27.2.03
Mitologia dos orixás
Xangô e Ogum sempre lutaram entre si,
ora disputando o amor da mãe, Iemanjá,
ora disputando o amor da amada, Oxum,
ora disputando o amor da companheira, Iansã.
Lutaram no começo do mundo e ainda lutam agora.
Ogum usa da sua força física e das armas que fabrica,
Xangô usa da estratégia e da magia.
Ambos são fortes e valentes,
ambos são guerreiros temidos.
Mas só uma vez Xangô venceu Ogum na luta.
Numa disputa que travaram por Iansã,
ora a batalha pendia para um lado,
ora pendia para o outro.
Ninguém conseguia prever o final,
ninguém podia apostar quem seria o vencedor.
Foi então que Xangô apelou para a astúcia,
como é de seu feitio numa hora dessa.
Conduziu a batalha como quem se retirava
e, sem que Ogum percebesse, Xangô o atraiu para a pedreira.
Foi então que Xangô apelou para a magia,
como é de seu feitio numa hora dessa.
Quando Ogum estava bem no pé da montanha de pedra,
Xangô lançou seu machado oxé de fazer raio
e um grande estrondo se ouviu.
Com o trovão veio abaixo uma avalanche de pedras
e as pedras soterraram o desprevenido Ogum.
Xangô vencera Ogum na pedreira,
que desde então foi considerada o elemento de Xangô.
Xangô venceu Ogum naquele dia,
única vez que alguém venceu Ogum.
Mas esses dois filhos de Iemanjá seguem lutando ainda,
ora disputando o amor da mãe, Iemanjá,
ora disputando o amor da amada, Oxum,
ora disputando o amor da companheira, Iansã.
-- "Xangô vence Ogum na pedreira", mito recolhido por Reginaldo Prandi em seu livro Mitologia dos Orixás.
26.2.03
John Dos Passos
O corpo de um americano
levaram para Chalôns-sur-Marne
e puseram-no limpo num caixão de pinho
e levaram-no de volta ao País de Deus num navio de guerra
e enterraram-no num sarcófago no Memorial
do Cemitério Nacional de Arlington
e envolveram-no no velho pavilhão
e o corneteiro fez soar o toque de silêncio
...........................................................
Woodrow Wilson trouxe um buquê de papoulas.
Guerra e pânico na bolsa de valores,
metralhadora, fogo e incêndio criminoso,
falências, empréstimos,
fome, piolhos, cólera e tifo;
bom tempo de crescimento para a Morgan House
........................................................................
-- Em 1919.
25.2.03
a cultura
a civilização
elas que se danem ou não
somente me interessam
contanto que me deixem
meu licor de jenipapo
o papo das noites de são joão
somente me interessam
contanto que me deixem
meu cabelo belo
meu cabelo belo
como a juba de um leão
contanto que me deixem
ficar na minha
contanto que me deixem
ficar com minha vida na mão
minha vida na mão
minha vida
a cultura a civilização
elas que se danem ou não
eu gosto mesmo
é de comer com coentro
eu gosto mesmo
é de ficar por dentro
como eu estive algum tempo
na barriga de claudina
uma velha baiana
cem por cento
a cultura a civilização...
-- Gilberto Gil, "Cultura e Civilização", anos 70.
a civilização
elas que se danem ou não
somente me interessam
contanto que me deixem
meu licor de jenipapo
o papo das noites de são joão
somente me interessam
contanto que me deixem
meu cabelo belo
meu cabelo belo
como a juba de um leão
contanto que me deixem
ficar na minha
contanto que me deixem
ficar com minha vida na mão
minha vida na mão
minha vida
a cultura a civilização
elas que se danem ou não
eu gosto mesmo
é de comer com coentro
eu gosto mesmo
é de ficar por dentro
como eu estive algum tempo
na barriga de claudina
uma velha baiana
cem por cento
a cultura a civilização...
-- Gilberto Gil, "Cultura e Civilização", anos 70.
