29.10.03

Dos Diários de Virginia Woolf


Não: não quero qualquer introspecção. Registro a frase de Henry James: Observar sem cessar. Observar a aproximação da velhice. Observar a cobiça. Observar meu próprio desalento. Isto significa que ele se torna útil. Ao menos é o que espero. Teimo em aproveitar ao máximo esta época. Vou tombar com minha bandeira desfraldada. Percebo que isto tende à introspecção; mas não chega a tanto. Vamos supor que eu compre um ingresso para o museu; vá lá de bicicleta todo dia & estude história. Vamos supor que eu escolha uma importante personagem de cada época & escreva sobre ela & sobre o que está a sua volta. Ocupar-me é essencial. E agora com certo prazer constato que são sete; & tenho de fazer o jantar. Hadoque & carne moída. Acho que é verdade que se ganha algum poder sobre a carne moída & o hadoque ao escrevê-los.

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28.10.03

Ana Cristina Cesar


Ela ficava olhando pela janela
vertendo seu único olho pela janela
com o pé em cima da janela
Ela ficava olhando pela janela
O dia inteiro o olho, o pé, a janela
em cima embaixo pelos lados da janela
Ela ficava olhando pela janela
um dia ela cansou de olhar e fechou a janela
mas era dura e não fechava a janela
Ela ficava olhando pela janela
às vezes tentava mas logo esquecia da janela
que sempre aberta com um olho e um pé a janela
Ela ficava olhando pela janela
até que um dia seus pensamentos dissociaram a janela
que caiu inteiriça, e era uma caída janela
Ela ficava olhando pela janela
que não era, nem existia como janela:
Ela ficava olhando pelo buraco



27.10.03

Czeslaw Milosz



"A utilidade da poesia está em nos fazer lembrar
que é difícil continuar sendo a mesma pessoa
porque nossa casa está aberta
as portas estão sem chave
e os hóspedes invisíveis entram e saem."


-- (fragmento do poema "Ars poética?")

24.10.03

Augusto dos Anjos

Minha Finalidade


Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!

Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
-- A águia dos latifúndios florentinos!

Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno,
A fórmula de todos os destinos!

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19.10.03

W. H. Auden

A solitária nata


Eu ouvia da sombra, numa cadeira de praia,
A gama de ruídos que por meu jardim se espraia
E julgava de toda conveniência se isentasse
Do dom da palavra tanto os vegetais como as aves.

Um tordo sem nome de batismo repetia
O Hino Tordo, que era tudo quanto conhecia.
Por terceiro esperavam as flores roçagantes
Para dizer-lhes, sendo o caso, quais os pares de amantes.

Não seria, nenhum deles, capaz de mentir;
Tampouco havia ali quem sentisse a morte vir-
Lhe ou que, com ritmo ou rima, pudesse dar tento
Da sua responsabilidade pelo tempo.

Ficasse a linguagem para a solitária nata
Dos que contam os dias e esperam certas cartas.
Ao rir e ao chorar, nós também fazemos ruídos:
Palavras são só para os que estão comprometidos.

-- W. H. Auden

16.10.03

Ambrose Bierce e o Dicionário do Diabo M/N


M/N


Macaco -- animal arborícola que se sente perfeitamente em casa nas árvores genealógicas.

Mágica -- arte de transformar a superstição em ouro. Há inúmeras outras artes servindo a este mesmo propósito elevado, porém um lexicógrafo prudente não deve mencioná-las.

Maioria -- característica que distingue um crime de uma lei.

Matar -- criar uma vaga sem nomear sucessor.

Mausoléu -- derradeira extravagância dos ricos.

Medalha -- pequeno disco de metal com que se premia virtudes, façanhas e serviços relativamente autênticos.

Menor -- diz-se daquilo que não é passível de objeção.

Mentira -- substituto pobre da verdade, mas o único que se descobriu até agora.

Mentiroso -- sujeito viciado em retórica.

Menu -- relação dos pratos de um restaurante que acabaram de terminar.

Metade -- uma de duas partes iguais em que se pode dividir uma coisa, ou considerá-la dividida.

Meu -- tudo aquilo que pertence a mim, se eu puder pegar e não largar.

