20.12.05

o português da estrada etc. etc.



(foto lá de Goianá -- MG)


15.12.05

Roberto Schwarz

Depois do telejornal


Pela terceira vez explico a manobra legal usada contra os pretos ativistas à velha tia surda que visito em Nova York. Seus olhos cansados postos em mim, também as mãos, são da irmã que envelhece noutro continente. Está aqui desde 42. Fugiu aos nazistas em 39, foi internada em 40 num campo francês, em 41 passou para um quartel em Casablanca, perdeu a mãe em Buchenwald e costurou seis dias por semana, 25 anos, numa fábrica de roupas no Bronx. Sem entender acena ao sobrinho do Brasil -- onde as coisas vão mal -- a cabeça que não pacienta mais com as lutas infindáveis do planeta. -- Sei que você vai dizer que explico fatos sociais como se fossem naturais, e vai pensar que sou uma velha. Mas às vezes acredito nalgum defeito genético do homem. Senão por que este gosto de brigar? É tudo muito, muito triste, e eles enquanto isto, os donos da vida como dizem os outros, os donos dos meios de produção -- a lepra do mundo, me entenda bem! a lepra do mundo -- nos acabam de trabalho, desemprego, guerra ou loucura.

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Divagações no cais


Há fuga de capitais
devido às medidas policiais
nesta não acredito mais
onde estais
que não nos achacais
meus sentimentos nacionais
diluem-se mais e mais
estranha essa paz
o que será que preparais

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Vejo num globo terrestre
de portaria de hotel
a familiar cara larga
e torta do Brasil
simpática, geografia
não é história




- Em Corações veteranos, 1974.

13.12.05




E a primeira, e a primeira, e a primeira memória, memória que tenho, que tenho de meu pai é dele me colocando no refrigerador. Ele tinha o hábito de tirar toda a roupa do meu corpo de cinco anos de idade e eu ficava sentada nua naquela prateleira prateada da geladeira. ... Então ele se abaixava em direção à gaveta dos legumes, abria a gaveta e tirava as cenouras, o aipo, a abobrinha, os pepinos. E aí ele começava a trabalhar o meu buraquinho, meu pequeno buraquinho, meu pequeno pequeno buraquinho. Meu buraquinho de menina. Me mostrando "como é ser como a mamãe", ele diz. Me mostrando "como é ser uma mulher, ser amada. Essa é uma tarefa para o papai", ele me diz. Trabalhando meu buraquinho. ... Então ouço minha mãe chegar em casa. E ela começa a gritar a plenos pulmões. "O que aconteceu com os legumes do jantar de hoje? Você andou brincando com sua comida de novo, menina? Eu ia fazer a receita favorita do seu pai." Eu apenas quero gritar, mas não posso, claro, "Mamãe, abra seus olhos! VOCÊ NÃO SABE QUE EU SOU A FAVORITA DO PAPAI?"



Karen Finley, no monólogo do "Refrigerador", San Francisco, 1990. Na foto, a polêmica autora e performer atuando em George and Martha, 2004.


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7.12.05

Oswald de Andrade



Fatigado
Das minhas viagens pela terra
De camelo e táxi
Te procuro
Caminho de casa
Nas estrelas
Costas atmosféricas do Brasil
Costas sexuais
Para vos fornicar
Como um pai bigodudo de Portugal
Nos azuis do clina
Ao solem nostrum
Entre raios, tiros e jabuticabas.



Oswald de Andrade, "Fim de Serafim", 1929.


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6.12.05

Poesia africana

Poesia africana -- 2 momentos



Ser tigre


O tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo,
infra-sémen.

Não tem forma,
é quase nada, parece morto.

Porém existe,
por isso espera.

Epopéia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,

Ele será
quando for tempo disso.


(Arménio Vieira, Cabo Verde, 1999.)

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Em teus dentes


Em teus dentes
o sol
é diamante de fantasia
a lua
caco-de-garrafa
e
a mentira
verdade vagabunda
errando de cágado
em torno da lagoa dos olhos da noite
na treva aveludada
de tua pele
os dedos curiosos
são estrelas de marfim
à busca
de um dia caprichoso
despontando de miragem
por detrás das corcundas de elefantes adormecidos


(Arlindo Barbeitos, Angola)



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2.12.05

Gregório de Matos


QUANTA ADMIRAÇÃO QUE LHE CAUSARAM AS MUDANÇAS DO SÍTIO.


Ou o sítio se acabou,
ou o mudaram daqui,
ou eu às cegas o vi,
e a cegueira me cagou:
quando o sítio me logrou,
ou eu o sítio lograva,
o sítio me enfeitiçava,
pelo sítio me morria,
pelas fêmeas, que ali via,
pelas saídas, que achava.

Havia umas fermosuras
mui ledas, e mui louçãs
para qualquer sim mui chãs
para qualquer não mui duras:
hoje há quatro más figuras
mui presumidas, e inchadas,
querem-se muito adoradas,
porém com pretexto errado,
e é que ao fazer do pecado
são fidalgas estiradas.

Outras putinhas malsins
me têm cercado de sorte,
que por ver-me em mãos da morte
não me dão descarga aos rins:
mas como nestes confins
tenho tanta parentela,
dando uma vista a Castela
me deparou logo Amor
na terra uma linda flor,
no céu uma rica estrela.

Fretei-a a pouco trabalho,
e mui pouco me custou,
porque era do ferro, ou
porque era amiga do alho:
veio buscar-me sem falho,
inda durava o luar,
não veio para ficar,
mas eu contudo finquei-o:
com que se a ficar não veio,
contudo veio a fincar.

Como tenho já segura
a carne no garavato,
me rio, que o sítio ingrato
tenha, ou não tenha fartura:
porque em sendo conjuntura,
que é lá pela noite alta,
nunca a Mulatinha falta,
e dêem-me outra Parda forra
em que tudo isto concorra,
geme, gosta, atura, e salta.



Gregório de Matos


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