30.5.03

Baudelaire - As janelas


Aquele que olha, da rua, através de uma janela aberta, jamais vê tantas coisas como quem olha para uma janela fechada. Nada existe mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante, que uma janela iluminada por uma lamparina. O que se pode ver ao sol nunca é tão interessante como o que acontece por trás de uma vidraça. Naquele quartinho negro ou luminoso a vida palpita, a vida sonha, a vida sofre.
Para além das ondas de telhados, diviso uma mulher já madura, enrugada, pobre, sempre debruçada sobre alguma coisa, e que nunca sai de casa. Pela sua fisionomia, pelas suas vestes, por um gesto seu, por um quase-nada, reconstituí a história dessa mulher, ou antes, a sua lenda, que às vezes conto a mim próprio, a chorar.
Se fosse um pobre velho, eu lhe haveria reconstituído a história com a mesma facilidade.
E vou-me deitar, orgulhoso de ter vivido e sofrido em outras criaturas.
Haveis de perguntar-me agora: -- "Estás certo de que essa história seja a verdadeira?" Que importa o que venha a ser a realidade colocada fora de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que sou, e o que sou?

Charles Baudelaire, "As Janelas".

29.5.03

Roland Barthes - Incidentes


9 de setembro de 1979


Noite: sem muita coisa para dizer: no Rest 7 com os amigos; era um bom momento de amizade; apesar da vizinhança estúpida (mulheres de idade muito pintadas, público toda-superfície-de-fora). Mas na tarde desse sábado, espécie de paquera variada e como que livre, insaciável: primeiro no Bain V, nada: nenhum dos árabes que conheço, nenhum interessante e muitos europeus sem jeito; única singularidade, um árabe, não jovem mas nada mal, se interessa pelos europeus. Visivelmente sem pedir dinheiro, ele lhes pega o pau depois passa para outro; não se sabe o que ele quer. Paradoxo puro: um árabe para quem existe o pau de um outro e não somente o seu (que é seu ego). Monólogo interminável, prolixo (de modo algum uma conversa) do dono, que relata seus dissabores em um hotel tunisiano (comida infecta e todos os jovens tunisianos o paqueravam descaradamente, explica ele, hipocritamente reprovador). Eu pensava em procurar um michê em Montmartre; é talvez por isso que, de má fé, nada encontrei no Voltaire. Chove muito, gotas pesadas de chuva, muitos automóveis. No Nuit, absolutamente nada (miragem do boato que diz que é preciso ir lá às cinco da tarde). No entanto, chega um morenão de rosto bem fino; meio estranho; seu francês é rude, tomo-o por um bretão; não, a mãe é húngara, o pai, russo branco (?), em suma, iugoslavo (muito delicado, muito simples). Mme. Madeleine, que me tinham dito estar muito doente (de um enfarte), surge, gorda e coxeando lá da cozinha, onde há sobre a mesa uma berinjela; está saindo um belo marroquino que bem queria me pegar e me olha longamente; ele esperará na sala de refeições que eu desça de novo, parece decepcionado que eu não o pegue de imediato (vago encontro para o dia seguinte). Saio leve, bem fisicamente, sempre com minhas idéias de regime, compro um pão (decidido a um regime muito sóbrio, mas não proibitivo) bem crocante, cuja ponta mordisco; a crosta se desfaz no metrô que tomo, com baldeações complicadas - mas sou cabeça-dura -, para ir ver a pressão barométrica, av. Rapp, a fim de regular meu novo barômetro. No táxi de volta, tempestade e chuva forte. Ando pra lá e pra cá em casa (como pão tostado e queijo de cabra), depois, dizendo comigo que é preciso que eu perca o hábito de calcular os prazeres (ou as derivas), saio de novo e vou ver o novo filme pornô do Dragon: como sempre - e talvez ainda mais - lamentável. Nem ouso paquerar meu vizinho, mas certamente disponível (medo idiota de ser recusado). Descida à sala escura; lamento sempre em seguida esse episódio sórdido em que a cada vez ponho à prova o meu desamparo.