24.2.03
O Grande Circo Místico
O médico de câmara da imperatriz Teresa -- Frederico Knieps -- resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun -- a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo -- o trapezista Ludwig -- nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.
-- Jorge de Lima, 1938.
O médico de câmara da imperatriz Teresa -- Frederico Knieps -- resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun -- a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo -- o trapezista Ludwig -- nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.
-- Jorge de Lima, 1938.
22.2.03
A minha saia velhinha
Está toda rotinha
d'andar a bailar
agora tenh'uma nova
feitinha na moda
p'ra eu estriar.
Minha mãe casai-me cedo
enquanto sou rapariga:
que o milho ceifado tarde
não dá palha nem espiga!
O meu amor era torto
e eu mandei-o cavacar:
agora já tenho lenha
para fazer um jintar.
-- cantiga popular do Minho, Portugal.
Está toda rotinha
d'andar a bailar
agora tenh'uma nova
feitinha na moda
p'ra eu estriar.
Minha mãe casai-me cedo
enquanto sou rapariga:
que o milho ceifado tarde
não dá palha nem espiga!
O meu amor era torto
e eu mandei-o cavacar:
agora já tenho lenha
para fazer um jintar.
-- cantiga popular do Minho, Portugal.
21.2.03
Temporada de caça
E como se eu não tivesse nada mais sério em que acreditar, resolvi que não esperarei pelo Juízo Final para acertar minhas contas com ele.
A temporada de caça está aberta. Procuro Deus Vivo ou Morto. Pago bem.
O Arenque Defumado
Havia uma grande parede branca --
nua, nua, nua
Encostada na parede uma escada --
alta, alta, alta
E debaixo, um arenque defumado --
seco, seco, seco.
Compus esta história simples --
simples, simples, simples
Para enfurecer as pessoas sérias --
solenes, solenes, solenes
E entreter as criancinhas --
pequenas, pequenas, pequenas
-- Charles Cros
Havia uma grande parede branca --
nua, nua, nua
Encostada na parede uma escada --
alta, alta, alta
E debaixo, um arenque defumado --
seco, seco, seco.
Compus esta história simples --
simples, simples, simples
Para enfurecer as pessoas sérias --
solenes, solenes, solenes
E entreter as criancinhas --
pequenas, pequenas, pequenas
-- Charles Cros
19.2.03
A literatura das "boas maneiras" através dos tempos
séc. 13:
- Quando assoar o nariz ou tossir, vire-se de modo que nada caia em cima da mesa. (De la zinquanta cortesie da tavola, Bonvicino da Riva)
séc. 15:
séc. 13:
- Quando assoar o nariz ou tossir, vire-se de modo que nada caia em cima da mesa. (De la zinquanta cortesie da tavola, Bonvicino da Riva)
séc. 15:
- É indelicado assoar o nariz na toalha da mesa. (Ein spruch der ze tische kêrt)
- Não assoe o nariz com a mesma mão que usa para segurar a carne. (S'ensuivent les contenances de la table)
séc. 16:
- Assoar o nariz no chapéu ou na roupa é grosseiro, e fazê-lo com o braço ou o cotovelo é coisa de mercador. Tampouco é muito mais educado usar a mão, se imediatamente limpa a meleca na roupa. O correto é limpar as narinas com um lenço e fazer isto enquanto se vira, se pessoas mais respeitáveis estiverem presentes. Entre a meleca e o escarro há pouca diferença, exceto que o primeiro fluido deve ser interpretado como mais grosso e o segundo como mais sujo. Os autores latinos confundem constantemente o babador, o guardanapo, ou qualquer pedaço de linho, com o lenço. (...) É indelicado engolir a saliva, como também aqueles que vemos escarrando a cada 3 palavras, não por necessidade, mas por hábito.(...) O som do peido, especialmente das pessoas que se encontram em lugar elevado, é horrível. Sacrifícios devem ser feitos, com as nádegas fortemente comprimidas. Tossir para ocultar o som explosivo: aqueles que, porque estão embaraçados, não querem que o vento explosivo seja escutado, simulam um acesso de tosse. (...) Considerando a insalubridade de reter o peido: há uns dois versos no volume II dos epigramas de Nicharchos em que ele descreve a capacidade do peido retido de provocar doenças, mas uma vez que esses versos são citados por todo mundo, não vou comentá-los aqui. (De civilitate morum puerilium, Erasmo)