Mitologia -- corpo de crenças de um povo primitivo relacionando suas origens, história, heróis, divindades e assim por diante, de uma forma bem diferente dos relatos verdadeiros que ele inventaria mais tarde.

Moda -- despotismo que os sábios ridicularizam e obedecem.

Modéstia -- reconhecer a própria perfeição mas sem dizer isso a ninguém.

Monógamo -- polígamo reprimido.

Monumento -- estrutura projetada para comemorar algo que não precisa de comemoração ou que não devia ser comemorado.

Morrer -- desejo repentino de deixar de pecar.

Morte -- dormir sem precisar levantar-se para mijar.

Nepotismo -- contratar a própria avó em benefício do partido.

Newtoniano -- adepto da filosofia do universo inventada por Newton, que descobriu que uma maçã sempre cairá no chão mas não foi capaz de dizer por quê. Seus sucessores e discípulos até agora só conseguiram saber quando.

Niilista -- russo que nega a existência de tudo, menos de Tolstói.

Ninfomaníaca -- termo empregado pelo homem para definir a mulher que deseja fazer sexo com mais frequência do que ele.

Nirvana -- na religião budista, diz-se do prazeroso estado de autoanulação experimentado pelos sábios, particularmente aqueles sábios o bastante para entendê-lo.

Noiva -- mulher que deixa para trás uma boa perspectiva de felicidade.

Notoriedade -- tipo mais acessível e aceitável de reconhecimento da mediocridade.

Novembro -- décimo primeiro mês do cansaço.


-- Ambrose Bierce, tradução Maira Parula

15.10.03

Eugénio de Andrade

À Beira de Água


Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

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12.10.03

Five words in a line.


-- Gertrude Stein, 1930.



READ THIS WORD THEN READ THIS WORD READ THIS WORD NEXT READ THIS WORD NOW SEE ONE WORD SEE ONE WORD NEXT SEE ONE WORD NOW AND THEN SEE ONE WORD AGAIN LOOK AT THREE WORDS HERE LOOK AT THREE WORDS NOW LOOK AT THREE WORDS NOW TOO TAKE IN FIVE WORDS AGAIN TAKE IN FIVE WORDS SO TAKE IN FIVE WORDS DO IT NOW SEE THESE WORDS AT A GLANCE SEE THESE WORDS AT THIS GLANCE AT THIS GLANCE HOLD THIS LINE IN VIEW HOLD THIS LINE IN ANOTHER VIEW AND IN A THIRD VIEW SPOT SEVEN LINES AT ONCE THEN TWICE THEN THRICE THEN A FOURTH TIME A FIFTH A SIXTH A SEVENTH AN EIGHTH


