýam. A encadernação em folhas
de ouro com mais de mil pedras preciosas
4 baús de ópio
Além de 3.364 sacolas de correio e 800 sacolas de malotes e cartas registradas
Os cozinheiros preparavam comida para abastecer os 3 salões de refeições, sendo que só o da primeira classe tinha 970 m2, acomodando em sua movelaria e decoração Empire e Regency 554 pessoas, além dos bares, cafés e quiosques. O restaurante à la carte, conhecido como Ritz, embora este não fosse seu nome, tinha sua própria equipe, sob o comando do chef Rousseau e do maître Luigi Gati, este contratado a peso de ouro para sair do afamado Ritz de Londres.Todo este exército de cozinheiros e assistentes tinha à sua disposição o seguinte rol de suprimentos:
Carne fresca - 33.750 k
Peixe fresco - 4.950 k
Peixe seco - 1.800 k
Ostras frescas - 1.221 barris
Bacon e presunto - 3.375 k
Frangos e patos - 11.250k
Ovos frescos - 40.000
Linguiça - 1.125 k
Batatas - 40.000 k
Cebolas - 1.575 k
Tomates - 1.575 k
Aspargos frescos - 800 maços
Ervilhas frescas - 1.125 k
Alface - 7.000 pés
Miúdos de vitela - 450 k
Sorvetes diversos - 788 k
Café - 990 k
Chá - 360 k
Arroz e feijão - 4.500 k
Açúcar - 4.500 k
Farinha - 250 barris
Cereais matutinos - 4.500 k
Maçãs - 36.000
Laranjas - 36.000
Limões - 16.000
Uvas - 450 k
Grapefruits - 13.000
Geleias - 504 k
Leite - 5.670 l
Creme de Leite - 300 l
Leite Condensado - 2.268 l
Manteiga - 2.700 k
Cerveja - 15.000 garrafas
Vinhos - 1.000 garrafas
Destilados - 850 garrafas
Água Mineral - 1.200 garrafas
Charutos - 8.000
E, com estas matérias-primas, produziram o cardápio que a seguir reproduzimos. O cardápio do salão da primeira classe é exatamente aquele que foi servido na trágica última noite do navio, que, por ter sido impresso, pôde ser recuperado. Muitas das receitas são originais, outras são recriações a partir de costumes e ingredientes da época. O serviço era todo em baixelas de prata, levadas por carrinhos a cada mesa por um garçom e um cumim, que serviam à francesa, cada uma das opções. Não havia um sommelier a bordo, e os garçons sugeriam o vinho conforme o cardápio e o gosto do cliente.
CARDÁPIO DO SALÃO DA PRIMEIRA CLASSE
Hors D’oeuvre
O cardápio original não especificava o tipo de canapé, foi escolhido o L’Amiral por ser um clássico da White Lines, proprietária do navio.
Canapés à la Amiral – canapés feitos de finas fatias de baguete torradas com manteiga de camarões e fatias de limão.
Oysters à la Russe – Ostras frescas servidas com um molho de vodca, raiz forte, cebolinhas e limão.
Vinhos: Bordeaux branco, Burgundy branco e Chablis para as ostras.
Soups
Era um costume da época oferecer um caldo claro e um creme como opções para um jantar de cerimônia.
Consommé Olga – Seria um consommé normal não fosse o ingrediente secreto chamado vésiga, a espinha dorsal do esturjão, que era hidratada por 5 horas e depois cozida por mais 3, para soltar seu sabor e sua consistência gelatinosa.
Cream of Barley Soup – Sopa cremosa de cevada temperada com whisky.
Vinhos: Madeira ou Sherry.
Fish
Curiosamente, não eram frequentes os pratos de peixe em navios da época, possivelmente pelos problemas de conservação.
Poached Salmon with Mousseline Sauce – Posta de salmão cozida com molho holandês batido com creme.
Vinhos: Branco Seco do Reno ou Moselle.
Entrées
Ao contrário de hoje, as entrées em navios eram pequenas porções onde os chefs mostravam suas grandes especialidades.
Filet Mignon Lili – A quintessência do período eduardiano: um medalhão de filet grelhado, coberto por fatias de foie gras e trufas, servido sobre um leito de batatas Anne (uma camada de batatas cortadas em fatias finíssimas, assada na manteiga até dourar).
Chicken Lyonnaise – Frango cozido longamente num molho de cebolas, alho, vinho branco e tomilho. Considerado um dos pratos mais saborosos do menu.