Barthes, "Incidentes".

22.5.03

Joaquim Cardozo


Através do quadro iluminado da janela
Olho as grandes nuvens que chegaram do Oriente
E me lembro dos homens que seriam meus amigos
Se eu tivesse nascido em Cingapura.

E aqueles que estiveram comigo nas horas concluídas
Ainda impressionam o ar
-- Todos eles perderam-se no mar.

Agora, na praia deserta estou sozinho
-- Caminho
Com os pés descalços na areia.

Nesta tarde morta o perfume das almas
Invade as enseadas, estende-se sobre os rios, paira sobre as colinas
-- A Natureza assume a precária presença de um sonho;
Um trem corre sereno na planície dos homens ausentes;
Do fundo de minha memória sobe um canto de guitarras confusas;
Sinto correr de minha boca um rio de sombra,
A sombra contínua e suave da Noite.

-- Joaquim Cardozo, "Poesia da Presença Invisível".

21.5.03

Leonardo Mota - Cantadores do sertão


O cantador pernambucano Aragão foi ter comigo, certa vez, quando no "Hotel de France", em Fortaleza, eu jantava em companhia do jornalista Manuel Monteiro. Aragão vestia um terno de roupa nova, quer dizer, havia "quebrado a tigela". Convidei-o a tomar parte na refeição e, com surpresa minha, ele prontamente aquiesceu:
-- Eu quero. Agora, matuto em frente de gente não come. O dicomê fica na mesa e ele se acanha... Matuto só tem de gente o rasto. Matuto é o bicho mais parecido com gente que Deus deixou no mundo...
Quando o criado lhe apresentou o cardápio, ele protestou:
-- Pra quê diabo é esse papelão? Quero lá sabê de iscuiê versidade de comida! Traga o que tivé! Traga a janta que eu como... Eu não sou biqueiro não. Só não me traga comida com gordura de porco, carne de capado, nem carne de criação, que é carregada. O resto...
E, chamando o criado, advertiu:
-- Sim, não vá trazê coisinha por coisinha não! Eu quero é tudo engalobado. Eu gosto é do taipeiro...
Manuel Monteiro indagou:
-- A que é que faz mal carne de criação?
-- A que é? Só pode ser ao corpo...
Enquanto aguardava o jantar, Aragão nos confessou:
-- Eu só não gosto de comedoria de hotel porque isso é uma especulação: é umas foinha lá no fundo do prato. Vou nisso não! Serei lagarta?
Perguntei-lhe se aceitava um aperitivo e expliquei: uma bebida que lhe despertasse a vontade de comer.
-- Quero não, doutô. Eu vou vê se largo o esprito. Tá me ofendendo. Eu, onte, fui a uma festa no Maranguape e me dero lá uma tal de cachaça inocente chamada "Sapupara", boa chega parecia Zinebra. O certo é que eu hoje amanheci ruim da barriga e só boto pra água que passarim não bebe... O povo lá até gostou desta "obra" que eu fiz: "Quem bebe da Sapupara/ E usa cigarro amarelo/ Parece que quando arrota/ Arrota conhaque Martelo."
Veio o jantar. Aragão devorou-o às pressas, com a colher. Depois limpou a boca na toalha da mesa, palitou os dentes e enfiou o palito entre os cabelos. O criado interpelou-o:
-- O senhor quer sobremesa?
-- Home, ocê quererá me matá! Vá dá no boi! Eu já tou cheio... Mas me traga sempre um docezinho!
-- De que qualidade?
-- Traga qualqué um! Eu, toda vida, vi dizê que não hai cabra bom nem doce ruim...


Leonardo Mota, em "Cantadores, Poesia e Linguagem do Sertão Cearense".

