15.6.06
Álvares de Azevedo
É ela! É ela! - murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou - é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura -
A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! de certo... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! É ela! - repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas
Se achou-a assim mais bela - eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! É ela! meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! É ela! - murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou - é ela!
6.6.06
Trilogia suja de Havana
Estou leve demais para chorar. Não tenho desejos, ou não consigo rezar, nem agradecer. Nunca peço nada a Deus. Só agradeço. Tenho sempre muita coisa para agradecer, mas agora não. Estou transparente, vazio como o ar. Levantei-me e segui pela Carlos III Unter der Linden. Era uma boa hora. O entardecer. O crepúsculo e as árvores. A hora das libações, como dizia a mulher mais bonita que tive na vida. Neste horário o marido dela estava libando em algum bar e só voltava depois das dez da noite. E eu aproveitava para fazer pequenas orgias de duas ou três horas com ela, que afinal terminavam com todos libando juntos, a partir das dez, como bons amigos ao fim e ao cabo. Tenho a impressão de que ele desconfiava de alguma coisa, mas isso já é outra história. Desde então, o crepúsculo sempre foi terrível para mim.
Nada de libações, Pedro Juan, disse para mim mesmo. Aí me dei conta de que eu era um mendigo de merda. Um pedinte asqueroso. Sujo, com barba de dois dias. Estava sem sapatos e sem camisa, andando ainda meio bêbado, quase inconsciente. Podia pedir esmola e comprar alguma coisa de comer. Depois resolvia que droga ia fazer para voltar para o meu quarto e agarrar a Cusa pelo pescoço e acabar com a raça dela. Por que você me deixou ali caído, sua filha da puta? , haveria de perguntar-lhe, só que entre bofetões. Gosto de dar uns bons sopapos nas mulheres, quando elas merecem. E vou comer a Cusa desse jeito. Dando bofetões na cara dela. Bem ardidos, bem doídos, vou encher a cara dela de bolacha e quando meu pau ficar duro, meto nela. Ahh, que bom. E a velha vai dizer: "Pare de me bater, mas ponha tudo, até o talo, papi gostoso. Pare de me bater, porra!" E na hora começa a ter orgasmos e a gritar e a ofegar com cada jato de porra. Ah, como vou gozar com aquela velha peituda.
Estendi a mão e comecei a pedir a todos os que passavam por mim. Mal balbuciava alguma coisa. Para pedir esmolas não se pode falar com clareza, nem argumentar, nem nada. Você é um animal miserável, um micróbio pedindo umas moedas pelo amor de Deus. Um pesteado.
Assim foi desde que o mundo é mundo. É toda uma arte pedir esmola e aparentar imbecilidade, cretinismo, embriaguez crônica, burrice. Só um imbecil pede esmola. Se o cara está um pouquinho acima da imbecilidade é porque pode fazer alguma outra coisa. Assim é. É preciso fazer cara de imbecil para convencer. Mas nem assim. Ninguém me deu nada! Andei muitos quarteirões Carlos III abaixo. Lentamente. Esfarrapado. Sem rumo. Com cara de louco ou de imbecil, estendendo as mãos abertas diante de todos e balbuciando. Ninguém me deu nem uma moeda! Que horror! Nada. Naquela noite eu podia ter morrido de fome. Percorri toda a Carlos III. Duas ou três horas. Não sei quanto tempo. Pedindo pelo amor de Deus. E todos viravam a cara. Olhavam para outro lado. Ou fingiam que eu era um fantasma. Eu nunca tinha pedido esmola antes. Mas é terrível pedir esmola quando as pessoas são tão miseráveis. Estão todos no fundo do poço e detestam quando outro vem se queixar. Muitos me disseram: "Não enche o saco, velho, que eu até gostaria que alguém me desse esmola."
Assim que nem um centavo. Em compensação, recuperei a lucidez. Tinha de voltar para minha casa. Por que estava retardando a hora de voltar para casa? Não queria aparecer lá arrebentado, quase desmaiado. Os vizinhos são fofoqueiros. Hoje eu entendo. A razão é essa. Um pouco mais lúcido, falei para mim mesmo: "Volte para casa, Pedro Juan, tente chegar. Já está escuro, ninguém vai ver você." Pelo jeito desliguei o piloto automático e assumi de novo o comando.
Pedro Juan Gutiérrez, em fragmento de "Pegar o touro pelos chifres", do livro Trilogia suja de Havana, 1998.
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