3.12.03

António Lobo Antunes



Não entendo por que motivo, querida, nunca te interessaste pela minha infância: sempre que falo de mim encolhes os ombros, a boca torce-se, as pálpebras prolongam-se de desdém, rugas escarninhas surgem por detrás da franja do cabelo louro, de modo que acabo por me calar, envergonhado, a colocar os copos, os pratos e os talheres na mesa do almoço, enquanto a tua tia tosse na despensa e o teu pai roda os botões do televisor em busca das estridências da novela. E, todavia, Iolanda, logo que adormeces, mal o teu rosto, amolgado na almofada, readquire a inocência do presépio de outrora, tal como te vi, pela primeira vez, na pastelaria à esquina do Liceu, quando os teus dedos sujos de tinta e os teus cadernos escolares me comoveram de uma alegria sem sentido,
logo que adormeces e uma brancura de olmo com pássaros nos atravessa o quarto, arengo sem que me troces, converso, pairando sobre ti, com as tuas palmas inertes e as tuas coxas indefesas, e a casa onde morei antes da família da minha mãe surge da noite, nascida de uma imperfeição do espelho ou da gaveta da cômoda em que a nossa roupa se mistura com ninhos de traças e maçanetas de cobre, desde que há meses me ordenaste Vem e eu me apresentei, com o guarda-chuva e duas malas gastas, neste andarzinho da Quinta do Jacinto, em Alcântara, para explicar que sim, que tinha mais trinta e um anos do que tu mas o emprego do Estado, Senhor Oliveira, não é mau de todo, e claro que pagaria a eletricidade, a renda e a despesa do talho.


António Lobo Antunes, A ordem natural das coisas, 1992.