20.5.03

Afinação da Arte de Chutar Tampinhas


Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforos. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando.
Chutar tampinhas que encontro no caminho. É só ver tampinha. Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual a marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada, e quase já controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a idéia de que para acertar, necessário pequenas erradas. Mas é muito desagradável o entusiasmo desaparecer antes do chute. Sem graça.
Meu irmão, tipo sério, responsabilidades. Ele, a camisa; eu, o avesso. Meio burguês, metido a sensato. Noivo...
-- Você é um largado. Onde se viu essa, agora!
É que eu, às vezes, interrompo conversas na calçada para os meus chutes.
Só um sujeito como eu, homem se atilando naquilo que faz, pode avaliar um chute digno para determinadas tampinhas. Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do pé, atingindo de chapa. Sobem. Não demoram muito, que ainda não sou um grande chutador. Mas capricho, porque elas merecem.
Minhas tampinhas... Umas belezas.

-- João Antônio.

14.5.03

Ernst Jandl


Os 25 dias antes do nascimento de Otto


puup
qvvq
rwwr
sxxs
tyyt
uzzu
vaav
wbbw
xccx
yddy
zeez
affa
bggb
chhc
diid
ejje
fkkf
gllg
hmmh
inni
jooj
kppk
lqql
mrrm
nssn
otto


Ernst Jandl

13.5.03

Hilda Hilst - Isso de mim que anseia despedida


Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.



Hilda Hilst, em "Cantares do Sem Nome e de Partidas".

9.5.03

Lucienne Samôr - O olho insano


Ala Lateral


O meu maior erro foi ter nascido depois da morte de Sigmund Freud. Havia rompido relações comigo mesmo e não sabia por que o espelho me era indiferente. Pouco a pouco, quando comecei a compreender a minha insensibilidade é que realmente nasci e a luz brilhou revelando-me o escuro abismo. (...) Houve tempo em que até andava pela casa, divertindo a todos, falando em Sigmund Freud. E todos diziam acreditar nele e os seus olhos tomavam um brilho novo e falavam no Sigmund Freud como se ele fosse chegar a qualquer momento.(...) Quando Sigmund Freud chegar, entrar por aquela porta, logo perguntará por mim e eu vou rir da estupidez deles. Vale a pena viver para esperar esse dia. Mas eu falei em morrer?

(...) Tenho medo, sabe, medo do que eles farão comigo. Outro dia fiquei sabendo que irão dar o meu cérebro para os cientistas estudarem. Não quero, não quero. Gritei isso para eles e não responderam nada. Não me levam a sério, por isso até fecharam os portões pra eu não falar com ninguém, inclusive pra não dizer que Sigmund Freud está viajando pra cá. Preciso fazer uma roupa nova, um terno sóbrio. Sim: sóbrio -- para não espantar Sigmund Freud. Preciso ser discreto e ter paciência e não dizer tudo a ele de uma só vez. Sigmund Freud vai compreender e até vai me olhar com aquele olhar de compreensão. Ficarei calado. Depois direi tudo a ele e então tomará as providências necessárias. Sim, há providências necessárias a tomar -- é importante. Por enquanto eu fico calado. Quero pegá-los desprevenidos. A surpresa é que é o essencial. Depois, bem, depois serei complacente porque não sou ruim. Eles me olharão e agradecerão a minha benevolência.