- Não ofereça o lenço a ninguém, a menos que ele esteja recém-lavado... Tampouco é correto, após assoar o nariz, abrir o lenço e olhar dentro dele como se pérolas e rubis pudessem ter caído de sua cabeça.(...) O que direi então... daqueles que enfiam o lenço na boca? ( Galateo, Della Casa)
séc. 17:
- À mesa assoar abertamente o nariz no lenço, sem se ocultar atrás do guardanapo, e enxugar o suor com ele...são hábitos sujos que dão a todos desejo de vomitar...Evite bocejar, assoar o nariz e escarrar. Se for obrigado a proceder assim em lugares mantidos limpos, use o lenço, ao mesmo tempo virando o rosto e ocultando-se com a mão esquerda, e não olhe para o lenço depois. (Nouveau traité de civilité, Courtain)
séc. 18:
- Há alguns anos as pessoas faziam uma arte do ato de assoar o nariz. Um imitava o som do trompete, outro o miado do gato. A perfeição residia em não fazer nem muito nem pouco ruído. (Le voyageur de Paris, La Mésangère)
- Na igreja, nas casas dos grandes, em todos os lugares onde reina a limpeza, você deve escarrar no lenço. Constitui um hábito imperdoavelmente grosseiro de crianças cuspir no rosto de seus companheiros de folguedos. Não há castigo que seja suficiente para essas maneiras deploráveis, como também para quem cospe pelas janelas, nas paredes e nos móveis...("Les Règles de la bienséance et de la civilité chrêtienne", La Salle)
séc. 19:
- Escarrar a todo momento é um hábito repugnante. Além de grosseiro e atroz, é muito ruim para a saúde. ("The habits of good society")
séc. 20:
- Você já notou que hoje relegamos para algum canto discreto o que nossos pais não hesitavam em exibir abertamente? Por isso mesmo, certa peça íntima tinha um lugar de honra... ninguém pensava em ocultá-la da vista. O mesmo se aplica a outra peça de mobília não mais encontrada em residências modernas, cujo desaparecimento alguém lamentará talvez nesta era de "bacilofobia": estou me referindo à escarradeira. (Moeurs intimes du temps passé, Cabanès)
-- Em "O Processo Civilizador", de Norbert Elias, 1939.
Fernando Pessoa - Notas pessoais
Abandonei o hábito de ler. Não leio mais nada exceto um ou outro jornal, literatura leve e ocasionalmente livros técnicos referentes a algum assunto que possa estar estudando e no qual o simples raciocínio possa ser suficiente.
Quase que abandonei o tipo definido de literatura. Poderia lê-la para aprender ou por prazer. Mas nada tenho que aprender e o prazer que se pode colher de livros é de um tipo que se pode substituir com vantagem por aquele que o contacto com a natureza e a observação da vida podem diretamente proporcionar-me.
Encontro-me agora de plena posse das leis fundamentais da arte literária. Shakespeare não pode mais ensinar-me a ser sutil, nem Milton a ser completo. Meu intelecto atingiu uma flexibilidade e um alcance que me possibilitam assumir qualquer emoção que desejo e penetrar à vontade dentro de qualquer estado de espírito. Quanto àquilo por que lutar é sempre um esforço e uma angústia, a plenitude, nenhum livro pode servir absolutamente de ajuda.
Não significa isto que me tenha livrado da tirania da arte literária. Aceito-a, apenas sujeita a mim mesmo.
Há um livro que sempre tenho a meu lado, Aventuras de Pickwick. Li e reli várias vezes livros de W.W. Jacobs. A decadência do romance policial fechou para sempre uma porta por onde penetrava eu na literatura moderna.
