27.1.03

Pierre Louÿs - Manual de civilidade destinado às meninas



Manual de Civilidade  Destinado às Meninas (Para uso nas escolas)


Não digas... Diz...


Não digas "a minha cona", diz "o meu coração".

Não digas "tenho vontade de foder", diz "estou nervosa".
Não digas "gozei que foi uma loucura", diz "sinto-me um pouco fatigada".
Não digas "vou masturbar-me", diz "vou ali e volto já".
Não digas "quando eu tiver pentelhos", diz "quando eu for crescida".
Não digas "gosto mais de língua do que de pixota", diz "sou chegada a prazeres delicados".
Não digas "entre as refeições só bebo esperma", diz "sigo um regime especial".
Não digas "os romances honestos me chateiam", diz "quero qualquer coisa interessante para ler".
Não digas "deixa-se enrabar por todos os que lhe fazem minete", diz "é muito namoradeira".
Não digas "vi-a foder pelos dois buracos", diz "é uma eclética".
Não digas "ela goza como uma égua", diz "é uma exaltada".
Não digas "é uma menina que se masturba até morrer", diz "é uma sentimental".
Não digas "ela se deixa enrabar por todos que a masturbam", diz "ela flerta um pouco".
Não digas "ele entesa como um cavalo", diz "é um jovem completo".
Não digas "quando o chupam, descarrega no ato", diz "ele é muito espontâneo".
Não digas "tem a pixota grossa demais para a minha boca", diz "sinto-me pequena quando falo com ele".
Não digas "gozou na minha boca e eu na dele", diz "trocamos algumas impressões".
Não digas "tenho uma dúzia de consolos na gaveta", diz "nunca me aborreço sozinha".
Não digas "ele dá três sem desencavar", diz "tem um caráter muito firme".
Não digas "fode muito bem mas não sabe enrabar", diz "é um simplório".

(Escrita em 1917, esta obra teve sua primeira publicação em 1927 dois anos após a morte do autor. Trata-se de uma paródia dos rigorosos e moralistas manuais de educação e boas maneiras utilizados na Belle Époque. O Manual de civilidade é um contundente ataque desferido contra as regras vigentes do puritanismo burguês.)



24.1.03

-- Eu não acredito em deus -- disse eu. Arlene começara a primeira das muitas margaritas que se seguiriam durante o dia. Fora avisada por seu médico para deixar de tomar tequila de manhã. Ele suplicara a ela que substituísse por um vinho leve, refrescante, bom para o desjejum, como os de Napa Valley. Ele mesmo possuía ações da viticultura. Venderia sua própria marca. "Mas vinho me dá gases", dizia Arlene com firmeza.

-- Ah, tudo é deus. -- Arlene olhou para o tudo a sua volta. Neste caso, tudo representava a treliça de sequóia ao redor da piscina que ela pintara de amarelo, um trecho de céu marrom de poluição, moitas de hibiscos empoeiradas, o passarinho morto que o jardineiro japonês vivia esquecendo de tirar do pequeno jardim de cactos.

-- Ou nada.

-- Isso é metafísico demais. -- Arlene gostava de me lembrar da boa educação que tivera no Meio-oeste. Porém, como era a primeira a confessar, ela esqueceu tudo que aprendeu, junto com as milhões de palavras que fora obrigada a decorar como atriz, cantora e camelô de TV. Quando menina, sempre disse que queria ser veterinária. Porém o mundo do show-business a havia agarrado pela bela garganta. No final dos anos 40 e início dos 50, ela foi quase, mas não chegou a ser, uma estrela de cinema. Agora, na meia-idade do nunca é tarde demais, ela era a camelô mais bem paga da TV, depois de Barbara Walters. Uma celebridade total.

-- Gore Vidal, em "Kalki".

23.1.03

1 poema de Günter Grass


Três semanas depois

Quando voltei de viagem
e entrei no meu apartamento
vi sobre a mesa aquele cinzeiro
que esqueci de esvaziar. ---
Há coisas que não têm desculpa.



(Günter Grass, trad. Maira Parula)

1 poema de Günter Eich


Nota de rodapé sobre Roma


Eu não lanço moedas às fontes:
não penso em voltar.

