É belo dentre a cinza ver ardendo
Nas mãos do fumador um bom cigarro,
Sentir o fumo em névoas rescendendo,
Do cachimbo alemão no louro barro
Ver a chama vermelha estremecendo
E até...perdoem... respirar-lhe o sarro!
Porém o que há mais doce nesta vida,
O que das mágoas desvanece o luto
E dá som a uma alma empobrecida,
Palavra d' honra, és tu, ó meu charuto!
--- "Terza Rima".
30.10.02
21.10.02
D. H. Lawrence
A indecência pode ser normal, saudável.
Na verdade, um pouco de indecência é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.
E um pouco de putaria pode ser normal, saudável.
Na verdade, um pouco de putaria é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.
Mesmo a sodomia pode ser normal, saudável,
desde que haja troca de sentimento verdadeiro.
Mas se alguma delas for para o cérebro, aí se torna perniciosa:
a indecência no cérebro se torna obscena, viciosa,
a putaria no cérebro se torna sifilítica
e a sodomia no cérebro se torna uma missão,
tudo vício, missão, insanamente mórbido.
Do mesmo modo, a castidade na hora própria é normal e bonita.
Mas a castidade no cérebro é vício, perversão.
E a rígida supressão de toda e qualquer indecência, putaria e relações assim
leva direto a furiosa insanidade.
E a quinta geração de puritanos, se não for obscenamente depravada,
é idiota. Por isso, você tem de escolher.
--- "A Indecência Pode Ser Saudável".
Na verdade, um pouco de indecência é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.
E um pouco de putaria pode ser normal, saudável.
Na verdade, um pouco de putaria é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.
Mesmo a sodomia pode ser normal, saudável,
desde que haja troca de sentimento verdadeiro.
Mas se alguma delas for para o cérebro, aí se torna perniciosa:
a indecência no cérebro se torna obscena, viciosa,
a putaria no cérebro se torna sifilítica
e a sodomia no cérebro se torna uma missão,
tudo vício, missão, insanamente mórbido.
Do mesmo modo, a castidade na hora própria é normal e bonita.
Mas a castidade no cérebro é vício, perversão.
E a rígida supressão de toda e qualquer indecência, putaria e relações assim
leva direto a furiosa insanidade.
E a quinta geração de puritanos, se não for obscenamente depravada,
é idiota. Por isso, você tem de escolher.
--- "A Indecência Pode Ser Saudável".
20.10.02
Ana Cristina Cesar
Me deu uma dor forte de repente e eu disse -- me leva para o hospital.
O casal do lado me levou no carro.
Tinha fila na emergência. Eu fiquei chorando e espiando a folia que não quero contar como é que era. Quando voltei ele estava pálido e contou que tinha desmaiado.
Ele é tão grande e mesmo com dor eu ia pôr no colo. Fiquei sabendo melhor como é o desmaio.
Você não apaga -- acende uma velocidade de sonho sólido, e você vê Tudo num minuto. Até a sala de ópio com Fats Waller cantando Two Sleepy People em câmera bem lenta: no coração de Paris uma câmara de sonho oriental, tapetes persas fechando as paredes e almofadas fechando os olhos como no paraíso. Você pode também sentar de novo na Place des Vôges, que é perfeita, cartão postal mágico voador. Parece que você vê e pega, ou fica completamente dentro. Não é uma esponja nem uma bagatela. Até a travessia do canal, ou a primeira vez que alguém te cobriu de beijos, ou o nervoso de perder o trem por dois minutos. É um cinema hipnótico, sem pernas. Não é vago.
--- Em "Luvas de Pelica".