Deixei de interessar-me por gente simplesmente inteligente -- Wells, Chesterton, Shaw. As ideias que essa gente tem são iguais às que ocorrem a muitos não-escritores; a construção de suas obras é uma quantidade inteiramente negativa.
Houve um tempo em que eu lia apenas pela utilidade da leitura. Compreendi agora que há muito poucos livros úteis, mesmo em matérias técnicas pelas quais possa estar interessado.
A sociologia é por atacado...; quem pode suportar esse escolasticismo na Bizâncio de hoje?
Todos os meus livros são livros de consulta. Leio Shakespeare apenas com relação ao "problema shakespeariano"; o resto já conheço.
Descobri que a leitura é uma espécie de sonho escravizador. Se devo sonhar, por que não sonhar os meus próprios sonhos?
-- Fernando Pessoa, em "O Eu Profundo".
17.2.03
Lunário Perpétuo
O "Lunário Perpétuo" foi durante dois séculos o livro mais lido nos sertões do Nordeste. Dava informações sobre horóscopos, física rudimentar, fenômenos meteorológicos, receitas médicas, calendários, vidas de santos, biografias de papas, conhecimentos agrícolas, conselhos de veterinária e ensinamentos gerais. Ensinava até como construir um relógio de sol. Os fazendeiros seguiam seus prognósticos meteorológicos como lei, e os cantadores populares o consultavam quando precisavam saber noções de gramática, história, geografia, religião e mitologia. A primeira edição do "Lunário Perpétuo" é de 1703, em Lisboa. Hoje virou relíquia. Eis um dos conselhos publicados na edição de 1921: "Quando o bicho ou cobra entrar no corpo de alguma pessoa que estiver dormindo, o melhor remédio é tomar fumo de solas de sapatos velhos pela boca, por um funil, e o bicho sairá pela parte de baixo: coisa experimentada."
-
Cantiga nordestina
Mandei fazê um liforme
Bem feito, com perfeição,
Mode botá na cidade
No dia de uma enleição,
E o qual admirô
A toda população.
O chapéu de arroz doce,
Forrado de tapioca,
As fitas de alfenim
E as fivelas de paçoca
E a camisa de nata
E os botões de pipóca.
A ceroula de soro
E a calça de coalhada,
O cinturão de mantêga
E o broche de carne assada,
O sapato de pirão
E as biqueiras de cocáda.
As meias de mingáu
E os véus de gergelim,
E as aspas de pão-de-ló
E o anelão de bulim,
As fitas de gordura
E as luvas de toicim.
O colete de banana
O fraque de carne frita,
O lenço de marmê
E o lecre de cambica,
O colarim de bolacha
E a gravata de tripa.
O relógio de queijo,
A chave de rapadura,
A caçuleta de doce
E o trancelim de gordura.
Quem tem um liforme deste
Pode julgar-se em fartura.
-- Cantiga popular nordestina do início do séc. 20.
15.2.03
Zé do Caixão
Quem sou eu, não interessa, como também não interessa quem é você, ou melhor, não interessa quem somos. Na realidade o que importa é saber o que somos. Não se dê ao trabalho de pensar porque a conclusão seria: a loucura. O final de tudo, para o início de nada.
A coragem inicia onde o medo termina. O medo inicia onde a coragem termina. Mas será que existem a coragem e o medo? Coragem para quê? Medo do quê? De tudo? O que é tudo? Do nada? O que é nada?
A existência, o que é a existência? A morte? O que é a morte? Não seria a morte o início da vida? Ou seria a vida o início da morte?
Você não viu nada e quer ver tudo. Você viu tudo, mas não viu nada. Teme o que desconhece e enfrenta o que conhece. Por que teme o que desconhece e enfrenta o que conhece? Sua mente confusa não sabe o que procura. Porque o que procura confunde a sua mente. E nasce o terror. O terror da morte. O terror da dor. O terror do fantasma. O terror do outro mundo. Agora vê no terror que nada é terror, não existe o terror. No entanto o terror o aprisiona. O que é o terror? Ah! não aceita o terror porque o terror é você.
