26.6.10

Lúcio Cardoso



Jamais seria como os outros, jamais viveria das suas vidas simples, dos seus inocentes folguedos. Jamais teria inocência suficiente para viver entre eles como um irmão; sempre que procurasse se imiscuir, como o lobo da história, sentiria pesar a desproporção da sua origem, o sinal que o distinguia, o mistério da sua natureza solitária.

Fora assim que aceitara viver em silêncio, de cabeça baixa, sem ousar pedir coisa alguma. Vegetara nos empregos mais humildes, conhecera destinos diferentes, criaturas transfiguradas pelas dores mais fundas, pelas mais permanentes necessidades -- e conhecera também aqueles que a vida cumula de todos os seus favores, que elege como filhos diletos. E não sentira nenhum desprezo pelos primeiros e nem rancor pelos segundos. Transitara livremente entre eles, como se fosse outra a raça a que pertencesse, mais amarga e mais pura. Um dia, porém, alguém lhe fizera ver que mesmo assim a sua presença pesava como uma acusação. Os homens queriam representar livremente os seus papéis e se sentiam perturbados com aquela silenciosa presença, que parecia prestes a desencadear sobre eles uma força inesperada e poderosa. O seu silêncio, a sua tácita renúncia eram, ainda assim, um dom que lhe recusavam. Partira. No trem enfumaçado, embalado pelos solavancos do carro, cerrava os olhos, um jornal inútil nas mãos. Como era difícil viver!



(Em O desconhecido, 1940.)



18.6.10

José Saramago




Na ilha por vezes habitada
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.


Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.



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José Saramago, insuspeito poeta,
de quem, como um ancião bíblico,
parece não existir uma foto do
Jovem Saramago.


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16.6.10

Sebastião Alba


Sou quem os que amo (ou detesto) pensam de mim. Pouco mais.







Há poetas com musa

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.


Num álbum

Estar só
é meditar numa ausência
erguer os olhos do que, escrevendo, o constata
por uma ordem emanada já se sabe donde

ir só reivindica
sonega a caneta
dobra os papéis escritos
e conduz docemente
a uma longa suspeição de música.



Gosto dos amigos
Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.


Faço hoje 55 anos. Quem disse que o tesouro dos poetas são "montes de
papéis desarrumados / e barras de oiro quando o sol se põe"?
Eu não aspiro a tanto, mas tenho alguns bens: sapatos novos, calças de
ganga, uma camisa de flanela e um relógio de pulso.
Depois de 50 anos de chatice, que tal?

A Poesia foi, para mim, corso: de quando em vez, fazia abordagens. Claro
que trago comigo, como qualquer pirata que se preza, o mapa desse tesouro,
onde ninguém o encontrará: na pala do olho direito — com o esquerdo, não
sei por quê, vi sempre melhor.


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9.6.10




d'O Livro dos Três Caminhos e dos Sete Sinais do Amor Embebedado

Ho primeiro signall he muyto ouvyr & pouco fallar se nom he de cousa amada E falar minguado.

Ho segundo he secura de membros Polla ardente apricaçom aa cousa que ama.

Ho terçeiro sinall he os olhos encovados scilicet o Intindimento & a afeiçom profundos no coraçom & em deus Ca todo o que amã he dentro segundo de çima he dito.

Ho quarto sinall he mimgua de lagrimas se nom veem da cousa amada.

Ho quimto he pulsso desordenado scilicet das afeiçõoes que som ou muito triguosas ou muito tardinheiras assy como he dito.

Ho seisto he profundo cuidado & adormiçimento tornado adentro Assy que taes namorados nom entendem senom pouco ou nada das cousas de fora senom de seus amores

Ho seitemo he alteraçom que vem quando homem vee alghua cousa que pareçe o que ama

Per estes sete signaaes conheçe homem ho amor enbevedado (...)


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Em Castelo Perigoso, epístola medieval escrita por Frère Robert, monge cartuxo, a sua prima freira, Soeur Rose.

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