28.1.04

Pedro Oom




Actuação Escrita



Pode-se escrever
Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever



26.1.04




Tínhamos discussões intermináveis. Eu lhe mostrava meus textos e ele dizia: tu não tens fôlego, meu chapa, tudo acaba muito depressa, tu não desenvolve o personagem, o personagem fica por aí vagando, não tem espessura, não é real. Mas é só isso que eu quero dizer, não quero contornos, não quero espessura, quero o cara leve, conciso, apressado de si mesmo, livre de dados pessoais, o cara flutua, sim, mas é vivo, mais vivo do que se ficasse preso por palavras, por atos, ele flutua livre, entende? Não. E ajeitava os óculos, não e não. Achei conveniente não lhe mostrar mais os textos. Ele me encontrava e insistia: hof hof hof, fôlego, meu chapa, fôlego, espanta as nuvenzinhas flutuantes, dá corpo às tuas carcaças, afunda os pés no chão. Eu implorava: pára com isso, pára, um dia quem sabe tu entendes. Não entendeu. Na frente de amigos, de minha mulher, de meus filhos ele começava: hof hof hof, fôlego, meu chapa. Um dia fomos à praia. Entre uma caipirinha e outra propus-lhe nadar até a ilha. Disse um sim chocho, mas topou. No meio da travessia, enquanto ele se afogava, eu aperfeiçoava a minha butterfly, e meu ritmo era rápido, harmonioso, cheio de vigor. Gritei-lhe antes de vê-lo desaparecer: fôlego é isso, negão. Estou em paz. E dedico-lhe este meu breve texto, leve, conciso, apressado de si mesmo, livre de dados pessoais, muito mais vivo do que ele morto.

Hilda Hilst, em Cartas de um Sedutor, 1991.

23.1.04



22.1.04



20.1.04





18.1.04

espelho, sim
entre outras coisas



a cidade amanheceu cinza. Agora chove.
Eu sento aqui, operando por instrumentos.

Se estiver beijando alguém,
pensa em mim esta noite.


erotismo&poesia: O Lado B

17.1.04

André de Leones





INEPTISSIMA VANITAS

Eis que passo a noite tresloucado,
alto e baixo,
pá virada,
memória rouca a oprimir no riso
minha tristeza mais autêntica.
E tive febre, como de praxe.
O senhor entende, pai, o senhor sabe,
ando num esforço crescente pelo mínimo,
um mundo de pequenas boas coisas
que não me deixaram engolir.
Hoje não há hoje:
eis-me num auto-reverse inexorável,
dois olhos na nuca e nenhum na cara,
nenhum mesmo.
Deixo meio mundo aí plantado
no aguardo de notícias.
Eu os convido a me ignorar.
Amontoando versos e noites insones. Tudo é volta ao pó.
Pode ficar quieto que te alcançam.


COMO PERDER-SE DO PRÓPRIO NOME

Um sopro.
Não sou nenhum taumaturgo aferrado
à minha sombra, desinência do possível.
Minhas unhas estão grandes,
você diz do seu nicho, degrau do meio da escada.
O gelo acabou, bebemos vinho quente;
minha embriaguez salta aos olhos,
aos pés, inconsciente. Ali, bem aqui.
Você se dobra e é de fato uma mulher.
Sou do tempo em que um gemido seu
era poesia. Um seio à mostra, à mão, já transcendia tudo.
O que busco de beber que não encontro aqui?

16.1.04

António Botto

Canções

Pedir
amparo a alguém é uma loucura.
Pedir amor,
Também nada resolve – e para quê?

O amor corre – e em seus próprios movimentos
Isola-se, e de tudo parece que descrê;
E quando vem dizer-nos que é verdade,
Vê-se a mentira
Em que ele a rir afirma o que não vê.


Inédito

Nunca te foram ao cu
Nem nas perninhas, aposto!
Mas um homem como tu,
Lavadinho , todo nu, gosto!

Sem ter pentelho nenhum
com certeza, não desgosto,
Até gosto!
Mas... gosto mais de fedelhos.

Vou-lhes ao cu
Dou-lhes conselhos,
Enfim... gosto!


