17.6.05

Fazer poético: lição de João Cabral


como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar o poema.


João Cabral de Melo Neto, no poema "Alguns Toureiros", 1954-55.


-------

12.6.05

Mario Benedetti



Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque viestes a recolher tua imagem
e és melhor do que todas tuas imagens
porque és linda desde o pé até a alma
porque és boa desde a alma a mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça

porque és minha
porque não és minha
porque te vejo e morro
e pior que morro
se não te vejo amor
se não te vejo

porque tu sempre existes onde quer que seja
porém existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que amar-te amor
tenho que amar-te
ainda que esta ferida doa como dois
ainda que te busque e não te encontre
e ainda que
a noite passe e eu te tenha
e não.




11.6.05

Conde de Lautréamont




Para construir mecanicamente o miolo de uma história de adormecer, não basta dissecar asneiras e embrutecer poderosamente em doses repetidas a inteligência do leitor, de maneira a tornar paralíticas as suas faculdades para o resto da vida, pela infalível lei do cansaço; é preciso, além disso, com um bom fluido magnético, pô-lo engenhosamente na impossibilidade sonâmbula de se mexer, forçando-o a escurecer os olhos, contra o que lhe é natural, pela fixidez dos nossos. Quero eu dizer, para não me fazer compreender melhor mas apenas para desenvolver o meu pensamento, que ao mesmo tempo interessa e irrita por uma harmonia das mais penetrantes, que não acredito que seja necessário, para atingir o fim que nos propomos, inventar uma poesia inteiramente fora do caminho habitual da natureza, e cujo sopro nocivo pareça transtornar até as verdades absolutas; mas conseguir tal resultado (aliás conforme às regras da estética, se pensarmos bem) não é tão fácil como se pensa: era o que eu queria dizer. É por isso que envidarei todos os meus esforços para o conseguir! Se a morte detiver a magreza fantástica dos dois braços compridos dos meus ombros, utilizados no lúgubre esfarelamento do meu gesso literário, quero pelo menos que o leitor de luto possa dizer consigo mesmo: "Há que lhe fazer justiça. Cretinizou-me muito. Que não teria ele feito se tivesse podido viver mais! É o melhor professor de hipnotismo que conheço!"



Conde de Lautréamont, em Cantos de Maldoror, 1869.



6.6.05

Duas canções do tempo do beco


Primeira canção do beco


Teu corpo dúbio, irresoluto
De intersexual disputadíssima,
Teu corpo, magro não, enxuto,
Lavado, esfregado, batido,
Destilado, asséptico, insípido
E perfeitamente inodoro
É o flagelo de minha vida,
Ó esquizóide! ó leptossômica!

Por ele sofro há bem dez anos
(Anos que mais parecem séculos)
Tamanhas atribulações,
Que às vezes viro lobisomem,
E estraçalhado de desejos
Divago como os cães danados
A horas mortas, por becos sórdidos!

Põe paradeiro a este tormento!
Liberta-me do atroz recalque!
Vem ao meu quarto desolado
Por estas sombras de convento,
E propicia aos meus sentidos
Atônitos, horrorizados
A folha-morta, o parafuso,
O trauma, o estupor, o decúbito!



Segunda canção do beco


Teu corpo moreno
É da cor da praia.
Deve ter o cheiro
Da areia da praia.

Deve ter o cheiro
Que tem ao mormaço
A areia da praia.

Teu corpo moreno
Deve ter o gosto
De fruta de praia.
Deve ter o travo,
Deve ter a cica
Dos cajus da praia.

Não sei, não sei, mas
Uma coisa me diz
Que o teu corpo magro
Nunca foi feliz.



Manuel Bandeira


---------