26.1.23

Poema de Herberto Helder

 


já não tenho tempo para ganhar o amor, a glória ou a Abissínia,

talvez me reste um tiro na cabeça,

e é tão cinematográfico e tão sem número o número dos efeitos especiais,

mas não quero complicar coisas tão simples da terra,

bom seria entrar no sono como num saco maior que o meu tamanho,

e que uns dedos inexplicáveis lhe dessem um nó rude,

e eu de dentro o não pudesse desfazer :

um saco sem qualquer explicação,

que ficasse para ali num sítio ele mesmo sítio bem amarrado

-- não um destino à Rimbaud,

apenas longe, sem barras de ouro, sem amputação de pernas,

esquecido de mim mesmo num saco atado cegamente,

num recanto pela idade fora,

e lá dentro os dias eram à noite bem no fundo,

um saco sem qualquer salvação nos armazéns obscuros

.

Herberto Helder, in Servidões, 2013