Tanto Ocidente
parece suspeito.

Deixaram de fora mundo demais
e não há lugar
para os jardins japoneses.




Günter Eich, trad. Maira Parula



22.1.03

DIALÉTICA NEGATIVA I

no não o sim
no sim no não o não
no não no sim no não o sim
no sim no não no sim no não o não
no não no sim no não no sim no não o sim
no sim no não no sim no não no sim no não o não

mas como vai ser possível

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DIALÉTICA NEGATIVA II

não
não?
não não
não não?
não não não
não não não?
não não não não
não não não não?
não não não não não
não não não não não?
não não não não não não
não não não não não não?
não não não não não não não
não não não não não não não?
não não não não não não não não
não não não não não não não não?
não não não não não não não não não
não não não não não não não não não?
não não não não não não não não não não
não não não não não não não não não não?
não não não não não não não não não não não
não não não não não não não não não não não?
não não não não não não não não não não não não
não não não não não não não não não não não não?
não não não não não não não não não não não não não
não não não não não não não não não não não não não?

então tá


--- Helmut Heissenbüttel, trad. MP.

21.1.03

Bebo para
poder falar ao idiota.
O que me inclui.

-- Jim Morrison, em "As I Look Back".

É tempo de apertar os freios à minha inspiração e de deter na estrada por um instante, como quando se contempla a vagina de uma mulher; é bom examinar o caminho percorrido e lançar seguidamente num salto impetuoso os membros repousados. Não é fácil fazer uma caminhada de um só fôlego; e as asas cansam-se muito num vôo alto, sem esperança e sem remorso. Não... não levemos mais ao fundo a feroz matilha das picaretas e escavações através das minas explosivas deste canto ímpio! O crocodilo não mudará uma palavra ao vômito que lhe saiu de debaixo do crânio. Tanto pior se alguma sombra furtiva, levada pelo objetivo louvável de vingar a humanidade por mim injustamente atacada, abrir sub-repticiamente a porta do meu quarto, roçando a parede como a asa de um albatroz, e cravar um punhal nas costas do salteador dos destroços celestes! É indiferente que a argila dissolva os seus átomos dessa ou de outra maneira.

-- Conde de Lautréamont, em "Cantos de Maldoror".

19.1.03

dizem que em alguma parte
parece que no Brasil
existe um homem feliz

-- Maiakovski, 1913.

15.1.03

Como vão o seu revólver, a sua Bíblia e seus comprimidos para dormir? Você ainda continua pulando das janelas com roupas caras?

-- Tom Waits, em "Who are you?"

"A geração beat foi só um nome que usei no original de On the road para descrever caras como Moriarty, que percorriam o país de carro, atrás de biscates, mulheres e farras. Mais tarde foi aproveitado por grupos de esquerda da Costa Oeste e ganhou um sentido de "rebelião beat" e "insurreição beat" e outras bobagens. Eles só queriam se agarrar a um movimento qualquer da juventude para atingir seus objetivos políticos e sociais. Eu não tive nada a ver com isso. Eu era um jogador de futebol, bolsista da universidade, marinheiro, guarda-freios e redator de sinopses... e Moriarty-Cassady era um cowboy de verdade no rancho de Dave Uhl, em New Raymer, Colorado... Que tipo de beatnik é este? (...) Conhecíamos milhares de poetas e pintores e músicos de jazz. Não havia uma "turma beat"... O que me diz de Scott Fitzgerald e sua "turma perdida", ou de Goethe e da "turma de Wilhelm Meister"? Esse assunto é muito chato. Me passa aquele copo. (...) Ginsberg começou a se interessar por política, pela esquerda... como Joyce, eu disse a mesma coisa que Joyce disse a Ezra Pound nos anos 20: "Não me amole com a política, a única coisa que me interessa é estilo." Além disso, eu estou cheio da nova vanguarda e do sensacionalismo em ascensão. Estou lendo Blaise Pascal e fazendo anotações sobre religião. Eu gosto de andar com não-intelectuais, se quiser chamá-los assim, em vez de ter minha cabeça como vítima ad infinitum do proselitismo. Hoje tenho uma vida caseira, com um pequeno porre de vez em quando em bares das redondezas."