(...) Hoje notei maior movimento na porta do quarto. Será que Sigmund Freud chegou e eles escondem isso de mim? É bem capaz. Bando de canalhas! Bois! Animais! Abram a porta, abram a porta, miseráveis! Sigmund Freud veio para me ver -- ouviram -- PARA ME VER! -- o que é isso? Que gritaria é essa? Não se façam de desentendidos, eu sei muito bem que Sigmund Freud chegou. Os passos se arrastam depressa e depressa todos se agrupam. As vozes de timbre cada vez mais forte emitem ecos. Eles se mexem, se agitam, correm pelos corredores, descem e sobem escadas e eu não entendo nada. Dou um murro na porta com o punho fechado: -- SIGMUND FREUD, como está VIENA, o senhor VALSEIA? Olha, a valsa não é privilégio nosso, o senhor há de desculpar, mas a nossa cultura está em déficit. Sabe? O lugar-comum está tomando conta de tudo rapidamente. Desculpe a falta da VALSA. Aliás, o senhor veio foi para me ver, conversar comigo, me aconselhar como um amigo, não foi? Pois, olha: estou à sua espera há tanto tempo que perdi a conta ou esqueci de contar -- esses lapsos são comuns em mim, mas não irão impressionar ao senhor, eu sei. Por isso é bom a gente ter um amigo: um amigo assim igual ao senhor substitui qualquer mulher. Mas por que esse barulho, essa agitação febril, esse telefone que sempre tilinta, esses ruídos surdos, disfarçados, esse barulho de ferros caindo num balde? Sigmund, está ouvindo? SIGMUND! Patife! Está me ouvindo ou está com eles? Eles não vão deixar o senhor falar, não vão -- entende? Vem aqui que eu explico tudo; eu tenho tanta coisa para explicar: é preciso também que me expliquem muita coisa. Não sei por que quando vem gente aqui, dizem que eu fico na ala lateral; desde ontem que não vejo o sol porque joguei o prato de comida na cara da mulher. Sabe, Sigmund, aqui faz muito frio, é igual a VIENA.


Lucienne Samôr, "O Olho Insano", 1975.


8.5.03

Robert Bringhurst


Ensaio sobre Adão

Há cinco possibilidades. Primeira: Adão caiu.
Segunda: foi empurrado. Terceira: saltou. Quarta:
ao debruçar-se sobre o parapeito perdeu o equilíbrio. Quinta:
nada digno de nota aconteceu a Adão.

A primeira, de que caiu, é primária demais. A quarta,
medo, foi examinada e revelou-se inútil. A quinta,
de que nada aconteceu, não interessa. A solução é a alternativa:
saltou ou foi empurrado. E a diferença está apenas

na questão de saber se o demônio
age de dentro para fora ou de fora para
dentro: aí está
o verdadeiro problema teológico.


-- (tradução: João Cabral de Melo Neto.)

7.5.03

José Régio


O POETA DOIDO, O VITRAL E A SANTA MORTA


Era uma vez um Poeta
Que vivia num Castelo,
Num Castelo abandonado,
Povoado só de medos...

-- Um Castelo com portões que nunca abriam,
E outros que abriam sem ninguém os ir abrir,
E onde os ventos dominavam,
E donde os corvos saíam,
Para almoços
Que faziam
De mendigos que caíam lá nos fossos...

Havia no Castelo, ao fim dum corredor,
(Um corredor grande, grande,
Frio, frio,
Com abóbadas sonoras como poços)
Um vitral.

Era um vitral singular...

E é bem verdade que ninguém sabia
O que ele ali fazia,
Ao fim daquele corredor,
Naquela parede ao fundo,
Aquele vitral baço e quase já sem cor.

Nem o Poeta o sabia...

Nem o Poeta o sabia,
Muito embora noite e dia
Meditasse
No vitral quase sem cor
Que estava pr'ali na sombra
Do fundo do corredor
-- Com ar de quem aguardasse...

Quando, a meio da noite, o Poeta acordava,
Levantava-se, e, até dia, delirava.

Era a hora do Medo...

E passeava, delirando, pelos longos corredores,
Descia as escadarias,
Corria as salas.

Sob os seus pés, as sombras deslizavam.
Pelos recantos, os fantasmas encolhiam-se.
E, devagar, bem devagar, no escuro,
Portões abriam-se, e fechavam-se, e giravam sem rumor.

O Poeta só parava
Diante do tal vitral,
Ao fim do tal corredor...

E sonhava.

Sonhava que, para lá
Daqueles doirados velhos,
Daqueles roxos mordidos,
Que morriam
Sobre o fundo espesso e negro,
Havia...