15.1.04

Não deixe que a verdade estrague uma boa história





14.1.04

"Era um douto, ao dar-me disse dou-to."


-- inscrição anônima no reservado feminino da Academia Brasileira de Letras, anos 90.

13.1.04

Rogério Sganzerla



Meu filme é um far-west sobre o Terceiro Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros pois para mim não existe separação de gênero. Então fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia ou chanchada (não sei exatamente) e ficção científica. (...) Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, mal comportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário. Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais. Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelando as leis secretas da alma e do corpo explorado, desesperado, servil, colonial e subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais, aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à cretinice do "Boca de Ouro", passando por Zé do Caixão e pelos atrasados pescadores de Barravento. Assim, o Bandido da Luz Vermelha é um personagem político na medida em que é um boçal ineficaz, um rebelde importante, um recalcado infeliz que não consegue canalizar suas energias vitais.

Rogério Sganzerla, em manifesto de 1968 sobre seu filme O Bandido da Luz Vermelha.



12.1.04

e. e. cummings


eu
estou
te pedindo
querida é pra
que mais poderia um
não mas não é o que
claro mas você não parece
entender que eu não posso ser
mais claro a guerra não é o que
imaginamos mas por favor pelo amor de Oh
que diabo sim é verdade que fui
eu mas esse eu não sou eu
você não vê que agora não nem
sequer cristo mas você
precisa compreender
como porque
eu estou
morto





10.1.04

"É um bom exercício mental fazer uma crítica demolidora quando se está de acordo", disse o Joaquim Godinho, amigo do Vamos Lixar Tudo.

8.1.04

Não revolvas pedras miúdas




mais do que o leite, cândida
mais do que a água, branda
mais do que liras, harmônica
mais do que um cavalo, impetuosa
mais do que a rosa, frágil
mais do que um manto leve, imponderável
mais do que o ouro, áurea

agora estes versos vou cantar, lindamente,
para encantar as amigas

em Creta, era assim que as mulheres dançavam
ao som de músicas, cercando o divino altar,
pés delicados sobre as flores tenras da relva

a Lua já se pôs, as Plêiades também; é meia-
noite; a hora passa e eu,
deitada estou, sozinha

as ervilhas, áureas, despontavam nas margens

Afrodite em trono de cores e brilhos,
imortal filha de Zeus, urdidora de tramas!
eu te imploro: a dores e mágoas não dobres,
Soberana, meu coração

os que me condenam,
que o vento e suas aflições os carreguem


Safo (c. 625-580 a.C.). Seleção aleatória de fragmentos da lírica. Obra de referência Safo de Lesbos, Poemas e Fragmentos, trad. de Joaquim Brasil Fontes, 2003. Imagem: Charles-August Mengin, 1877.

7.1.04

Mário Faustino: o crítico



Mário Faustino: o crítico


O fenômeno mais interessante da "jovem poesia brasileira" é que a qualquer momento podemos deparar com um rapaz de seus vinte anos, que nunca publicou um livro, apresentando-nos um poema bem melhor, como poesia, que uma alta porcentagem do que tem publicado muita gente grande das gerações anteriores. É verdade, por outro lado, que há em minha geração muitos falsos talentos, muitas máscaras, muita mistificação, muita desonestidade: mas a mesma coisa, e de modo talvez mais disfarçado e antipático, sucedeu com todas as outras gerações. (...) Quanto aos problemas, devem ser os mesmos das outras gerações: dificuldades econômicas (ter de trabalhar, fora da literatura bem mais do que dentro, para ganhar o panem nostrum); falta de uma vida genuinamente artística, falta de emulação, falta de debates (no Brasil quase todos os escritores, quando reunidos, ou não tocam em problemas literários ou então, se falam de literatura, é da maneira mais vaga e leviana: discussão de personalidades, troca de elogios, gratuitas afirmações de valor ou de intenção, frases feitas, detestáveis mots d'esprit...); falta de verdadeiras bibliotecas, universidades, museus, falta de revistas de cultura, falta de tradição filosófica, poética e crítica na língua, falta de um público inteligente, concorrência desleal (talvez não haja país no mundo com tanta gente errada em lugares errados) etc. Um jovem poeta brasileiro, como eu, queixa-se, entre outras coisas, do nível infraginasiano, para não dizer primário, da maioria do que é publicado aqui em livros, jornais e revistas; das tolices que é forçado a ler e a ouvir a respeito de sua poesia (elogios ou não), a respeito da arte e dos poetas que admira; da falta de amor à poesia, do egoísmo e da vaidade que registra em muitos de seus colegas mais velhos, entre os quais raríssimo é aquele que forma escola, que realmente se interessa pelo progresso da língua e da arte: vivem a pensar em self-promotion...; da falta de profissionalismo econômico e ético; da péssima qualidade de quase toda a nossa crítica literária (sobretudo quando se metem a falar de poesia) de todos os tempos; queixa-se, para resumir, de muita coisa.


