16.1.12

Eça de Queiroz

A Quinta de Tormes


e o jantar da Quinta de Tormes



Deste enlevo nos arrancou o Melchior com o doce aviso do “jantarinho de suas incelências”. Era noutra sala, mais nua, mais abandonada: - e aí logo à porta o meu supercivilizado Príncipe estacou, estarrecido pelo desconforto, e escassez e rudeza das coisas. (...) 

Jacinto ocupou a sede ancestral – e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fosca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - “Está bom!” 

Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo. 

-Também lá volto! – exclamava Jacinto com uma convicção imensa. – É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome. 

Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!... Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: 

-Óptimo!... Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia! (...) - Pois é cá a comidinha dos moços da Quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!
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De A  cidade e as serras, sonhadas por Eça de Queiroz e transformadas em realidade para serem sonhadas novamente por seus leitores  e por Guimarães Rosa, que só pensava em voltar a Portugal  para comer deste arroz com favas. A foto da quinta é de António Barreto.

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1.1.12

Jules Laforgue


Caso redibitório (matrimônio) 

 Minh’alma tem sete dons raros 
e, em número maior que as obras- 
primas, micróbios, aos milhares, 
tornam-me campo de manobras. 

Ora, o sufrágio universal! 
Que chicaneia e clama insultos, 
Cada instante, ao menor sinal, 
Entre meus mil órgãos ocultos!... 

Quisera viver com sucesso, 
segundo um clássico programa, 
associando-me, em congresso, 
a alguma clássica madama. 

Pode-se cogitar, na pauta, 
em tirar exemplares, para 
si, de si mesmo, quando falta, 
porém, uma ideia, mais clara?... 

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Canção do pequeno cardíaco


Foi de uma doença do coração 
Que mamãe morreu, disse o doutor,
E que eu hei de ir lá onde ela está
Para dormir junto dela.
Escuto meu coração batendo,
E mamãe que me chama!

Todos riem de mim nas ruas,
Dos meus jeitos desengonçados;
Pareço um menino bêbado,
Meu Deus! É que o ar me falta,
Tenho medo de cair.
Escuto meu coração batendo,
E mamãe que me chama!

Às vezes vou pelos campos
Na hora do fim do dia
E choro, choro,
E o sol, não sei porque,
Me parece um coração aceso.
Escuto meu coração batendo,
E mamãe que me chama!

Ah, a vizinha Genoveva
Quisesse o meu coração...
Ah, se ela quisesse!
Sou amarelo, tão triste,
Ela é côr de rosa, alegre, bonita.
Escuto meu coração batendo,
É mamãe que me chama!

Sim, todo mundo é mau,
Menos o sol no poente
E mamãe.
E eu quero ir lá onde ela está
Dormir junto dela.
Meu coração bate, bate...

Mamãe, és tu que estás me chamando?


Jules Laforgue