Sei de uma criatura antiga e formidável,
que a si mesma devora os membros e as
entranhas com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas,
E no mar que se rasga à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela, o chacal é como a rola inerme,
E caminha na terra imperturbável como,
Pelo vasto areal, um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo,
Vem a folha que, lento e lento, se desdobra.
Depois a flor, depois o suspirar do pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra,
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama-te igual amor o poluto e o impoluto,
Começa e recomeça uma perpétua lida, e sorrindo
Obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a morte,
Eu direi que é a vida.
Machado de Assis, no poema "Uma Criatura", de Ocidentais, 1889. Machado, a quem muitos julgam, imprecisamente, como um poeta de mão pesada, embora ficcionista genial, nasceu numa chácara no Morro do Livramento, hoje Bairro da Saúde no Rio. Na foto abaixo, vê-se o Cais de São Cristóvão, onde "Machadinho", para os íntimos, costumava pegar uma barca para se deslocar até o centro da cidade. Quando subiu na vida, graças a uma promoção no serviço público concedida pela Princesa Isabel e ao dinheiro que recebia dos direitos autorais de seus livros e de suas colaborações na imprensa, Machado mudou-se para o Catete, bairro luxuoso na época. O autor terminaria seus dias dedicando-se à ABL, sua Casa, e morando solitário no Cosme Velho, um bairro da alta aristocracia.
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