31.8.13

Ana Hatherly




Esta noite morrerás

Esta noite morrerás. 
Quando a lua vier tocar-me o rosto 
terás partido do meu leito 
e aquele que procurar a marca dos teus passos 
encontra urtigas crescendo 
por sobre o teu nome. 
Esta noite morrerás. 
Quando a lua vier tocar-me o rosto 
terás partido do meu leito 
e uma gota de sangue ressequido 
é a marca dos teus passos. 
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio 
e na casa do tempo a hora é adorno. 
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca 
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo 
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome. 
Constante. 
O mar é isso. 
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo 
por sobre o teu nome. 
O mar é tu morreste. 
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu par- 
tiste e no meu leito crescem folhas sangue. 
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua 
e a opacidade do mar. 
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um 
prisma, um girassol em panóplia. 
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu teres 
partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus 
passos por sobre o meu rosto. 

A noite é eu procurar a marca dos teus passos. 
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações 
de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito 
é o teu rosto iminente. 
A lua é uma seta. 
Tu partiste é o silêncio em forma de lança. 
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier 
tocar-me o rosto vou uivar como um lobo. 
Vou clamar pelo teu sangue extinto. 
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos, 
a tua língua solta. 
O teu ventre, lua. 
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que 
o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto. 
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço 
um pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca
dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de 
noite e urtigas crescerem no meu leito. 
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe 
o coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão 
mágica de tu poderes morrer-te. 
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro
para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos 
teus passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado. 
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de 
tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto. 




A idade da escrita 


I

Costumo dizer que a minha atividade começa com a
escrita
porque toda a minha atividade gira à volta da escrita.
Mas não há só uma escrita nossa
a que escrevemos para nós:
a escrita é POR CAUSA DO TEMPO
é POR CAUSA DOS OUTROS
é para não esquecermos
é para sermos lembrados é PARA SERMOS ALÉM DE 
EXISTIRMOS
sinal
        vínculo
                    aceno

Costumo dizer que a nossa era é 
a era da ESCRITALIDADE
a da IDADE DA ESCRITA
porque a nossa era é
a era da ESCRIBATURA
a IDADE DA ESCRAVATURA DA ESCRITA

A noção de ESCRITA alargou-se
a TUDO
a QUASE TUDO
porque a escrita é sinônimo de IMAGEM
magem para se ver
                             para se ter
                                              para se ser

Escrevo para compreender
para apreender:
a escrita é o que me revela
                                    um mundo
                                                o mundo


II

Escrevo e descrevo
e descrevendo
o tempo insere-se nas linhas
e nas entrelinhas em que escrevo
escrevendo imagens
que a si mesmas se descrevendo
descrevendo o tempo
A ESCRITA
é petrificada imagem de um percurso
do rio antigo
da seta temporal

Ainda não sabemos pensar de outro modo

De caminho o arabesco insinua-se 
e mesmo quando maquinal
a escrita prolonga A MÃO
é o prolongamento extensíssimo da mão
Indica:
           disciplina
                            explosão contida
Onda surda é a escrita.




 


O vermelho por dentro

Estão envolvidos em corpos negros vermelhos por

dentro. Estão num barco sobre o mar e o mar é

negro. É de noite. O céu está negro e sobre a

água negra tudo é vermelho por dentro


Os corpos eram negros
sobre o mar a água era de noite
não se via o vermelho por dentro
os corpos não se viam
eram barcos com os ventres todos negros
e as línguas eram de águas muito rentes.

A sangue não sabia
não se via o vermelho por dentro
o céu a água envolvia
tudo envolvia nos vermelhos dentros
e os mares todas as noites estavam negros
negros por dentro
E a água volvia pelo céu tão negra
e à noite por dentro do mar todo vermelho
a noite era vermelha
e os barcos negros por dentro
E nos corpos a água negra era vermelha por dentro
e eles estavam envolvidos
e