-
14.2.03
Mario Peixoto
Para sempre,
nem mais os braços enrodilhados dos amantes,
nem os lábios prestes ao sigilo
poderiam prender o fito corrompido
que o tempo encardiu,
reconquistando-o ao mar...
... As promessas são muitas
carregadas de correntes impossíveis
e as velas acesas queimam na noite intensa,
pelo desejo de uma prece,
derramadas nas lajes surdas
o derradeiro alento das ceras...
-- Em "Poemas de Permeio com o Mar".
12.2.03
Campos de Carvalho
Na Frente entregávamo-nos a todos os excessos, os previstos e os imprevistos, o uranismo comia à solta -- nem o general logrou escapar, nem fez por onde. Aquele silêncio acordava os apetites mais estranhos, era-se antropófago, onanista, hermafrodita, pederasta passivo ativo ou neutro, por nossas veias corria o esperma em vez do sangue: ceifavam-se muito mais vidas sob nossos testículos do que nas fileiras inimigas, havia um cabo Salvino que, esse, não tirava a mão do sexo. De uma feita surgiu um poema a um tenente muito loiro, era às vésperas de um combate que se tornaria histórico, o que contava era o momento presente, ninguém tinha família nem pênis definido: o general se emocionou e consentiu numa bacanal em grande estilo: era o que se poderia chamar uma ciranda copulativa, todos de mãos dadas -- de mãos propriamente não. O tenente foi um dos que morreram, como verdadeiro herói naturalmente; lutou como um bravo até o último instante, o esperma dentro das tripas.
Na volta não nos quiseram aceitar como pederastas passivos nem ativos: acabou-se a brincadeira, a coisa agora é pra valer. Quem tinha mulher muito bem, quem não tinha que se arrumasse: o Código Penal não distinguia entre vanguarda e retaguarda, nessa questão de sexo sempre fora intransigente -- pão pão, queijo queijo. Restava evidentemente o prazer solitário, contra esse não havia nenhuma sanção positiva, era como que tocar um instrumento de ouvido -- sua alma sua palma. Minha palma, minha alma: Helena em decúbito dorsal ou em decúbito ventral, não era a mesma coisa; Aristides com as suas nádegas, era perigoso, nunca se sabe ao certo o que um mudo pensa, nem qual o seu sexo; eu vagava entre as prostitutas e me sentia um estranho -- e aquele vazio por dentro pesando como um canhão.
11.2.03
Brane Mozetic
há coisas que você não sabe dizer
há coisas que você não se atreve dizer
não pode, não deve
poucas vezes se escapa uma frase doce
quando sinto que o frio está perto
há mentiras que na tua pele
deixam rastros, contusões, arranhões,
que longas semanas batem nos olhos
há palavras que você esconde
sussurra timidamente, me abraça
e com os olhos grandes pergunta
apenas perceptível, tremendo:
se continuará a me amar depois
e se é verdade que terei de morrer.
-
Sinto falta do Cruzeiro do Sul
quando a sede me faz erguer a cabeça
para beber teu vinho negro meia-noite.
E sinto falta das esquinas com armazéns dormilões
onde o perfume do mate treme na pele do ar.
Compreendo que isto está sempre lá
como um bolso onde a cada instante
a mão busca uma moeda o canivete o pente
a mão infatigável de uma estranha memória
que reconta seus mortos.
-- Julio Cortázar, em "Milonga", canção dedicada a Buenos Aires.
quando a sede me faz erguer a cabeça
para beber teu vinho negro meia-noite.
E sinto falta das esquinas com armazéns dormilões
onde o perfume do mate treme na pele do ar.
Compreendo que isto está sempre lá
como um bolso onde a cada instante
a mão busca uma moeda o canivete o pente
a mão infatigável de uma estranha memória
que reconta seus mortos.
-- Julio Cortázar, em "Milonga", canção dedicada a Buenos Aires.