Mas que haveria?

Qualquer coisa bem ao perto
Que o chamava de tão longe...!

E, mudo, ali ficava até ser dia,
Enquanto os ventos, lá fora,
Fingiam mortos a rir...
Enquanto as sombras passavam...
Enquanto os portões rodavam,
Sem ninguém os ir abrir!

Mas, um dia,
-- Eis, ao menos, o que dizem --
O Poeta endoideceu.

E, fosse Deus que o chamasse
Ou o Diabo que lhe deu,
(Não sei...)

Sei que uma noite, a horas desconformes,
O Doido alevantou-se nu e lívido,
Com os cabelos soltos e revoltos,
A boca imóvel como as das estátuas,
Os olhos fixos, sonâmbulos, enormes...

Pegou do archote,
Desceu, escada a escada, a muda escadaria,
Seguiu pelo corredor.

Em derredor,
As sombras doidas esvoaçavam contra os muros.
Lá muito longe, o vento era um gemido que morria...

Ao fim do tal corredor,
Havia
O tal vitral.

E, de golpe,
Como dum vôo em linha recta,
O Poeta-Doido ergueu-se contra ele,
Direito como uma seta...

A cabeça ficou dentro...
O corpo ficou de fora...
E os verdes, os lilases, os vermelhos da vidraça
Laivaram-se de sangue que manava,
E que fazia,
Nas lájeas do corredor,
Um rio que não secava...

Mas, no instante em que morria,
Abrindo os olhos
-- Olhos de tentação divina e demoníaca --
O Poeta pôde ver.

... E viu:

Viu que, por trás do vitral baço, havia
Um nicho feito no muro.
Dentro, iluminando o escuro,
De pé sobre tesoiros e tesoiros,
Estava
Certo cadáver duma Santa
Que fora embalsamada há muitos séculos...

E a Santa, que o esperava,
Despertou,
E, sorrindo-se e curvando-se, beijou
A cabeça degolada.

-

5.5.03

WALY SALOMÃO


na Rua Real Grandeza


ah, vale a pena ser poeta
escutar você torcer de volta
a chave na fechadura da porta
abra volte veja
sou um cara sem saída
mas não se iluda
com esta minha vida
toda vez que avisto
sua figura leviana
no pórtico do quarto
penso em dar um corte
em quem me embroma
sou forte
abra volte
veja se me entende e me ama
desde o berço
conservo o mesmo endereço
moro na Rua Real Grandeza
abra
abra a porta
volte veja
você não me engana
sozinho sem amor sem carinho
não digo com certeza
mas posso me arruinar
veja
jatos de sangue...
espetáculos de beleza
ah, vale a pena ser poeta
escutar você torcer de volta
a chave na fechadura da porta.

Thomas Bernhard


Por algum tempo andamos com pessoas numa direção, depois acordamos e voltamo-lhes as costas. Eu lhes voltei as costas, pensei. Nós nos prendemos a elas e de repente tomamos horror delas, e as soltamos. Corremos anos a fio atrás delas, e mendigamos sua simpatia, pensei, e de repente temos sua simpatia e não queremos mais sua simpatia. Fugimos delas, elas nos alcançam e nos apertam contra si, e nós nos submetemos a elas, a cada um de seus ditames, pensei, e nos entregamos a elas, até que morremos ou fugimos. Fugimos delas e elas nos apanham e nos esmagam. Corremos atrás delas, nós lhes imploramos que nos aceitem, e elas nos aceitam e nos matam. Ou desde o começo saímos do seu caminho e conseguimos sair do seu caminho a vida inteira, pensei. Ou caímos na sua armadilha, e sufocamos. Ou escapamos delas e as rebaixamos, caluniamos, espalhamos mentiras sobre elas, pensei, para nos salvarmos, difamamos essas pessoas onde podemos para nos salvarmos delas, fugimos delas para salvarmos nossa vida e as acusamos por toda parte, elas são culpadas por nós. Ou elas nos escapam e nos difamam e nos acusam, espalham toda a sorte de mentiras a nosso respeito para se salvarem, pensei. Acreditamos estar mortos e nos encontramos com elas e elas nos salvam, mas não lhes ficamos gratos por isso, por nos terem salvo, ao contrário, nós as amaldiçoamos, nós as odiamos por isso, nós as perseguimos a vida toda com nosso ódio por nos terem salvo. Ou nos aproximamos delas e elas nos rejeitam, e nos salvamos e vingamos e as difamamos, nós as rebaixamos por toda parte, perseguimo-las com nosso ódio até a sepultura. Ou elas nos ajudam a nos levantarmos no momento decisivo, e nós as odiamos porque nos ajudaram, como elas nos odeiam porque as ajudamos, pensei sentado na bergère.

