30.10.05

2 poemas de Luiza Neto Jorge



Alguém se me assemelha
e me quer para si



Poema Quase Epitáfio
Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões

- Senhor demónio dos sós
Quando ele morrer
onde o pões?

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As Casas Vieram de Noite


As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas



Luiza Neto Jorge

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28.10.05

Ana Cristina Cesar



Estou jogando na caixa do correio mais uma carta para você que só me escreve alusões, elidindo fatos e fatos. É irritante ao extremo, eu quero saber qual foi o filme, onde foi, com quem foi. É quase indecente essa tarefa de elisão, ainda mais para mim, para mim! É um abandono quase grave, e barato. Você precisava de uma injeção de neorrealismo, na veia.


(Pensando em você não é bem o termo. Você na minha pele, me ocorrendo sem querer, até lembrança de perfume.)



Ana C., em Luvas de pelica, 1980.






26.10.05

Murilo Mendes



Propõe-nos Toledo um encontro de culturas díspares -- a cristã, a judia, a mourisca -- bem como a superposição de camadas do tempo. Mas outros dados poderão excitar o hóspede: também o caráter duro da sua posição natural, as rochas, a presença do Tejo de águas severas; suspenso na altura o casario cor de sangue coagulado, as pontes tão próximas, tão distantes; a mole da catedral e do castelo de San Servando, os restos da arquitetura árabe.

***

Na Idade Média Toledo foi centro de alquimistas, de iniciados em ciências esotéricas, artes mágicas, inclusive na arte do demônio, cultivando-se também a cabala, ritos ocultos. Para isso teria contribuído a influência israelita.

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Isabel a Católica costumava dizer: "Sólo mi siento necia en Toledo." Aludia em particular à mordacidade do espírito das toledanas, o que é confirmado por Azorin: "estas toledanitas son terribles".

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Procuro pelas ruas moças e mulheres que se assemelhem a outras, pintadas por El Greco. Através das grades daquele convento de freiras atingem-me ecos dum canto com algo de oriental ou não. Sinos ouvem-se de todas as partes, conforme a cantiga popular colhida por Dámaso Alonso: "campanillas de Toledo,/ óigoos y no vos veo". Descubro uma loja onde me forneço de mazapán, estupendo doce árabe a base de amêndoas. É dia de Corpus Christi: as casas acham-se pavesadas, e as ruas atapetadas de folhagem. Sai a procissão percorrendo o centro; o cardeal primaz levanta no ar a pesada custódia do século XVI, invenção de Juan de Arfe; distinguem-se hábitos escuros ou variopintados de membros de ordens religiosas que eu julgava extintas de há muito. Decora externamente a catedral uma série de tapeçarias antigas: vestiram a pedra para a festa. Os turistas que contavam regressar a Madrid no ônibus da tarde impacientam-se: a corrida só terminará de noite. Festa de Corpus Christi e tourada no mesmo dia, quase na mesma hora: somente na Espanha isto sucede, indicando aspectos contrastantes do seu gênio. Mas eu não volto hoje a Madrid: como de outras vezes dormirei em Toledo; aqui a noite ainda consegue dispor de filtros mágicos; ajuda a funcionar o motor da história toledana, áspera.



Murilo Mendes, em "Espaço Espanhol, 1966-1969".



18.10.05

Christophe Tarkos

poésie impure: "d'une violangue proétique"




Eu atravesso a ponte, a ponte atravessa o Sena, eu atravesso o Sena, caminho ao longo da ponte, eu não paro, quando caminho eu olho o Sena, a água, sigo por uma ponte, caminho sobre a água, a ponte passa sobre a água, a ponte é longa, eu caminho longamente, vou bem junto ao parapeito da ponte, a ponte passa por cima do Sena, olho o Sena, a água, a água cinza, não estou só, o Sena não está só, estou sobre uma ponte, eu caminho olhando para o rio, a água do rio, a água cinza do rio, eu sigo por um dos lados da ponte, a ponte se alonga de uma margem a outra do Sena, eu caminho de cabeça baixa, a ponte deixa o Sena correr, não olho para a correnteza, tenho sob os olhos a água cinza e larga que passa, eu passo, eu caminho, eu sigo meu rumo, sigo a ponte, eu atravesso a ponte, reparando de vez em quando na água cinza do Sena, a ponte larga atravessa toda a largura do Sena, eu apenas caminharei.


Christophe Tarkos




16.10.05

Orides Fontela: Toda palavra é crueldade



Peixe
pescado
descobre o ar:

não volta para
contar.



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14.10.05




A poesia é um jogo em que,
sob uma realidade
aparente, aparece uma
outra de repente.

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Depois de escrever o poema,
os limites da página já não estão
onde foi cortado o papel.

...............

Pego a régua,
a caixa de compassos
e começo a riscar
e desenhar.

Passa um pássaro e o poema acaba.

................

São tantas as diferenças que noto
entre o que sinto e o que vejo,
que, se me lembro de tragédias
pessoais, acendo um cigarro
e saio do poema.



Joan Brossa, 4 poemas.


13.10.05

(.) (.)




Dizem que boi preto, em noite preta, entende o cochicho da gente.





Guimarães Rosa