Vegetable Marrow Farci – Um tipo de abobrinha muito raro (Marrow Squash), encontrado na Europa por 4 a 5 semanas durante o ano, recheado com uma mistura de arroz, cogumelos e ervas.
Vinho: Bordeaux tinto.
Removes
São os pratos principais do jantar: mais pesados e normalmente nas maiores porções.
Lamb with Mint Sauce – Pernil de carneiro assado e depois cozido em vinho tinto acompanhado de molho de hortelãs frescas.
Calvados-Glazed Roast Duckling with Applesauce – Pato inteiro assado com glacê à base de calvados com purê de maçãs.
Roast Sirloan of Beef Forestière – Filet Mignon assado em peça com molho à base de champignons, vinho e cebolas.
Chateâu Potatoes – Batatas cortadas em formato de joias, assadas na manteiga.
Minted Green Pea Timbales – Pudim de claras, ervilhas e hortelã, assado em banho-maria.
Creamed Carrots – Purê de cenouras cozidas com canela.
Boiled Rice – Arroz.
Parmentier and Boiled Potatoes – Batatas cozidas e assadas.
Vinhos: Tinto Burgundy ou Beaujolais.
Punch or Sorbet
Punch Romaine – Receita imortalizada por Escoffier, um sorbet de sucos cítricos e champagne.
Roast
O costume de servir um assado depois do sorbet é típico da era eduardiana – normalmente uma caça.
Roasted Squab on Wilted Cress – Perdiz assada com molho madeira e manjericão, servida num leito de brotos de agrião.
Vinho: Tinto Burgundy.
Salad
Escoffier introduziu o hábito de se servir saladas depois do assado. As saladas nunca eram servidas junto com outros pratos, principalmente carnes.
Asparagus Salad with Champagne-Saffron Vinaigrette – Salada de aspargos frescos com molho à base de pistilos de açafrão e champagne, servida em pratos especialmente alongados com pinças especiais para os aspargos.
Cold Dish
O cold dish foi hábito inglês, uma nova pausa na refeição, como a do sorbet. Podia também constar de carnes frias ou peru assado frio.
Paté de Foie Gras Celery – Patê de foie marinado no vinho Madeira e servido com aipo.
Vinhos: Sauterne ou Doce do Reno.
Sweets
Aqui poderia haver uma divisão entre cold sweets e hot sweets, que seriam servidos separadamente.
Waldorf Pudding – Recebeu seu nome por causa dos ingredientes que são os mesmos da salada Waldorf, recém-criada por Escoffier para o hotel americano: nozes, passas e maçãs.
Peaches in Chartreuse Jelly – Pêssegos em calda servidos numa gelatina à base do licor Chartreuse. Vale a pena lembrar que nessa época não existia gelatina em pó e a mesma era feita a partir de ossos, sendo portanto um prato muito trabalhoso.
Chocolate Painted Eclairs with French Vanilla Cream – Bombas de creme cobertas por chocolate e acompanhadas de creme de baunilha.
French Vanilla Ice Cream – Sorvete de baunilha.
Vinhos: Moscatel ou Tokay ou Sauternes.
Desserts
Assorted Fresh Fruits and Cheeses – Os queijos a bordo eram Cheshire, Stilton, Gorgonzola, Edam, Camembert, Roquefort, St. Ivel e Cheddar.
Vinhos: Sauternes, Champagne e Espumantes.
After Dinner
Coffee and Cigars – Apenas na primeira classe era servido o café turco, nas outras classes o de coador. O café era servido até ¾ da xícara uma vez que os licores eram colocados diretamente nas xícaras. Os homens fumavam seu primeiro charuto no salão de refeições e depois iam para o Fumoir degustar o segundo charuto e conhaque.
Vinhos: Vinho do Porto e Cordiais (licores).
(Agradeço ao Centro da Cultura Judaica pelas informações para este post.)
4.2.14
O interminável processo sobre os inéditos de Kafka
Até sua morte em 1924, aos 40 anos, Frank Kafka publicou apenas algumas das grandes obras pelas quais é lembrado e seu falecimento praticamente não foi notado. Havia certo número de contos, incluindo um fino volume contendo Um artista da fome e A metamorfose, mas os grandes romances pelos quais é reverenciado não haviam sido publicados, pela simples razão de que ele não queria que fossem. Ele deixou instruções explícitas a seu querido amigo (e também advogado) Max Brod sobre o que fazer com o material: “Caro Max, meu último pedido é que tudo que deixo para trás [...] na forma de diários, manuscritos, cartas (minhas e de outros), rascunhos etc., seja queimado sem ser lido.” Na verdade, perto do fim da vida, o próprio Kafka queimou alguns de seus trabalhos, e podemos apenas especular por que deixou a maior parte a cargo de Brod quando poderia tê-los destruído por si mesmo.