-- Jack Kerouac, em entrevista à Paris Review, 1967.

12.1.03

Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.
O dia vai morrer aberto em mim.

-- Manoel de Barros

10.1.03

Lúcio Cardoso - Crônica da casa assassinada


Ao colocar as flores no seu colo, ela reabriu os olhos e vi então que já parecia inteiramente ausente deste mundo. Poderia repetir ainda os mesmos gestos dos vivos, pronunciar até palavras semelhantes -- mas a força vital já se despedia do seu corpo, e ela se achava nesta fronteira indevassável de onde os mortos espiam indiferentes a área por onde transitamos. Mesmo assim, por um esforço de sobrevivência, ou quem sabe por uma simples imposição do hábito, tomou as violetas nas mãos e levou-as devagar às narinas -- tal qual fazia nos tempos passados, com a diferença que não sorvia mais o perfume com a mesma sofreguidão, e seu gesto de agora era relaxado e mole. O braço descaiu e as violetas espalharam-se sobre a cama. "Não posso", ela disse. Também nada mais reconheci naquela voz -- era um produto mecânico e frio, um som emitido com dificuldade, audível ainda, mas sem consistência, com a flacidez morna do algodão. Não tive coragem para dizer coisa alguma e fiquei simplesmente ao seu lado, pedindo a Deus, com lábios que não tinham nenhum calor da fé, que me transmitisse um pouco daquele sofrimento. Advertida talvez por essa última consciência dos moribundos, que os faz bruscamente destacar uma minúcia do amontoado em que as formas se aglutinam, fitou-me. Depois, com um lampejo de compreensão, procurou ocultar o que se passava com ela, e voltou a cabeça para o lado. Assim ficamos, perto e distantes, tendo entre nós dois a poderosa presença que nos dividia. Eu jurara que seria sensato e que forçaria a dor a calar-se no fundo do meu coração, não porque me importasse sua repercussão aos olhos alheios, mas unicamente a fim de evitar a criação dessa tensa atmosfera de adeus que circula entre os agonizantes. Vendo-a porém já meio submersa na noite, e tão apartada de mim como se sua presença fosse apenas memória, sentia galopar em meu peito o ritmo de um desespero, de uma raiva que não se continha mais. E por uma bizarra coincidência -- ou quem sabe precisamente pelo inelutável da hora -- eu adivinhava que em nossas memórias subiam apenas imagens do tempo esgotado.

-- Lúcio Cardoso.

8.1.03

A chuva, outra vez sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
Se minha mãe já se foi embora,
Já não vem à varanda para a ver cair,
Já não levanta os olhos da costura
para perguntar:Ouves?
Ouço, mãe, é outra vez a chuva,
A chuva sobre o teu rosto.

-- Eugenio de Andrade, "Casa na Chuva".

Sobre a cômoda em Buenos Aires
o espelho reflete o vidro de água de colônia
Avant la Fête (antes,
muito antes da festa), reflete
o vidro de Supradyn, um tubo
de esparadrapo,
a parede em frente, uma parte do teto.
Não me reflete a mim
deitado fora do ângulo como um objeto que respira.
Os barulhos da rua
não penetram este universo de coisas silenciosas.
Nos quartos vazios
na sala vazia na cozinha
vazia
os objetos (que não se amam),
uns de costas para os outros.

-- Ferreira Gullar, "Ao Rés-do chão".

3.1.03

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

-- Mário de Sá-Carneiro.

2.1.03

Sylvia Plath - Poesia - disciplina tirânica


Poesia é uma disciplina tirânica. Você tem de ir tão longe, tão rápido, em tão pouco tempo, que nem sempre é possível dar conta do periférico. Num romance talvez eu possa conseguir mais da vida, mas num poema eu consigo uma vida mais intensa. [...] Não estou falando de poemas épicos. Falo do poema curto, não oficial. Como descrevê-lo? Uma porta se abre, uma porta se fecha. Entre os dois momentos você tem um golpe de olhar: um jardim, uma pessoa, uma tempestade, uma libélula, um coração, uma cidade... O poeta se torna um especialista em fazer as malas.

Sylvia Plath