14.8.13

Manuel António Pina


A poesia vai acabarA poesia vai acabar, os poetas 
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros 
(enquanto os pássaros não 
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao 
entrar numa repartição pública. 
Um senhor míope atendia devagar 
ao balcão; eu perguntei: "Que fez algum 
poeta por este senhor?"    E a pergunta 
afligiu-me tanto por dentro e por 
fora da cabeça que tive que voltar a ler 
toda a poesia desde o princípio do mundo. 
Uma pergunta numa cabeça. 
— Como uma coroa de espinhos: 
estão todos a ver onde o autor quer chegar? — 












Como se desenha uma casa
Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.
Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.
Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.
Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.

O quarto
Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste
para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.
A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.
Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.
Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.