Era um inequívoco pedido final e Brod, para seu grande crédito e talvez intuindo a ambivalência de Kafka em relação ao assunto, decidiu ignorá-lo. Durante os dez anos seguintes, ele preparou os manuscritos para publicação, com O processo (1925), O castelo (1926) e Amerika (1927) – provavelmente as obras pelas quais o autor é mais conhecido e das quais derivou apropriadamente o adjetivo “kafkiano” – surgindo em edições alemãs (o idioma em que foram escritos).
[...] temos de retornar a 1939, quando, com os nazistas marchando em direção a Praga, Max Brod partiu apressadamente para a Palestina, levando consigo tudo o que mais prezava. Ao chegar, continuou sua prolífica carreira como escritor, envolveu-se com o teatro e se estabeleceu em uma vida aparentemente segura e tranquila. Tanto quanto se pôde averiguar, ninguém fora de seu círculo imediato sabia que ele trouxera consigo duas valises cheias de material inédito de Franz Kafka.
O que havia nas valises? Por que ele escolheu não revelar seu conteúdo? Quão importantes eram os documentos? Brod não deixou respostas a essas perguntas. Deixou, contudo, o próprio conteúdo das valises, que, após sua morte em 1968 (com sua esposa o tendo precedido), tornou-se propriedade de Esther Hoffe, amiga de longa data, secretária e (como muitos presumiam) amante. Ainda não se sabe exatamente quais eram os desejos de Brod na questão: se Hoffe deveria manter a guarda dos documentos antes de entregá-los a uma biblioteca apropriada (embora não esteja claro por que ele escolheria um procedimento tão complicado) ou se deveria simplesmente tomar posse deles, nos termos do testamento. Há vários e contraditórios relatos sobre o que ocorreu desde então, a maioria publicada por jornais e agências de notícias e diferindo em detalhes cruciais.
A cronologia e a narrativa que se seguem são as mais prováveis. Esther Hoffe, nos anos após tomar posse do material de Kafka, comportou-se como se fosse inequivocamente sua proprietária e tivesse todo o direito de decidir se, como e quando seria vendido. Em 1974, uma série de cartas e cartões-postais de Kafka a Brod foi vendida em caráter privado a um comprador ou compradores na Alemanha. O fato não passou despercebido em Israel e Hoffe foi vista como fonte mais provável do material. Alguém claramente a observava, pois quando, no ano seguinte, ela tentou embarcar em um voo de Israel para a Alemanha, foi parada na alfândega e revistada. Descobriu-se que escondera certo material de Kafka (ninguém revelou exatamente qual era) que, como lhe foi informado, precisava ser fotocopiado na Biblioteca Nacional como condição para a exportação. Eles não a impediram – e tampouco está inteiramente claro por que o fariam – de vender o manuscrito de O processo na Sotheby’s de Londres em 1998, por pouco menos de 2 milhões, o mais alto valor conseguido até então por um manuscrito literário do século XX. Ele foi comprado pelo Museu de Literatura Moderna de Marbach, na Alemanha, que possui a maior coleção de material manuscrito de Kafka e continua a afirmar que Max Brod desejava que todo o material lhe fosse destinado.
Presumivelmente, esse manuscrito não precisava de uma licença de exportação formal (talvez tivesse sido mantido no exterior), mas, para os israelenses, precisava ao menos de uma licença moral. De acordo com um porta-voz da Biblioteca Nacional de Israel, o testamento de Brod aparentemente estipulava que o material deixado a cargo de Hoffe fosse depositado na biblioteca quando ela morresse. Mas os advogados de Hoffe citaram uma sentença de 1974, em um tribunal distrital israelense, que determinou que Brod a presenteara com a coleção e, assim, ela tinha o direito de doá-la ou vendê-la a qualquer instituição de sua escolha, em Israel ou no exterior.
Retornar o manuscrito de O processo a Israel teria “corrigido uma injustiça histórica corrente”, como disse ao jornal Haaretz o diretor da Biblioteca Nacional de Israel, Shmuel Har Noy. A frase é tanto obscura quanto polêmica e muitos anos se passaram antes que seus argumentos e suposições implícitas fossem tornados públicos e explicados. Já estava claro, observando-se o que se sabe sobre essas transações, que havia algum problema com a posse dos documentos por Frau Hoffe, mas ninguém sabia dizer exatamente qual era o problema. Tampouco se sabia quem era “ninguém”. Não havia nenhuma declaração em relação à questão por parte do que podemos apenas chamar de As Autoridades, que claramente a observavam com atenção e supunham algum desvio.
