28.6.04

Era uma vez o Pedro Malasarte



Era uma vez o Pedro Malasarte e foi ter a uma serra aonde havia uma casa de ladrões, e depois ele pediu socorro que era um triste barbeiro que andava a fazer barbas, e depois eles fugiro todos dele, e só ficou um resolvido a gardar o jantar, e depois o Pedro Malasarte dixe assim: -- "Ó meu senhor, trá-la barba tão grande... eu faço-la." O ladrão afastou-se e ele fez-la barba, e depois dixe que ele botasse a língua de fora, e cortou-la e comeu o jantar; depois o ladrão começou a fugir pelo monte abaixo e dizia: "explorai por mim!" porque não podia dizer "esperai!" E os outros cada vez fugio mais. Depois eles foro fazer o jantar para outra serra. O Pedro Malasarte subiu para cima de um pinheiro na serra e levou para lá uma cancela velha, e eles stavo por baixo a fazer o jantar; assim que estava o jantar feito, eles descobriro as panelas e ele mijou por cima delas, e depois dizem eles: "Este molhinho vem do céu, há de ser gostoso"; o Pedro Malasarte fez então a sua vida sobre as panelas, e eles dixero que a marmelada que era boa; depois ele botou-lo a cancela velha pela cabeça abaixo; e eles dixeram ansim: "Ora sempre isto agora foi demais; se vem aí o céu velho, logo vem o novo, vamos a fugir", depois olharo pra cima do pinheiro e dixero: "Ai que ele é o Pedro Malasarte, vamos fugir!" Depois dizem eles: "De que modo nos havemos de vingar?" Foro para a beira de um rio e fizero um homem de visgo[de cera]. Daí a poucos dias, ele passou por lá: "Ora para que estará este home aqui? Deixa-me dar-lhe um pontapé." Deu-le um pontapé e ficou lá com o pé; deu-le oitro pontapé e ficou com oitro pé; deu-le com os braços, ficou lá também; infim ficou lá todo. Depois ficou lá três dias; estava quase morto, passou lá o ladrão que fez o homem de visgo e atirou ao rio o homem de visgo e o Pedro. Adeus, ó Vitória, acabou-se a história!


(Conto popular português, da tradição oral, narrando as aventuras de Pedro Malasarte, registrado em Tradições Populares de Portugal, de J. Leite de Vasconcelos, 1882.)



23.6.04

Sylvia Plath



Aqui estou, um monte de recordações do passado e sonhos futuros reunidos num monte de carne razoavelmente atraente. Lembro-me do que esta carne já passou, sonho com o que passará. Registro aqui a ação dos nervos óticos, das papilas gustativas, da percepção sensorial. E penso: sou apenas uma gota a mais no imenso mar de matéria, definida, com a capacidade de perceber minha existência. Entre os milhões, ao nascer eu também era tudo, potencialmente. Eu também fui cerceada, bloqueada, deformada por meu ambiente, pela manifestação da hereditariedade. Eu também arranjarei um conjunto de crenças, de padrões pelos quais viverei, e no entanto a própria satisfação de encontrá-los será manchada pelo fato de que terei atingido o ápice em matéria de vida superficial, bidimensional -- um conjunto de valores. Esta solidão diminuirá e desvanecerá, sem dúvida, quando amanhã eu mergulhar novamente nos cursos, na necessidade de estudar para os exames. Mas agora este falso objetivo foi suspenso e giro num vácuo temporário. Em casa, descansei e me diverti, aqui onde trabalho a rotina foi momentaneamente suspensa e me perdi. Não há outro ser vivo na terra neste momento além de mim. Poderia percorrer os corredores, por todos os lados os quartos desertos escancarariam as portas para zombarem de mim. Meu Deus, a vida é solidão, apesar de todos os opiáceos, apesar do falso brilho das "festas" alegres sem propósito algum, apesar dos falsos semblantes sorridentes que todos ostentamos. E quando você finalmente encontra uma pessoa com quem sente poder abrir a alma, pára chocada com as palavras pronunciadas -- são tão ásperas, tão feias, tão desprovidas de significado e tão débeis, por terem ficado presas no pequeno quarto escuro dentro da gente durante tanto tempo. Sim, há alegria, realização e companheirismo -- mas a solidão da alma, em sua autoconsciência medonha, é horrível e predominante...


(Sylvia Plath, em seus Diários, 1950.)

18.6.04

Jorge Luis Borges


O Punhal



Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, nos fins do século passado; Luis Melián Lanifur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; em algum momento, Evaristo Carriego teve-o na mão.

Quem o vê tem de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o procuravam; a mão se apressa a apertar a empunhadura que a espera; a lâmina obediente e poderosa encaixa com precisão na bainha.

Outra coisa quer o punhal.

É mais que uma estrutura feita de metais; os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno o punhal que ontem à noite matou um homem em Tacuarembó e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.

Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o empunha, porque o metal se anima, o metal que pressente em cada contato o homicida para quem o criaram os homens.

Às vezes me dá pena. Tanta dureza, tanta fé, tão impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.