-- Em "Árvores Abatidas".

1.5.03

Patativa do Assaré


Poetas niversitário,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.

Eu nasci aqui no mato,
Vivi sempre a trabaiá,
Neste meu pobre recato,
Eu não pude estudá.
No verdô de minha idade,
Só tive a felicidade
De dá um pequeno insaio
In dois livro do iscritô,
O famoso professô
Filisberto de Carvaio.


No premêro livro havia
Belas figuras na capa,
E no começo se lia:
A pá — O dedo do Papa,
Papa, pia, dedo, dado,
Pua, o pote de melado,
Dá-me o dado, a fera é má
E tantas coisa bonita,
Qui o meu coração parpita
Quando eu pego a rescordá.


Foi os livro de valô
Mais maió que vi no mundo,
Apenas daquele autô
Li o premêro e o segundo;
Mas, porém, esta leitura,
Me tirô da treva escura,
Mostrando o caminho certo,
Bastante me protegeu;
Eu juro que Jesus deu
Sarvação a Filisberto.


Depois que os dois livro eu li,
Fiquei me sintindo bem,
E ôtras coisinha aprendi
Sem tê lição de ninguém.
Na minha pobre linguage,
A minha lira servage
Canto o que minha arma sente
E o meu coração incerra,
As coisa de minha terra
E a vida de minha gente.


Poeta niversitaro,
Poeta de cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia,
Tarvez este meu livrinho
Não vá recebê carinho,
Nem lugio e nem istima,
Mas garanto sê fié
E não istruí papé
Com poesia sem rima.


Cheio de rima e sintindo
Quero iscrevê meu volume,
Pra não ficá parecido
Com a fulô sem perfume;
A poesia sem rima,
Bastante me disanima
E alegria não me dá;
Não tem sabô a leitura,
Parece uma noite iscura
Sem istrela e sem luá.


Se um dotô me perguntá
Se o verso sem rima presta,
Calado eu não vou ficá,
A minha resposta é esta:
— Sem a rima, a poesia
Perde arguma simpatia
E uma parte do primô;
Não merece munta parma,
É como o corpo sem arma
E o coração sem amô.


Meu caro amigo poeta,
Qui faz poesia branca,
Não me chame de pateta
Por esta opinião franca.
Nasci entre a natureza,
Sempre adorando as beleza
Das obra do Criadô,
Uvindo o vento na serva
E vendo no campo a reva
Pintadinha de fulô.


Sou um caboco rocêro,
Sem letra e sem istrução;
O meu verso tem o chêro
Da poêra do sertão;
Vivo nesta solidade
Bem destante da cidade
Onde a ciença guverna.
Tudo meu é naturá,
Não sou capaz de gostá
Da poesia moderna.


Dêste jeito Deus me quis
E assim eu me sinto bem;
Me considero feliz
Sem nunca invejá quem tem
Profundo conhecimento.
Ou ligêro como o vento
Ou divagá como a lêsma,
Tudo sofre a mesma prova,
Vai batê na fria cova;
Esta vida é sempre a mesma.

-