10.2.03
A origem de expressões populares (2)
xumbrega -- palavra originária da expressão tomar uma xumbrega, embriagar-se. O soldado alemão Friedrich Hermann von Schomberg serviu como instrutor do exército português em Lisboa lá pelos idos de 1660. Como era beberrão, criou-se a expressão tomar uma Schomberg, por deturpação chegou-se a xumbrega. A expressão chegou ao Brasil com o mesmo significado, sofrendo com o tempo alterações. O folclorista Rodrigues de Carvalho registra em seu "Cancioneiro do Norte" o uso da expressão casa xumbrega ou à chomberga, significando casa pequena.
rasgar seda -- até onde se sabe a expressão foi usada por Martins Pena em uma de suas comédias (sem título). Um dos personagens, um vendedor de fazendas, corteja insistentemente uma dama, ao que ela retruca: "Não rasgue a seda, que esfiapa-se."
quando a galinha tiver dente -- o mesmo que "no dia de São Nunca". Expressão corrente em Portugal, no Brasil tomou a forma de "criar dente". A mesma expressão existe na França: "Quand les poules aurons des dents."
puxa vida! -- interjeição muito antiga, já era usada por D. Francisco Manuel de Melo na forma "hadepuxa!", considerada chula.
9.2.03
Relato [de um ex-macaco] a uma Academia
-- Kafka
Temo que talvez vocês não compreendam muito bem o que quero dizer com "saída". Uso a expressão no seu sentido mais pleno e popular. Deliberadamente não uso a palavra "liberdade". Não quero dizer o sentimento espaçoso de liberdade de todos os lados. Como macaco talvez eu soubesse disso, e conheci homens que anseiam por isso. Mas eu mesmo não desejei essa liberdade nem antes nem agora. A propósito, posso dizer que os homens são traídos com frequência pela palavra liberdade. E como a liberdade é considerada um dos sentimentos mais sublimes, assim a decepção correspondente também pode ser sublime. Nos teatros de variedades observei muitas vezes, antes de chegar a minha vez, um casal de acrobatas atuando nos trapézios lá em cima. Eles se balançavam, giravam para frente e para trás. Lançavam-se ao ar, flutuavam para os braços um do outro, um preso pelos cabelos nos dentes do outro. "E isso também é liberdade humana", pensei, "o autocontrole dos movimentos." Que imitação ridícula da Mãe Natureza! Se os macacos assistissem a tal espetáculo, as paredes do teatro não se suportariam de pé com o estrondo das suas gargalhadas.
Não, liberdade não era o que eu queria. Só uma saída. Para a direita ou para a esquerda, em qualquer direção. Eu não pedia outra coisa, mesmo que a saída provasse ser uma ilusão. O pedido era pequeno, o desapontamento não poderia ser maior. Sair! Só não ficar imóvel com os braços erguidos, esmagado contra uma parede de madeira.
-- Kafka
6.2.03
Jorge Mautner
Os pessimistas dizem: "Estamos numa época de decadência cultural, porque, vejam, sempre havia um movimento, a Bossa Nova, o Tropicalismo. Agora, nada! Isto é decadência!"
Esses lamentadores, ressentidos e chorosos pessimistas estão mais do que cegos. Não entendem que o que estão lamentando é o fim da cultura proposta como coisa linear, absoluta, dogmática, um movimento único, forte como flecha. Não entendem que o "último" destes movimentos, o Tropicalismo, justamente propunha o fim desse linearismo, desse sentido de "movimento único" e propunha em sua ontologia profunda a descentralização da liberdade.
5.2.03
Sabedoria árabe
-- Eu já falei que é boi, mas ele insiste em querer ordenhar...
-- Não gaste duas palavras se uma única basta.
-- O camelo riu uma vez na vida e rasgou os lábios para sempre.
-- Quem quer ficar bêbado não fica contando os copos.
-- Não pressiones demais o covarde que ele vira valente.
-- Quem quer comer o pão do rei deve cortá-lo com a espada.
-- Janta-o antes que ele te almoce.
-- Não adianta querer apressar o camelo.
-- Tudo dói na madame, só sua garganta continua boa.