15.10.02
Rio em preto-e-branco
Nos anos 1930, o aluguel de um apartamento mobiliado na Cinelândia (centro do Rio) custava 400 mil réis. Na época, só uma elite emergente podia morar bem nessas vizinhanças. Um médico bem-sucedido podia ganhar 1:500.000 ( 1 conto e 500 mil réis), um operário têxtil ganhava 240 mil réis por mês e uma empregada doméstica, 120 mil. O quilo de arroz custava no mínimo 500 réis, o açúcar, 700; o bacalhau, 2.100; café, 2.400; carne de primeira e frango, 2.000; feijão preto, 500; leite, 800 o litro, e ovos, 2.200 a dúzia. Já um par de sapatos de pelica, modelo Luís XV, para moças de fino trato chegava a custar 36 mil réis. Nessa época o rádio e a propaganda incentivavam os "novos" hábitos: "Não há mais belo destino para um cigarro do que o de luzir, como um astro, nos lábios de uma mulher bonita." Nas ruas trafegavam os ônibus de dois andares, os "chope-duplo", os táxis passaram a calcular a corrida por taxímetros e ganhou popularidade o hábito de se tomar café em pé, no balcão. No comércio estabelece-se o "horário comercial" e as vendas são incrementadas com a introdução do crediário. Um grande número de mendigos "transfere-se" para São Paulo, alegando que lá serão tratados com mais civilidade, pois um decreto recém-criado os protegia da polícia. Dizia-se que alguns chegaram a fazer fortunas só de pedir esmolas. Nas farmácias podia-se comprar 5 gramas de cocaína malhada a 2.000 réis, e uma ampola de heroína custava 1.500. Na Lapa bebia-se cerveja por 1.100 a garrafa. Com seus casarões antigos de paredes enegrecidas, seus bares, restaurantes, cabarés e bordéis, a Lapa era ponto de encontro de intelectuais e artistas. Freqüentavam a Lapa Plínio Salgado, San Tiago Dantas, Noel Rosa, Assis Valente, Heitor dos Prazeres, Cartola, Nelson Cavaquinho, Francisco Alves, Araci de Almeida, Jorge Amado, Cândido Portinari, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda, Rubem Braga, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Madame Satã, um dos mitos do bas-fond, e muitos outros. No final dos anos 1930 a polícia do Estado Novo fechou todos os bordéis da Lapa, decidida a acabar violentamente com a prostituição na Capital Federal. Nos anos 1940, o bairro entra em franca decadência devido à Segunda Guerra Mundial. A Lapa é invadida por marinheiros americanos vomitando dólares e pelos "falsos malandros", deixando de ser a partir daí a Montmartre carioca.
14.10.02
Torquato Neto
o poeta nasce feito
assim como dois mais dois
; se por aqui me deleito
é por questão de depois
a glória canta na cama
faz poemas, enche a cara
mas é com quem mais se ama
que a gente mais se depara
ou seja:
quarenta a sete quilates
sessenta e nove tragadas
vinte e sete sonhos, noites,
calmas, desperdiçadas.
saiba, ronaldo, acontece
uma vez em qualquer vida:
as teias que a gente tece
abrem sempre uma ferida
no canto esquerdo do riso?
no lado torto da gente?
talvez.
o que mais forte preciso
não sei sequer se é urgente.
nem sei se eu sou o caso
que mais mereço entender -
de qualquer forma, o A-caso
me deixa tonto. e querer
não é sentar, ter na mesa
uma questão de depois:
é, melhor, ver com certeza
quem imagina um mais dois.
-
assim como dois mais dois
; se por aqui me deleito
é por questão de depois
a glória canta na cama
faz poemas, enche a cara
mas é com quem mais se ama
que a gente mais se depara
ou seja:
quarenta a sete quilates
sessenta e nove tragadas
vinte e sete sonhos, noites,
calmas, desperdiçadas.
saiba, ronaldo, acontece
uma vez em qualquer vida:
as teias que a gente tece
abrem sempre uma ferida
no canto esquerdo do riso?
no lado torto da gente?
talvez.
o que mais forte preciso
não sei sequer se é urgente.
nem sei se eu sou o caso
que mais mereço entender -
de qualquer forma, o A-caso
me deixa tonto. e querer
não é sentar, ter na mesa
uma questão de depois:
é, melhor, ver com certeza
quem imagina um mais dois.
-
Rogério Duarte
Depois que eu deixei crescer a barba as coisas continuaram igualmente confusas, exceto pelo acréscimo da barba que se associa ao antigo caos e o revela com aparente nova fúria. Não sei mesmo por que me permiti tal embuste (sim, nada agora merece mais do que este qualificativo).
Foi depois da visita à fazenda natal e do retrato do bisavô peludo que acabou por me sugerir reencarná-lo. Caricatura do meu passado me tornei porque caricaturei a busca de mim mesmo indo atrás dos detritos que o meu caminho deixou à margem.
Estranho às vezes o meu corpo assusto-me frente ao espelho na vã tentativa de captar-me outro e recebê-lo na minha ternura ou, menos ainda, procurando especular sobre a aparência nova e suas possibilidades de realizar o paradoxal embuste de parecer humana, coisa aliás que não se realiza é apenas em função da minha recusa.