Enquanto isso, Frau Hoffe continuava a morar em seu apartamento em Jerusalém com (na maioria das versões) alguns manuscritos de Kafka – aparentemente, o restante fora depositado em cofres em Tel Aviv e Zurique – e muitos gatos. De acordo com vários relatos, o ambiente era muito insalubre (a menos que você fosse um gato) e visitas, à exceção das de suas filhas, não eram bem-vindas. Acadêmicos pediam desesperadamente para ter acesso ao material e eram rudemente dispensados. Não se tem registro de As Autoridades tentarem obter acesso à propriedade e, se o fizeram, não se conhece o resultado.
Esther Hoffe morreu em 2007, aos 101 anos, e deixou o material, ainda sob a firme impressão de ser a proprietária de direito, para as filhas, que não tiveram dúvidas sobre sua posse ou seu destino. Ele seria vendido, anunciaram mediante um advogado, como se fosse um saco de laranjas:
Se chegarmos a um acordo, o material será oferecido para venda como entidade única, em apenas um pacote. Ele será vendido por peso [...]. O leiloeiro dirá: “Há um quilo de papel aqui e o comprador que fizer a oferta mais alta poderá se aproximar e conferir o conteúdo.” A Biblioteca Nacional [de Israel] também pode participar e fazer uma oferta.
Por si só, esse bizarro e inaudito procedimento indica o quanto as herdeiras e seus advogados ignoravam a importância do material e a maneira adequada de avaliar seu valor. De fato, mesmo um comprador de laranjas gosta de inspecioná-las antes da compra. O valor do material é exatamente correlato a sua importância: ele já foi publicado? Quão significativo é o conteúdo, em termos biográficos ou literários? Em resumo: o que se pode aprender com ele? O manuscrito de O processo não pesava muito, mas é um dos romances icônicos do século XX e sem dúvida teria recebido uma oferta muito mais alta que material menos importante com o dobro do peso. O anúncio não melhora nossa confiança nos advogados. A menos que ele estivesse brincando – boa piada! –, embora advogados israelenses com senso de humor sejam uma espécie em extinção.
Ninguém fora do círculo imediato daqueles que aconselhavam e argumentavam a respeito dos procedimentos fora informado sobre o conteúdo das caixas. Assim como havia problemas em relação ao direito de propriedade de Hoffe – ela não seria apenas uma guardiã? –, também não estava claro se ela tinha o direito legal de transferir a posse para as filhas. O advogado da Biblioteca Nacional de Israel ficou indignado como só um advogado é capaz de ficar: “Enquanto Esther Hoffe estava viva, ela era responsável e podia dizer que cuidava do material. [...] A sra. Hoffe não fez o que o sr. Brod lhe pediu, depositar os documentos na Biblioteca Nacional [...]. O testamento não foi honrado, ele foi profanado.” Novamente, O processo é um guia perfeito para o absurdo da situação: “Desnecessário dizer que os documentos significariam uma quantidade quase infinita de trabalho. Era fácil acreditar, e não apenas para os de disposição ansiosa, que seria impossível terminá-lo.”
Mas havia uma questão muito mais complexa em jogo, baseada na desconcertante alegação de que os documentos de Kafka eram essenciais ao legado judeu e, consequentemente, propriedade natural do Estado. De acordo com David Blumberg, presidente do conselho de diretores da Biblioteca Nacional, “a biblioteca não pretende abrir mão de bens culturais que pertencem ao povo judeu [...]. Como não se trata de uma instituição comercial e os itens nela mantidos estão acessíveis para todos sem nenhum custo, a biblioteca continuará seus esforços para obter a transferência dos manuscritos encontrados”. As implicações dessa notável declaração, de acordo com Judith Butler, que escreveu um dos mais cuidadosos tratados sobre assunto, são de tirar o fôlego:
O entendimento implícito é de que todos [...] os bens culturais judeus – o que quer que isso possa significar – que se encontram fora de Israel pertencem, ao fim e devidamente, a Israel. [...] se a Biblioteca Nacional reivindica o legado de Kafka para o Estado judeu, ela e instituições como ela em Israel podem reivindicar praticamente qualquer sinagoga, obra de arte, manuscrito ou objeto ritual de valor do pré-Holocausto, em qualquer lugar da Europa.