-- fragmento de entrevista concedida em 1956, publicada em Mário Faustino, de Anchieta aos Concretos, org. de Maria Eugenia Boaventura, 2003.



6.1.04

Mário Faustino: o poeta

Balada
(em memória de um poeta suicida)


Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o facto
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
Do fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares -- tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não está mais comigo. Nem contigo:
Tanta violência. Mas tanta ternura.

5.1.04

Torquato Neto



a literatura, o labirinto perquiridor da linguagem escrita, o contratempo, a literatura é a irmã siamesa do indivíduo. a idade das massas, evidentemente, não comporta mais a literatura como uma coisa viva e por isso em nossos dias ela estrebucha e vai morrer. a literatura tem a ver com a moral individual e a moral individual não interessa -- não existe mais. nossa época exige a descrição de painéis e o close-up tende a não interessar nem como psicologia. não precisaremos de retornar ao teatro de máscaras porque, se queira ou não se queira, a massa onde praticamente nos perdemos já é a máscara, já nos abriga e revela, é a supra máscara. planos gerais. painéis. o homem moderno não existe como indivíduo, mas como tipo -- e esses tipos não são tantos quanto todos nós. são relativamente poucos. somente me interesso pelo tipo e cada tipo, classe, nas diversas sociedades massificadas, obedece a comportamentos mais ou menos standards. interesso-me por compreendê-los (estudá-los) e abandoná-los. meu problema, inclusive o de cama, inclusive o de mesa, inclusive o de relacionamento, é o problema do meu tipo X perdido na massa que o plano geral não estilhaça, por literário, em todos os seus (milhares, bilhares) de "exemplos": células que não têm mais vida se isoladas na psicologia do indivíduo. O cenário é agora o único personagem vivo. O cinema urbano tem que ser do-eu-meu-tal, atualizado como as atualidades, uma primeira página de jornal, painel, afresco. 

Torquato Neto, em Os Últimos Dias de Paupéria, 1973.



1.1.04

Julio Cortázar




As linhas da mão


De uma carta jogada em cima da mesa sai uma linha que corre pela tábua de pinho e desce por uma perna. Basta olhar bem para descobrir que a linha continua pelo assoalho, sobe pela parede, entra numa lâmina que reproduz um quadro de Boucher, desenha as costas de uma mulher reclinada num divã e afinal foge do quarto pelo teto e desce pelo fio do para-raios até a rua. Ali é difícil segui-la por causa do trânsito, mas prestando atenção a veremos subir pela roda do ônibus estacionado na esquina e que vai até o porto. Lá ela desce pela meia de náilon da passageira mais loura, entra no território hostil das alfândegas, sobe e rasteja e ziguezagueia até o cais principal, e aí (mas é difícil enxergá-la, só os ratos a seguem para subir a bordo) atinge o navio de turbinas sonoras, corre pelas tábuas do convés de primeira classe, passa com dificuldade a escotilha maior, e numa cabine onde um homem triste bebe conhaque e ouve o apito da partida, sobe pela costura da calça, pelo jaleco, desliza até o cotovelo, e com um derradeiro esforço se insere na palma da mão direita, que nesse instante começa a fechar-se sobre a culatra de um revólver.


Julio Cortázar, em Histórias de cronópios e de famas, 1964.