Terá que ser desta mesma guitarrística maneira o continuar no ato de fazer a ladainha dos pães de cada dia. Talvez tenha descoberto eu hoje uma maneira nova: não se trata de cometer o verbo mas sim de esgotar-se no só afã de cometê-lo, ou de convencionar-se para si a fatalidade de cumpri-lo. Isto poderia se compreender imaginando-se a ação de modo a não diferenciá-la da não-ação. E é tangível quando tragicamente se cai na penumbra da unidade, ou zona do fenômeno.
Talvez, se a fidelidade a cada dia me compra o direito de depuração contínua, eu chegue a escutar a viva voz que articula a vibração do manifesto.
Guitarristicamente tecendo em dedos e espera-deflagração.
Que chance? O meu destino desenvolveu-se enquanto eu mantinha os olhos tapados e já nem me reconheço nele.
Brutalmente a qualquer momento pode surgir a vida, eu sei que não estou preparado. O medo, que é sombra da luxúria, aproveitou-se do meu corpo inteiro como morada do seu escuro.
Eu sinto, quando estou falando com alguém, nitidamente a sensação de não controlar a espontânea linguagem de loucura e sofrimento que torna como que desconcertantemente ridícula (já que a cobre e nega) a comunicação esboço-vomitada.
É absolutamente igual à fé na chegada do Messias o prognóstico sobre a passagem de um Cometa. Se nos voltamos para o grande corpo, sem um sequer leve cilício, tomamos o líquido aviso, confundimos a nossa alma com Ele.
Daqui a alguns anos a moral será uma ciência misteriosa ao alcance apenas de uns poucos iniciados que, de resto, ninguém viu. A Fé, as Leis etc. serão no Futuro não muito distante de uns duzentos anos como hoje são a alquimia, astrologia e lá vai fumaça...
Eu sou muito amigo do Rei, eu me dou bem com o Rei, Eu sou o outro Rei.
Hereafter all will be different, you need to get a very human face...
--- Na revista "Navilouca", anos 1970.
7.10.02
Guilhem de Peitieu
Fiz um poema sobre nada:
Não é de amor nem é de amada,
Não tem saída nem entrada,
Ao encontrá-lo,
Ia dormindo pela estrada
No meu cavalo.
Eu não sei quando fui gerado:
Não sou alegre nem irado,
Não sou falante nem calado,
Nem faço caso,
Aceito tudo o que me é dado
Como um acaso.
Não sei quando é que adormeci,
Quando acordei também não vi,
Meu coração quase parti
Com o meu mal,
Mas eu não ligo nem a ti,
Por São Marcial.
Estou doente e vou morrer,
Não sei de quê, ouvi dizer,
A um médico vou recorrer,
Mas não sei qual,
Será bom se me socorrer
E se não, mau.
Tenho uma amiga, mas quem é
Não sei nem ela sabe e até
Nem quero ver, por minha fé,
Pouco me importa
Se há normando ou francês ao pé
Da minha porta.
Eu não a vi e amo a ninguém
Que não me fez nem mal nem bem
E nem me viu. Isso, porém,
Tanto me faz,
Que eu sei de outra, entre cem,
Que vale mais.
Finda a canção, não sei de quem,
Irei passá-la agora a alguém
Que a passará ainda além
A amigo algum,
Que logo a passará também
A qualquer um.
--- "Canção", séc. 12.
Não é de amor nem é de amada,
Não tem saída nem entrada,
Ao encontrá-lo,
Ia dormindo pela estrada
No meu cavalo.
Eu não sei quando fui gerado:
Não sou alegre nem irado,
Não sou falante nem calado,
Nem faço caso,
Aceito tudo o que me é dado
Como um acaso.
Não sei quando é que adormeci,
Quando acordei também não vi,
Meu coração quase parti
Com o meu mal,
Mas eu não ligo nem a ti,
Por São Marcial.
Estou doente e vou morrer,
Não sei de quê, ouvi dizer,
A um médico vou recorrer,
Mas não sei qual,
Será bom se me socorrer
E se não, mau.
Tenho uma amiga, mas quem é
Não sei nem ela sabe e até
Nem quero ver, por minha fé,
Pouco me importa
Se há normando ou francês ao pé
Da minha porta.
Eu não a vi e amo a ninguém
Que não me fez nem mal nem bem
E nem me viu. Isso, porém,
Tanto me faz,
Que eu sei de outra, entre cem,
Que vale mais.
Finda a canção, não sei de quem,
Irei passá-la agora a alguém
Que a passará ainda além
A amigo algum,
Que logo a passará também
A qualquer um.
--- "Canção", séc. 12.
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