É difícil ver como tal argumento poderia convencer alguém com um mínimo de bom senso, quem dirá de justiça.
O próprio Kafka tampouco teria concordado com essa fácil descrição de si mesmo como sendo essencialmente judeu e, portanto, naturalmente assimilável à alegação do Estado de que seu trabalho é um de seus bens culturais. Kafka, por temperamento e inclinação, era um outsider e seu maior comprometimento era com suas contraditórias formas de se relacionar com o mundo. Ele estava, como afirmou em uma carta, “excluído de todas as comunidades espirituais em função de meu judaísmo não sionista (admiro o sionismo e fico nauseado com ele) e não praticante”.
Em 2009, a Vara de Família de Tel Aviv exigiu que os documentos fossem examinados antes de decidir sobre a questão de sua propriedade e destinação. Aparentemente, o processo deveria durar várias semanas. Mas levou quase dois anos, durante os quais os dez advogados envolvidos tiveram dificuldades para se espremer na minúscula sala em que o tribunal se reunia.
A ação foi tão complexa e demorada e os procedimentos tão obscuros que é impossível não evocar novamente o grande romance de Kafka.
Foi somente em fevereiro de 2011 que essas obscuras deliberações chegaram a um ponto que permitiu uma grosseira noção sobre os documentos guardados nos cofres. As agências de notícias indicaram a presença dos manuscritos de “Preparativos para um casamento no campo” (já publicado, mas com base em fragmentos incompletos) e alguns outros contos, diários e cartas de Kafka, além dos diários inéditos de Brod. O professor de Alemão de Oxford, Richie Robertson, afirmou que “potencialmente, os itens mais interessantes são os diários de Max Brod [...] utilizados para escrever sua própria biografia de Kafka, com inúmeras passagens a seu respeito”. É difícil seguir seu raciocínio sem ter visto o material, mas me parece que a descoberta de uma versão previamente desconhecida de uma história de Kafka seja mais excitante que qualquer quantidade de diários de seu amigo e amanuense. Talvez o conto não seja muito bom? Contudo, como observa o professor, “pode haver mais” e, até que saibamos exatamente no que consiste, é difícil fazer julgamentos. Levará algum tempo para que possamos avaliar integralmente a natureza e a importância do que, finalmente, for revelado.
Em 14 de outubro de 2012, o caso foi (presumivelmente) encerrado em um superlotado tribunal de Tel Aviv, que decidiu que os papeis pertenciam – espere para ver! – ao Estado de Israel. Presumivelmente, a sentença não foi uma surpresa para ninguém além das filhas de Esther Hoffe, que anunciaram sua intenção de recorrer da decisão.
Mas, de acordo com a juíza Talia Kopelman-Pardo, o caso era bastante claro: o testamento de Brod, datado de 1948, não presenteou Esther Hoffe com dezenas de milhares de páginas, mas, em vez disso, estipulou que elas deveriam “ser entregues à Universidade Hebraica de Jerusalém ou à Biblioteca Municipal de Tel Aviv”. (O fato de que o parágrafo terminava com a frase “ou qualquer outra instituição pública em Israel ou no exterior” certamente teria interessado os arquivistas em Marbach ou Oxford, ambas depositárias de mais material de Kafka do que o existente em Israel.) Mas essas possibilidades estrangeiras não seduziram a juíza. Os documentos estavam em Israel e lá deveriam permanecer. A menos, é claro, que outra intensa e obscura atividade legal em benefício das irmãs conseguisse libertá-los.
Em seu benefício, deve-se dizer que a Universidade Hebraica pretende publicar todo o material online, assim que o caso seja finalmente decidido e os procedimentos necessários possam ser realizados. Isso, de acordo com o professor Robertson, de Oxford, é inequivocamente benéfico, embora ele não saiba quanto material primário importante será revelado. Mas o conceituado romancista inglês Will Self desdenhou todo o assunto: “Brod pretendia canonizar Kafka como santo sionista [!, ponto de exclamação de incredulidade] e o Estado israelense, ao se apossar de seus papéis, assegurou que essa falsificação [!,idem] siga em frente em passo acelerado.”
(Rick Gekoski, em fragmento do seu livro Lost, Stolen or Shredded, 2013, a ser publicado em breve no Brasil pela ed. Record. )
(Rick Gekoski, em fragmento do seu livro Lost, Stolen or Shredded, 2013, a ser publicado em breve no Brasil pela ed. Record. )
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