-- Quando disseram ao gato que o seu excremento era útil, ele passou a enterrá-lo.
-- Só a tua unha é capaz de te coçar direito.
-- Pela repetição até o asno aprende.
-- Não aconselhes o tolo: em qualquer caso ele te culpará depois.
-- Não é por amor a Deus que o gato caça os ratos.
-- Tu és o que te habituaste a ser.
-- A vida é assim: um dia a favor, outro contra... isto para os mais afortunados.
-- Ano ruim tem 24 meses.
-- "Nora, nora... um dia também serás sogra!"
-- Não dá trela ao desocupado: ele fará de ti a sua ocupação.
-- É o homem que ganha o dinheiro, ou é o contrário?
-- Eu já falei que é boi, mas ele insiste em querer ordenhar...
-- Não gaste duas palavras se uma única basta.
-- O camelo riu uma vez na vida e rasgou os lábios para sempre.
-- Quem quer ficar bêbado não fica contando os copos.
-- Não pressiones demais o covarde que ele vira valente.
-- Quem quer comer o pão do rei deve cortá-lo com a espada.
-- Janta-o antes que ele te almoce.
-- Não adianta querer apressar o camelo.
-- Tudo dói na madame, só sua garganta continua boa.
-- Quando disseram ao gato que o seu excremento era útil, ele passou a enterrá-lo.
-- Só a tua unha é capaz de te coçar direito.
-- Pela repetição até o asno aprende.
-- Não aconselhes o tolo: em qualquer caso ele te culpará depois.
-- Não é por amor a Deus que o gato caça os ratos.
-- Tu és o que te habituaste a ser.
-- A vida é assim: um dia a favor, outro contra... isto para os mais afortunados.
-- Ano ruim tem 24 meses.
-- "Nora, nora... um dia também serás sogra!"
-- Não dá trela ao desocupado: ele fará de ti a sua ocupação.
-- É o homem que ganha o dinheiro, ou é o contrário?
4.2.03
A origem de expressões populares (1)
a dar com pau: quando as aves de arribação vinham em numerosos bandos da África para o Nordeste e pousavam nos campos, extenuadas, eram mortas a pauladas pelos sertanejos, aos milhares. Daí o significado de "grande abundância", "em demasia".
Amélia: na Inglaterra sinônimo de boa esposa, modelo de afeição conjugal citado no romance "Amelia", de Henry Fielding, em 1751.
rua da amargura: a Via Sacra.
não-me-toques: forma substantivada da frase que Cristo disse a Madalena depois da Ressurreição.
até aí morreu Neves: deriva de "Inês é morta" e de "Queen Anne is dead", na Inglaterra. O significado é o mesmo nos 3 casos: resposta a uma longa narrativa de fatos já sabidos.
para baixo todo santo ajuda: provém de "Facilis descensus Averno", frase de Virgílio na "Eneida", significando "a descida para o inferno é mais fácil", e assim "descer é mais fácil do que subir".
boi voar: locução adaptada de um ditado latino, "Asinus in tegulis": burro no telhado, com o mesmo significado. Rui Barbosa adorava utilizar a expressão em seus discursos políticos, afirmando ser mais fácil um boi voar do que ver o extermínio das oligarquias.
3.2.03
Noémia de Sousa
Deixa passar o meu povo
Noite morna de Moçambique
e sons longínquos de marimbas chegam até mim
-- certos e constantes --
vindos nem eu sei donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rádio e deixo-me embalar...
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Maria cantam para mim
spirituals negros do Harlem.
Let my people go
-- oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo --,
dizem.
E eu abro os olhos e já não posso dormir.
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
Let my people go.
Nervosamente,
sento-me à mesa e escrevo...
(Dentro de mim,
oh let my people go...)
deixa passar o meu povo.
E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda -- minha Irmã.
Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodoais, e meu inesquecível companheiro branco,
e Zé -- meu irmão -- e Saul,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
-- let my people go,
oh let my people go.
E enquanto me vierem do Harlem
vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insônia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go,
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO.
-
Assinar:
Postagens (Atom)