-- Vito Acconci


8.10.03

Hilda Hilst




Sempre fui apaixonado por mamãe. Quando completei 16 anos, ela, sabedora do meu infortúnio, sentou-se na sua linda poltrona de cetim perolado, abriu suas magníficas coxas rosadas e, colocando um cacho de uvas purpúreas nos seus meios sagrados, disse-me: chupe-as, até encontrar o paraíso. Foi o que fiz. Foram semanas felizes. Passeávamos entre as alamandas as begônias as sempre-vivas, as araucárias (estas já mais altas) os carvalhos (estes altíssimos), ela descalça, a saia florida, a blusa entreaberta e aqueles seios espoucavam do decote meia-lua, linda Ma (eu chamava-a de Ma), ela chamava-me de Júnior, nome que na verdade não quer dizer nada. Depois de três semanas descobri que Ma tinha tendências lésbicas. Vi-a beliscando o bico do peito de Armanda, nossa prima. Fiquei cego de fúria. Bem, nem tanto. Disse-lhe: Ma, você não pode fazer isso comigo. Ela: o quê? Eu: isso de bolinar mulher. Sentou-se naquela mesma poltrona de cetim perolado e agora muito séria e de coxas fechadas disse-me: todos os chamados sentimentos intensos são dolorosos. E é muitíssimo normal o que ocorre com você neste momento. Entendo tudo, Júnior, mas detesto cenas. E se você se aborrece porque além de filhos gosto um nadinha de mulheres, acho demais, será preciso uma terapia de apoio. Concordei. Apoio era com ela mesma. Abriu novamente suas magníficas coxas (desta vez sem uvas) e suspirou gemendo: aqui mais em cima, meu amor, aqui Júnior, e empurrava docemente minha cabeça de cachos dourados na direção adequada. Foram semanas felizes. Ma andava nua pelos prados, saltava pequeninos riachos, na boca hastezinhas de capim, guirlandas de diminutas margaridas à volta de seu pescoço (eu sempre levava uma caixa com agulhas e linhas para fazer estes mimos à Ma). Comíamos pitangas araçás amoras jaboticabas, depois deitávamos nas gramíneas e líamos Childe Harold. Ela amava Byron. Eu dizia-lhe: mas foi um homem abominável, tudo o que fez para a pobrezinha da Clara!
ah, tem paciência, Júnior, ela não saía da cola dele!
mas Ma e tantas mulheres que ele fez sofrer!
aquelas... fartou-se e amou a Fornarina muito tempo.
uma grossa, Ma, uma padeira.
Byron era um gênio, podia amar padeiras.
eu gosto incomparavelmente mais de Shelley.
tão frágil...
ah, por favor, Ma... fino, raro, generoso, brilhante.
ninguém lia Shelley.
claro, muito mais importante, muito mais sério.
Byron foi um dos nossos, querido, amava a própria irmã.

Como resistir a tudo que dizia aquela perfeitíssima mulher que era mamã?


-- Hilda Hilst, em "Contos D'Escárnio".

7.10.03

Blaise Cendrars e Feijoada com cocaína


Como alguns devem saber, no ano de 1924 o escritor francês de origem suíça Blaise Cendrars visitou o Brasil, onde conheceu o grupo modernista de São Paulo. Nesse mesmo ano, ele seguiria com uma caravana paulista para Minas Gerais juntamente com Mário de Andrade. Lá, Cendrars teve a oportunidade de conhecer, entre outros escritores mineiros, o então jovem estudante de medicina, aprendiz de poeta e desenhista Pedro Nava. Deste primeiro encontro com Cendrars, no entanto, Nava não guardaria muito boas recordações, como relatou em seu livro de memórias Beira-Mar.

Entusiasmado com os desenhos que vinha fazendo, Nava quis mostrá-los ao poeta "estrangeiro". Segundo o mineiro, eram desenhos de "formas alucinadas e de uma magreza desvairada". O que ele não pôde imaginar é que, após examiná-los atentamente, Cendrars se saísse com esta: "Dites-moi, mon ami. Comment est-ce que vous poudrez votre feijoada? À la farine? ou bien à la cocaïne?"



5.10.03

Fui ao mar buscar sardinhas
Para dar ao meu amor
Perdi-me nas janelinhas
Que espreitavam do vapor

A espreitar lá do vapor
Vi a cara dum francês
E seja lá como for
Eu vou ao mar outra vez

Eu fui ao mar outra vez
Lá o vapor de abalada
Já lá não vi o francês
Vim de lá toda molhada

Saltou de mim toda a esperança
Saltou do mar a sardinha
Salta a pulga da balança
Não faz mal não era minha

Vou ao mar buscar sardinha
Já me esqueci do francês
A idéia não e minha
Nem minha nem de vocês

Coisas que eu tenho na idéia
Depois de ter ido ao mar
Será que me entrou areia
Onde não devia de entrar?

Pode não fazer sentido
Pode o verso não caber
Mas o que eu tenho rido
Nem vocês queiram saber

Não é para adivinhar
Que eu não gosto de adivinhas
Já sabem que fui ao mar
E fui lá buscar sardinhas

Sardinha que anda no mar
Deve andar consoladinha
Tem água sabe nadar
Quem me dera ser sardinha


-- Amália Rodrigues

1.10.03

Pizarnik



explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco que me levava




Antes

bosque musical

os pássaros desenhavam em meus olhos
pequenas gaiolas



Estranho desacostumar-me
da hora em que nasci
Estranho não exercer mais
o ofício de recém-chegada.


-- Alejandra Pizarnik