O AMOR DE LINDALVA
O amor de Lindalva
lhe dominava
a alma
- alva.
O professor ia pelos oitenta e lá vai alguma pedrada. Seco e arcado, magro, de olho cinza esmaecido e uma tossinha renitente. Vinha devagar, penando, ladeira acima – mansa ladeira, a da Academia de Letras, para não desanimar os de provecta idade vindos para o chá com bolo e alguns discursos soniferantes. Distração parca, ritual, de quem tem teimas interioranas na tarde e na velhice, ambas calmas. Vivia – sim, como vivia, afinal o homem? Sozinho, em uma pensão. Diziam. Mas como depois se verificou, não era bem assim : sozinho, sim, mas em apartamento próprio, dois quartos e sala, e até área de serviço com inúteis dependências de empregada. Comia em restaurantes de quilo, mas só nos do centro, mais baratos, na montoeira da Rua do Comércio.
Pobre do professor – que nunca se casou, que só teve um emprego, o de professor de Geografia em uma escola particular da parte abastada da cidade, houve tempos em que até morava no colégio, em um quarto dos fundos, feito caseiro, parecia. Excêntrico, talvez. Pobre, com certeza. De camisa tinha pelo que parecia duas, uma de listinhas rosa, outra branca para solenidades. Engravatado, sempre. Até de paletó, o mais das vezes.
Na hora do chá – que na Academia interiorana era com vantagem substituído por café de garrafa térmica, refrigerantes de garrafa tamanho família, sanduíches de patê de presunto e bolo de chocolate, o professor se fartava. Com a cumplicidade educada dos colegas, que fingiam não ver o tamanho, a quantidade das fatias de bolo que engolia concentrado, em um canto. Coitado, deixa ele comer, o professor, não quer mais um pedaço, um sanduichinho, eu embrulho e o senhor leva – dizia, baixinho Dona Noêmia, a mulher do Dr. Olavo, presidente da Academia, boa senhora cuja participação no literário sodalício garantia o bem-estar estomacal dos sócios.
De outros aspectos também solícita, Dona Noêmia um dia sussurrou no ouvido do marido: “Sei não, qualquer dia o professor...está tão acabadinho...” . Profetizou. Três dias mais tarde o porteiro do prédio onde ele morava telefonou – o professor fora encontrado morto, sentado no sofá diante da televisão. Ninguém conhecia pessoas de sua família, alguém lembrara da Academia, será que ...
Solidarizaram-se os sócios do sodalício.
Se desdobraram em indagação, entre a gente bem antiga da cidade, nos cartórios, no arquivo da matriz, no jornal. Nada – não se conseguiu localizar pessoa alguma. A não ser, bem, um fantasma. Sim, lembrou outro antigo professor, havia aquela história, como era mesmo? ...Consultou dona Hortência, pianista quase nonagenária de dedos agora enferrujados, depois a Neuma, outra ex-moça, outros ilustres ex-moços, até um antigo pároco que ruminava ainda latim e balas de alfenim. E aos poucos, no de-leve da lembrança, alguém disse um nome: Lindalva. Ainda existiria, a Lindalva? A amada, aquela enfim, que...
Como um retardado clarão a cidade – quer dizer aquele restrito punhadinho de gente daquele tempo, que ainda vivia – começou a perguntar que fim tinha levado a Lindalva, gente! Não falavam até que estavam de casamento marcado, e ela desmanchou, ou morreu, sabe-se lá, e então ele, desiludido...
- Foi sim, coitado. Ele até chegou a comprar uma casinha para eles, mobiliou toda, fez enxoval, comprou tudo , panelas, louça, tudinho, e depois... -- disse um dia a pianista Hortência de dedos enferrujados – em um momento de memória boa.
E aí, o diz-que-disse se espalhou que nem rastilho de pólvora, ruminaram lembranças, informações. Até que um velho farmacêutico, seu Onofre – que na mocidade fizera poemas às moças e agora desfrutava glória literária na Academia, confirmou: “Pois é, a casa ainda existe, ali no Beco do Beijo, gente.Fechadona. Diz que assombrada....”
(Aos poucos um toque de poesia, essa sim assombrada, ia ao que parece tomando conta da cidade – Beco do Beijo era o nome antigo da atual Travessa Comandante Aragão, em honra de falecido chefe da Polícia. No escuro breu do Beco escusos casais de tempos mais repressivos...)
Enquanto o corpo não reclamado permanecia na geladeira do velório municipal, os confrades acadêmicos – subitamente redivivos como bando de meninos curiosos – rumavam ao Beco, descobriam a casinha fechada sob arvoredo meio denso, mas limpinha, arrumada... Surgiu uma vizinha com a chave, o professor vinha uma vez por mês, sempre, pagava pela limpeza. Abriu a porta que rangeu um pouco, reumática, expondo o tesouro do amor por Lindalva: a casa impecavelmente arrumada, mobiliada, museu da década de 50 com móveis pé-de-palito, uma rádio-vitrola, uma geladeira importada Westinghouse, aspirador, liquidificador, e no armário profusão de lençóis virginalmente dobrados, uma colcha de fustão, uma camisola cor-de-rosa provida de laçarote branco em uma caixa da Casa Anglo-Brasileira, de São Paulo, em cima da penteadeira frascos fechados de perfumes, Cabochard, Je Reviens, Chanel no.5. Um par de óculos ray-ban, ainda na caixa.
- Faz tempo que...
- Ah, faz muito tempo sim senhor -- respondeu a faxineira. -- Minha mãe já trabalhava para limpar a casa para o Professor. A outra também.
Que outra? O apartamento?, perguntaram.
- Não senhor. A outra que é igual a esta, toda mobiliada, nem ninguém nunca morou também, não senhor. Que fica lá do outro lado, depois da estação, sabe?
O espanto caiu sobre os acadêmicos varando toneladas de tédio acumuladas. Anzol de rejuvenescimento - fofocas variadas se estabeleceram.
De repente, todo mundo lembrou pedaços de histórias sobre o professor e seus hábitos. Foram ver a casa de perto da estação. E depois, descoberta ao acaso, outra, em uma ruela atrás da igreja da Boa Morte. E outra...
Pasma, a cidade – que ignorara o professor, sua vida, seu sonho – acabou por descobrir exatamente seis casinhas que pareciam de boneca, espalhadas pela cidade.Todinhas mobiliadas até os mínimos detalhes, roupas de cama e mesa, talheres, saca-rolha, paliteiro, radinho de pilha, tapetinho do banheiro, touca para o vaso sanitário... a Lindalva imaginária residira inteira, incorporada à figura magérrima, de tão distinta sobriedade, do caro professor.
Quem ficou muito feliz – dizem – foi um sobrinho distante e herdeiro, enfim surgido depois das convocações feitas em vários jornais do interior. E em cuja presença enfim se retirou da sinistra geladeira o corpo do tio, finalmente despachado para o país dos sonhos eternos com dois discursos rápidos de membros da Academia – era dia de chuva e muito frio.
E mais não se falou, do caso e do professor.