Ala Lateral
O meu maior erro foi ter nascido depois da morte de Sigmund Freud. Havia rompido relações comigo mesmo e não sabia por que o espelho me era indiferente. Pouco a pouco, quando comecei a compreender a minha insensibilidade é que realmente nasci e a luz brilhou revelando-me o escuro abismo. (...) Houve tempo em que até andava pela casa, divertindo a todos, falando em Sigmund Freud. E todos diziam acreditar nele e os seus olhos tomavam um brilho novo e falavam no Sigmund Freud como se ele fosse chegar a qualquer momento.(...) Quando Sigmund Freud chegar, entrar por aquela porta, logo perguntará por mim e eu vou rir da estupidez deles. Vale a pena viver para esperar esse dia. Mas eu falei em morrer?
(...) Tenho medo, sabe, medo do que eles farão comigo. Outro dia fiquei sabendo que irão dar o meu cérebro para os cientistas estudarem. Não quero, não quero. Gritei isso para eles e não responderam nada. Não me levam a sério, por isso até fecharam os portões pra eu não falar com ninguém, inclusive pra não dizer que Sigmund Freud está viajando pra cá. Preciso fazer uma roupa nova, um terno sóbrio. Sim: sóbrio -- para não espantar Sigmund Freud. Preciso ser discreto e ter paciência e não dizer tudo a ele de uma só vez. Sigmund Freud vai compreender e até vai me olhar com aquele olhar de compreensão. Ficarei calado. Depois direi tudo a ele e então tomará as providências necessárias. Sim, há providências necessárias a tomar -- é importante. Por enquanto eu fico calado. Quero pegá-los desprevenidos. A surpresa é que é o essencial. Depois, bem, depois serei complacente porque não sou ruim. Eles me olharão e agradecerão a minha benevolência.
(...) Hoje notei maior movimento na porta do quarto. Será que Sigmund Freud chegou e eles escondem isso de mim? É bem capaz. Bando de canalhas! Bois! Animais! Abram a porta, abram a porta, miseráveis! Sigmund Freud veio para me ver -- ouviram -- PARA ME VER! -- o que é isso? Que gritaria é essa? Não se façam de desentendidos, eu sei muito bem que Sigmund Freud chegou. Os passos se arrastam depressa e depressa todos se agrupam. As vozes de timbre cada vez mais forte emitem ecos. Eles se mexem, se agitam, correm pelos corredores, descem e sobem escadas e eu não entendo nada. Dou um murro na porta com o punho fechado: -- SIGMUND FREUD, como está VIENA, o senhor VALSEIA? Olha, a valsa não é privilégio nosso, o senhor há de desculpar, mas a nossa cultura está em déficit. Sabe? O lugar-comum está tomando conta de tudo rapidamente. Desculpe a falta da VALSA. Aliás, o senhor veio foi para me ver, conversar comigo, me aconselhar como um amigo, não foi? Pois, olha: estou à sua espera há tanto tempo que perdi a conta ou esqueci de contar -- esses lapsos são comuns em mim, mas não irão impressionar ao senhor, eu sei. Por isso é bom a gente ter um amigo: um amigo assim igual ao senhor substitui qualquer mulher. Mas por que esse barulho, essa agitação febril, esse telefone que sempre tilinta, esses ruídos surdos, disfarçados, esse barulho de ferros caindo num balde? Sigmund, está ouvindo? SIGMUND! Patife! Está me ouvindo ou está com eles? Eles não vão deixar o senhor falar, não vão -- entende? Vem aqui que eu explico tudo; eu tenho tanta coisa para explicar: é preciso também que me expliquem muita coisa. Não sei por que quando vem gente aqui, dizem que eu fico na ala lateral; desde ontem que não vejo o sol porque joguei o prato de comida na cara da mulher. Sabe, Sigmund, aqui faz muito frio, é igual a VIENA.
Lucienne Samôr, "O Olho Insano", 1975.