Jamais seria como os outros, jamais viveria das suas vidas simples, dos seus inocentes folguedos. Jamais teria inocência suficiente para viver entre eles como um irmão; sempre que procurasse se imiscuir, como o lobo da história, sentiria pesar a desproporção da sua origem, o sinal que o distinguia, o mistério da sua natureza solitária.
Fora assim que aceitara viver em silêncio, de cabeça baixa, sem ousar pedir coisa alguma. Vegetara nos empregos mais humildes, conhecera destinos diferentes, criaturas transfiguradas pelas dores mais fundas, pelas mais permanentes necessidades -- e conhecera também aqueles que a vida cumula de todos os seus favores, que elege como filhos diletos. E não sentira nenhum desprezo pelos primeiros e nem rancor pelos segundos. Transitara livremente entre eles, como se fosse outra a raça a que pertencesse, mais amarga e mais pura. Um dia, porém, alguém lhe fizera ver que mesmo assim a sua presença pesava como uma acusação. Os homens queriam representar livremente os seus papéis e se sentiam perturbados com aquela silenciosa presença, que parecia prestes a desencadear sobre eles uma força inesperada e poderosa. O seu silêncio, a sua tácita renúncia eram, ainda assim, um dom que lhe recusavam. Partira. No trem enfumaçado, embalado pelos solavancos do carro, cerrava os olhos, um jornal inútil nas mãos. Como era difícil viver!
(Em O desconhecido, 1940.)