16.6.04

Ana Cristina Cesar



Último adeus III

Tenho escrito longamente
sobre esse assunto
Aizita traz o chá
Bebericamos na varanda
Nenhum descontrole na
tarde
Intervalo para as folhas
caindo da árvore em
frente
que nos entra pela janela
Não precisamos nos dizer
nada
O parapeito vaza outra
indicação
seca do presente
Ouvimos:
outra indicação seca do
presente
Aizita vai ver na folhinha
pendurada no prego da
cozinha
Acaba o chá
Acaba a colher de chá
Longamente
Eu também, bem, tenho escrito


Ana Cristina Cesar

13.6.04

W. H. Auden



Não, Platão, Não

Não consigo pensar em nada
que eu desejasse menos ser
que Espírito desencarnado
sem poder comer ou beber
e nem contactar superfícies
ou sentir os cheiros do estio
ou compreender palavra e música
ou olhar para o que está além.
Não, Deus me colocou bem lá
onde eu teria escolhido estar:
bom mesmo é o mundo sublunar,
no qual o Homem é macho ou fêmea
e dá Nomes Próprios às coisas.

Posso, porém, conceber que os
órgãos que Me deu a Natureza
tais minhas glândulas endócrinas,
dando duro vinte e quatro horas
sem demonstrar ressentimento,
para satisfazer-Me, seu Mestre,
e manter-Me sempre em boa forma
(não que eu lhes tenha dado as ordens,
pois não saberia o que gritar),
sonhem com uma outra existência
que não a que até então conhecem:
sim, talvez minha Carne esteja
rezando para que "Ele" morra
e, livre, Ela possa tornar-se
Matéria irresponsável.


As antigas damas japonesas


As antigas damas japonesas
distraidamente
agitam seus leques
no solitário mundo dos biombos

A distração
porém
é uma forma superior de ocultação
e
na enorme aridez
do seu íntimo domado
o rugido da raiva
estava contido
artisticamente comprimido
no extravagante cinto
que traziam
atado nas costas

Tocavam
dançavam
serviam o chá de joelhos
num secular seqüestro

Mas às vezes
num intervalo do desvelo
da hora e do pudor
descobriam
o esquisito sabor
que tem o crime


Ana Hatherly



4.6.04

Anúncios


Oferece-se desespero
em excelente estado,
e espaçoso beco-sem-saída.
A preços vantajosos.

Vende-se terreno
baldio e fértil
por falta de sorte e disposição.

E tempo
totalmente por utilizar.

Informações: no beco.
Horário: sempre.

..........

Do sonho


O dia acordou.
Levantou-se na ponta dos pés
e viu o mundo
ainda deitado com os sonhos
e incantações da noite.

Subiu aos montes,
deslizou pelas colinas
e escorreu para a cidade
apressado.

Apagou os candeeiros das ruas
esganou
sombras escondidas nos pátios e nas esquinas,
e depois de repartir pelos humanos
angústias e problemas
encarregou-os de o levar até o fim.

Depois deu pela minha ausência
(estava ainda no meio do sonho
a negociar uma felicidade),
abriu a minha janela fechada
e com todo o seu peso caiu sobre mim
interrompendo as negociações.


Kiki Dimoulá

3.6.04

Nelson Rodrigues

De vez em quando entro na redação e vou dizendo, de passagem: "Dura nossa profissão de estilista!" Alguns acham graça e outros amarram a cara. Todavia, se pensarmos bem, veremos que nem uns nem outros têm razão. Pergunto: por que rir ou zangar-se com uma piada que nem piada é? Trata-se de uma verdade, nada mais que verdade. Realmente, vivemos a mais antiliterária das épocas. E mais: não só a época é antiliterária. A própria literatura também o é.

Os idiotas da objetividade hão de rosnar: "Que negócio é esse de literatura antiliterária?" Parece incrível, mas aí está outra verdade límpida, exata, inapelável. Onde encontrar uma Karenina? Uma Bovary? Conhecem algum Cervantes? Um dia, Sartre esteve na África. Na volta, deu uma entrevista. Perguntou um dos rapazes da reportagem: "Que diz o senhor da literatura africana?" Vejam a resposta do moedeiro falso: "Toda a literatura africana não vale a fome de uma criancinha negra."

Vamos imaginar se, em vez de Sartre, fosse Flaubert. Que diria Flaubert? Para Flaubert, mil vezes mais importante do que qualquer mortalidade infantil, ou adulta, é uma frase bem-sucedida. Se perguntassem a Proust: "Entre a humanidade e a literatura, quem deve morrer?" Resposta proustiana: "Que pereça a humanidade e viva a literatura."

Portanto, os estilistas, se é que ainda existem, estão condenados a falar sozinhos. Por outro lado, os escritores, em sua maioria absoluta, estão degradando a inteligência em todos os países, em todos os idiomas. É meio insultante chamar um escritor de escritor. Outro dia, num sarau de escritores, chamaram um romancista de romancista. O ofendido saltou: "Romancista é você!"

Diz o PC russo: "No tempo do czar, Tolstoi era o único escritor de Tula. Hoje, Tula tem para mais de 6 mil escritores." É verdade. Cabe, todavia, um reparo: "É que os 6 mil escritores contemporâneos não são dignos nem de amarrar os sapatos de Tolstoi."


Nelson Rodrigues, em fragmento da crônica "Inteligência Invertebrada", 1972.

2.6.04

Nariz, nariz, e nariz,
Nariz, que nunca se acaba;
Nariz, que se ele desaba,
Fará o mundo infeliz;
Nariz, que Newton não quis
Descrever-lhe a diagonal;
Nariz de massa infernal,
Que, se o cálculo não erra,
Posto entre o Sol e a Terra,
Faria eclipse total!


Bocage